O JULGAMENTO DA VACA
Foi nos anos 60 quando era gerente de banco, numa cidade do inte-
rior. Bancário, exercia também a funçåo de Advogado dos pobres em quatro cida-
des adjacentes.
Naquela época, gerente de banco tinha o mesmo STATUS de Vigário,
Juiz, Prefeito ou Delegado. Na ausência de um, outro o substituia, desde que o
assunto nåo fôsse de Fé.
Toda segunda feira dirigia-me para uma cidade vizinha, a fim de
apanhar depósito de porta em porta. Junto comigo levava um antigo caixa, de
banco: o Odilon. -Protestante dos quatro costados, de conduta irrepreensível,
nåo fumava, nåo bebia, mas era possuidor de uma rica ignorância acerca de to-
dos os assuntos, a exceçåo de Caixas e de Bíblia. Naquele tempo nåo havia
assaltos. Os marginais e o C.C.C. estavam de licença prêmio. Os primeiros ti-
nham afazeres menos audaciosos, como furtos e pequenos assaltos nas caladas da
noite. O C.C.C. atuava nas câmaras de tortura oficiais, nåo havendo tempo pa-
ra perturbar a paz dos serviços bancários, já que estava se divertindo com os
subversivos. Em suma,a segurança nåo dependia, nem da direita, nem da esquerda
nem da marginal.
Lembro-me que a tarde vinha meiando o caminho da noite, quando re-
cebi um recado do Juiz, para defender em processo sumário, um réu de trânsito,
camioneiro do Paraná. Lá chegando, estava o esmolambado camioneiro, que viera
especialmente do Paraná, para responder ao processo. Vi de antemåo que
ali se processava um mero cumprimento burocrático e nåo o julgamento de um ho-
mem.
O promotor, pessôa inteligente,mas de moral um tanto abalada soci-
almente. Cultivava todos os vícios, sendo que o de beber e de mulheres, exer-
cia como sofisticaçåo invejável. No tangente ao primeiro vício era exímio,pois
conseguia beber de tudo e só perdia a mobilidade e o direito de ir e vir, no
domingo, à noite, quando se recostava no aconchêgo de seu quarto lar. Quanto
ao segundo vício, apesar do aspecto asqueroso, era um homem desejado, pois com
seus poemas, só naquela cidade, conseguiu constituir quatro "casas" e algumas
"intermediaçÆes". Nåo podia ver saia e garrafa, mas credores, e nåo eram poucos;
fugia dêles mais rápido que decolagem de aviåo.
O Juiz homem íntegro, culto, socialmente arrumado, mantinha o pa-
dråo do judiciário na cidade. Aquí e alí, domava com pacimônia os excessos do
colega.
Lí o processo e ví que o pobre coitado nåo teve culpa. Vinha com
o seu caminhåo na måo e dela nåo saiu. Em sentido contrário trafegava um outro
caminhåo na contra-måo, nåo por culpa do motorista, mas por causa de uma vaca
que atravessava a pista, sem apitar e com complexo de tanque de guerra. O ine-
vitável aconteceu. Os caminhÆes bateram de frente. O do Paraná, um Scania de
15 toneladas. O outro um Fordeco. O motorista do Fordeco faleceu no local. A
vaca foi levada para a Delegacia, onde ficou presa incomunicável, que era o
chique da época. Depois foi solta por falta de provas e "documentos", já que
nåo tinha leite e reclamava muito da acomodaçåo.
Segundo o irado Promotor, o pobre camioneiro estava ali para ser
julgado e condenado por crime de morte, atribuindo-se-lhe, imprudência e ne-
gligência. Ocorre que o nobre Promotor, acostumado aos improvisos em versos
esquecera-se de ler a perícia, e nesta os competentes guardas da Polícia Ro-
doviaria Federal haviam acusado a vaca da culpa.
Quando a acusaçåo terminou, e foi dada a palavra à defesa depois
dos cumprimentos de praxe, perguntei ao Promotor. a quem está confiado o outro
réu e porque nåo compareceu?. -Que réu? Perguntou estupefato. -A vaca! V.Excia.
deve ter esquecido de ler a Perícia da Polícia Rodoviaria. Foi até presa!
nervosamente vasculhou o processo encontrando a util informaçåo que tanto
precisava.
-Meritissimo! disse inopinadamente. -Fica o dito por nåo dito, pe-
ço a absolviçåo do réu presente, pelos motivos alegados pelo nobre colega da
defesa. A vaca vai pro brejo, já que no Código nåo posso condenar ninguém de 4
pés, pois do contrário eu é que deveria me condenar todos os domingos quando
chego à noite em casa. Tenho dito.
O juiz deu a sentença absolutária. O camioneiro chorava e agar-
rava-se a mim como um naúfrago. Doutor diga quanto quer! O senhor é o maior
advogado do mundo. Vou voltar para casa. -Odilon com os olhos minando, obser-
vava espantado, segurando a bolsa cheia de depósitos. -Disse ao camioneiro:
você pode pagar? -Posso Doutor! -É cincoenta cruzeiros, respondi. -Meteu a måo
no bolso, tirou quinhentos cruzeiros e me deu. -É muito, nåo aceito -disse.
Fiquei com os cincoenta. O promotor aproveitou a deixa e disse: Vamos jantar,
beber e comemorar. -Eram 18 horas, tinha que voltar para o banco para guar-
dar o dinheiro. Chamei Odilon e fomos embora.
Depois de meia hora de viagem Odilon falou: "Mai qui vaca danada!
matou, processou e ainda deu um dinheirin ao doutor".
Mauro de Oliveira
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