Termino de falar com ela por telefone, no domingo frio. Poderia ter sido uma conversa pessoalmente; então eu teria tido três horas de menos frio, com um pouco mais da humanidade dela perto de mim. Eu então poderia demonstrar-lhe o quanto sou um amigo meigo e profundo; faria uns carinhos inocentes nas mãos e no rosto; e ela perceberia, definitivamente, que nunca mais estaria só. E que sentir-se assim é injusto, pois eu a compreendo e a aceito, mesmo quando ela faz questão de sinalizar "o amigo" antes de tudo. E que grande amigo sou, reconheço!
Eu não conto a ninguém, mas já alcancei, de certa maneira, a paz. Já não espero que ninguém me ame desarvoradamente senão depois de uma preliminar como do crepúsculo que antecede a noite. E uma amante sem um beijo muito na alma, nesse momento idílico da minha vida, seria quase inconcebível. Um beijo muito prolongado que achasse-me lá de dentro de mim, de onde há muito ninguém ousou tirar-me; nem eu deixei nunca fácil!
E ela vai falando, a minha amiga morena, que pensa que eu só fico prestando atenção no lado belo dela ou no feio, quando, acostumado a ver de longe, treinado pela solidão, reparo todo o conjunto da obra; sou um homem das profundidades; isso não quer dizer que eu também não tenha medo de apaixonar-me pela amiga. Sim, morro de medo de seguir sozinho essa viagem! Por isso, escondo-me tão bem que quase nunca me percebem.
E tento desesperadamente passar para ela que nunca a incomodaria com meus sentimentos. E que se um dia ela percebesse meus carinhos leves, não interpretasse como senão o gostar leve e tranqüilo de alguém que outra coisa não quer senão protegê-la dos frios do domingo e das solidões das grandes metrópoles; e desses grosseiros que não percebem o quanto a minha amiga é frágil e bela e sublime quando me liga; e o quanto eu sou apenas aquele que a acolhe e a protege e que sempre dará o que ela pede, porque, dentro da minha paz conquistada, já tenho tudo, menos para quem passar as ternuras leves, cotidianas, constantes como o rumor das ondas da um mar noturno; monótono e eterno, parecendo dizer vem... vem... vem...
Marcelino Rodriguez é poeta, escritor, editor e autor de Café Brasil e a Ilha, pela Luz do Milênio Editora.