Manifestação na Venezuela: "O presidente se encarregou de dizer nas cadeias de
rádio que todo aquele que não o acompanha é inimigo da pátria", afirma irmão de ministro
Latino-americanos andam um tanto indispostos com quem se opõe aos seus governos. Mostram-se menos inclinados a admitir que essas pessoas tenham o direito de votar. Não se interessam por ouvir suas ideias na televisão e não lhes agrada vê-las em manifestações públicas - que dirá ocupando cargos eletivos.
Resultados de pesquisa realizada pelo Projeto de Opinião Pública Latino-americana (Lapop, na sigla em inglês) em 2012, divulgados nesta quinta-feira, indicam uma queda na tolerância política - a disposição para aceitar a participação de opositores ao governo na vida do país, segundo aqueles indicadores - revelam o menor nível desde o início da série, em 2004, para um conjunto de 18 países sul-americanos, com o índice de 50,9. Até então, o nível mais baixo era de 52,3, registrado em 2008.
A pedido do Valor, os responsáveis pela pesquisa - o Barômetro das Américas - fizeram um recorte, para efeito de comentar os resultados, que abrange aquele grupo de países, aqui tomados como representativos da América Latina: foram ouvidas 29.256 pessoas na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
Cientista política e diretora-adjunta de projeto vê tendências de diminuição da estabilidade democrática em alguns países
Tal cenário está longe de significar um risco de 'decaimento democrático' generalizado na região, avalia Liz Zechmeister, diretora-adjunta do Lapop e professora associada de ciência política da Universidade Vanderbilt (EUA), que abriga o projeto. Entretanto, Liz vê 'tendências de diminuição da estabilidade democrática em alguns países'.
Neste ano, a região será palco de pelo menos cinco, talvez seis processos eleitorais de âmbito nacional: no Paraguai, Chile, Argentina, Equador, Honduras e - eventualmente - Venezuela. Á exceção dos dois primeiros países, nos demais o índice de tolerância política com opositores recuou expressivamente de dois anos para cá, segundo os dados do Barômetro. No Paraguai e no Chile, houve mesmo ligeira melhora do índice, com 52,4 pontos (mais 4 em relação a 2010) e 56,6 (mais 4,7), respectivamente. No Equador, o índice ficou em 43,4 pontos, à frente apenas de Honduras, com 36,6. A Argentina tinha o maior nível de tolerância na região em 2008, quando o Barômetro passou a incluir o país e Cristina Kirchner cumpria seu primeiro ano de mandato. Lá, o índice ainda é invejável, de 58,6 pontos, o segundo melhor da região, atrás apenas do Uruguai (64,4), mas representa um recuo de expressivos 8,8 pontos desde 2008. Na Venezuela, houve uma queda de 66,5 para 54,2 pontos, de 2007 para 2012. Mesmo assim, o país se mantém em nível razoável na comparação com os números da região.
Para analistas do Barômetro ouvidos pelo Valor, não é incomum, na América do Sul, que os próprios governos sejam responsáveis por alimentar o fenômeno captado pela pesquisa. É o caso do Equador, onde o índice de tolerância (43,4) é o segundo mais baixos da região, à frente apenas de uma Honduras em grave crise econômica e política. A liberdade de expressão é o direito que os apoiadores do presidente Rafael Correa menos querem partilhar com quem discorda da linha do regime. Uma explicação possível é a verdadeira cruzada contra a imprensa promovida pelo governo. Segundo a organização não governamental Repórteres Sem Fronteiras, mais de uma dúzia de veículos de comunicação críticos ao presidente encerraram suas atividades entre janeiro e setembro de 2012.
Cartes, candidato à Presidência do Paraguai pelo Partido Colorado (acima)
'É indubitável que houve um aumento da intolerância', diz Simón Pachano, doutor em ciência política e professor da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais. 'O conceito de democracia de Correa se reduz ao triunfo nas eleições. Não está presente aí o enorme componente liberal da democracia contemporânea, que garante a discrepância, sustenta o pluralismo, permite o desempenho da oposição e torna possível a alternância. Isso leva a que os aspectos positivos deste governo - especialmente em infraestrutura, educação e reforma do Estado - passem a segundo plano, em razão de uma clara deterioração da convivência democrática.'
Na Argentina, afirma Miguel de Luca, professor da Universidade de Buenos Aires e presidente da Sociedade Argentina de Analistas Políticas (Saap), a política se polarizou desde a chegada dos Kirchners ao poder, e as preferências dos cidadãos se dividiram em duas partes, de posições irreconciliáveis. 'Tal situação tem se expressado em manifestações públicas carregadas de intolerância. Uma divisão desse tipo tinha sido registrada há várias décadas, com a chegada de [Juan Domingo] Perón, em 1946, mas a dura confrontação entre peronistas e antiperonistas havia se diluído com o passar do tempo.'
Na Venezuela, em 2012, um ano depois de ser ameaçada de morte por uma militante do chavismo, Rayma Suprani prestou queixa ao Ministério Público, mas o objeto da ação já era outro. Chargista crítica de Chávez, ela foi acusada, num programa da VTV - a rede pública nacional venezuelana - de 'servir ao império' americano e de ter atitudes racistas. A investigação está parada, diz ela, mas os ataques não. 'Recebo ameaças verbais pelas redes sociais toda vez que o governo se incomoda com uma mensagem crítica ou uma charge. Na Venezuela, pode-se falar de tudo, mas, como nas ditaduras, isso traz consequências', diz.
'O presidente se encarregou de dizer em longos pronunciamentos pelo rádio que todo aquele que não o acompanha é inimigo da pátria, é um traidor e todos os que fazem oposição são pagos pelos Estaos Unidos' afirma Vladimir Villegas, ex-presidente da VTV, irmão do atual ministro das Comunicações e ex-embaixador no Brasil.
Lionel Muñoz Paz, professor de História da Universidade Central da Venezuela e defensor do líder bolivariano, sugere que a questão da tolerância com opositores seja olhada numa perspectiva de mais longo prazo do que a do Barômetro. 'Fiz parte de uma geração estudantil, nos anos de 1980, que foi massacrada. Hoje, me alegra muito que os estudantes façam oposição ao presidente Chávez e não sejam objeto de tortura, de vexame e de segregacionismo', diz. 'Centenas de venezuelanos desapareceram na década de 1960, no tempo da chamada democracia representativa. Acho que essa oposição hoje tem muito mais garantias, muito mais possibilidades em termos históricos.'
Muñoz ressalta ainda que, em termos de participação política, Chávez foi responsável também por implantar, com a Constituição de 1999, a possibilidade de revogação do mandato, pelo voto popular, de qualquer membro eleito do governo - o próprio presidente foi submetido a um escrutínio, em 2004 - e instrumentos de democracia direta. Além disso, afirma, foi responsável por promover a inclusão social - sob o atual regime, a Venezuela se tornou um dos países menos desiguais da América Latina, com um coeficiente de Gini de 0,397 em 2011, segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe.
No Equador, a liberdade de expressão é o que os apoiadores do regime menos querem partilhar com os opositores
O país, aliás, viu o apoio ao sistema político vigente disparar na mesma intensidade que a intolerância, nos últimos dois anos, fenômeno que se verificou também no Equador e na Argentina. Para o ex-embaixador Villegas, o vice-presidente venezuelano, Nicolás Maduro, só precisa manter o rumo para, no curto prazo ou médio prazos, vencer eventuais novas eleições. É pouco provável, acrescenta o diplomata, a emergência de rusgas internas que possam enfraquecê-lo.
'Maduro é a primeira opção, está legitimado, e não está debilitado neste momento. Teria que ter um governo muito errático para se debilitar. Teria de haver questões econômicas que afetassem a popularidade do governo, como mais inflação, piora na qualidade de vida', afirma Villegas.
Ainda é uma incógnita se voltará a haver eleição presidencial na Venezuela. Para Peter Hakim, presidente emérito do centro de estudos Interamerican Dialogue, dos EUA, está aí o principal desafio à democracia latino-americana neste ano. 'Seria um grande revés se a Venezuela abandonasse um dos elementos básicos da democracia. É perigoso. Se eles realizarem eleições livres, não importa quem ganhe, será importante para um país que está próximo de perder seu status democrático.'
No Equador, Correa já pediu licença da Presidência, embora não fosse necessário, para fazer campanha. Está a todo vapor. Daqui a três semanas, ele disputará sua terceira eleição consecutiva, o que lhe permitiria arredondar uma década no cargo. Uma pesquisa recente, da empresa Market, lhe dá 49% das intenções de voto, contra 18% do segundo colocado, o banqueiro Guillermo Lasso. Pachano, porém, acusa o Conselho Nacional Eleitoral de, no ano passado, obrigar todos os partidos a um recredenciamento que só teria favorecido a Aliança País e a candidatura de Correa.
'Não estou dizendo que sejam autoritarismos puros, mas também não estamos diante de democracias plenas', diz Flavia Freidenberg, diretora do Instituto de Iberoamerica da Universidade de Salamanca, na Espanha. 'Parece que são regimes híbridos, nos quais há instituições democráticas, mas algumas práticas não são totalmente democráticas. No que toca ao exercício do poder de forma republicana, há muito por fazer.'
Como uma eventual vitória do chavismo na Venezuela não deve conter seu esvaziamento no plano regional - avalia Vladimir Villegas - é um Correa reeleito quem terá papel mais expressivo. Para Hakim, o posicionamento de Brasília sobre a democracia do tipo equatoriano - que ele não considera 'total' - será um dos fatos-chave na definição das características da democracia na região em 2013.
Em terras portenhas, a boa sustentação identificada pelo Barômetro pode, indiretamente, tornar mais nítido o sonho de re-reeleição de Cristina Kirchner - que somaria 16 anos na Casa Rosada, quatro como primeira-dama. O país realiza eleições legislativas em outubro, quando a presidente terá oportunidade de ampliar a base no Congresso para tentar reformar a Constituição. O cenário é difícil, mas não improvável, entende Miguel De Luca, da Saap.
'Atualmente, o governo conta com o sólido apoio de um terço do eleitorado. Mas esse número pode aumentar se a situação econômica melhorar ou se a oposição não apresentar alternativas viáveis', afirma. 'E a oposição tem dois problemas. Primeiro, falta de propostas alternativas ao governo de Cristina. Segundo, sua fragmentação e incapacidade para fazer acordos não só políticos, mas coligações eleitorais.'
Se no eixo de cores mais - ou menos, no caso argentino - bolivarianas as condições são favoráveis ao governo e desfavoráveis ao exercício da oposição, em Honduras o cenário é de crise iminente.
'O governo está praticamente sem caixa para pagar os próprios funcionários', avalia o ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Tegucigalpa, Antônio Carlos de Salles Menezes. 'O presidente [Porfirio Lobo Sosa] desde o princípio acenou com uma espécie de reconciliação nacional e total tolerância com a crítica. Mas o país tem problemas econômicos e sociais, pobreza, insegurança, violência urbana.'
O país, palco de uma das mais marcantes ações diplomáticas brasileiras na região durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deve continuar instável, sugerem dados do Barômetro. O governo, se ficar de pé, provavelmente estará nas mãos do mesmo Partido Nacional acusado de orquestrar a derrubada de José Manuel Zelaya Rosales e que comanda Honduras desde então. Xiomara Castro, mulher do presidente deposto, tem poucas chances de vencer as eleições de novembro. O favorito é Juan Orlando Hernández, presidente do Congresso, que em dezembro destituiu quatro juízes da Corte Suprema.
No Paraguai, outro cenário onde o Itamaraty tomou a frente no balé diplomático regional, as eleições de abril deste ano devem restituir o comando ao Partido Colorado, do ex-ditador Alfredo Stroessner. Em seis décadas, a legenda só ficou de fora do Palácio de los López durante os últimos quatro anos. O candidato é o empresário Horacio Cartes, que tem suado mais para se defender de suspeitas de ligação com o narcotráfico do que para enfrentar uma fragmentada oposição.
Indecisão do Brasil sobre quanto vai querer se envolver em promover a democracia deve estar decepcionando os EUA, diz Hakim
'Acho que a alternância mostra que existe uma democracia viva no Paraguai', observa o senador colorado Hugo Estigarribia. 'É o partido majoritário. Significará a volta de um partido poderoso à condução nacional, com um perfil diferente, que aprendeu com os erros.'
As crises institucionais paraguaia e hondurenha deixaram claro o interesse do Brasil em atuar na definição do conceito de democracia latino-americana. Isso é positivo, diz Flavia Freidenberg, do Instituto de Iberoamerica da Universidade de Salamanca. É bom, mas insuficiente, avalia Peter Hakim, do Interamerican Dialogue. 'O Brasil ainda não se decidiu sobre quanto vai querer se envolver em promover a democracia. Os EUA, certamente, estão desapontados com o fato de as posições do país não terem sido mais duras' [em defesa da democracia], diz Hakim. 'Como o Brasil reagirá ao desenvolvimento dos fatos, não só na Venezuela, mas também em Honduras e no Paraguai? Tudo isso vai ser olhado de perto.'
'O Brasil está fazendo sentir seu peso na região, como uma espécie de irmão maior que legitima e deslegitima governos. Isso pode ser positivo, mas pode ser perigoso também. Deu legitimidade a procedimentos que se aplicaram na Venezuela e que, no meu juízo, não estão totalmente de acordo com a Constituição', afirma o ex-embaixador Villegas. 'Converteu-se num hábito deste governo [chavista] violar a Constituição, os direitos sindicais, políticos, manter medidas restritivas de liberdade de expressão. Não sei por que o Brasil, tão próximo, não vê isso.'