O GLOBO, 05 Jul 2012
Equívocos ameaçam o Mercosul
Brasil e Argentinarepetiram a rapidez do Congresso paraguaio na aprovação do impeachment de Fernando Lugo e produziram, de maneira também quase instantânea, uma crise de desfecho imprevisível no Mercosul.
Alertada pela colega argentina, Cristina Kirchner, ainda na Rio+20, a presidente Dilma Rousseff teria batido o martelo, sem maiores reflexões, pela exclusão do Paraguai do acordo comercial, por ter supostamente incorrido na 'cláusula democrática' do grupo, ao dar um 'golpe parlamentar' no aliado Lugo, ex-bispo de figurino bolivariano.
No encontro de cúpula do Mercosul, já em Mendoza, Argentina, a governante brasileira pediria licença aos presentes para uma conversa 'política' a sós com Cristina e José Mujica, a fim de aplacar dúvidas que se abateram sobre o presidente uruguaio quanto a questões jurídicas acerca da maneira como foi afastado um sócio fundador do bloco.
A operação foi dada por concluída com a, também relâmpago, inclusão da Venezuela de Chávez no Mercosul, pois o único obstáculo a este antigo projeto de bolivarianos e simpatizantes havia sido cassado, o Congresso paraguaio, mesmo que temporariamente. Pareceu mais um fruto do realismo fantástico latino-americano: o Paraguai foi punido por um alegado 'golpe' contra a democracia - embora nenhum dispositivo constitucional tenha sido contrariado no impeachment - e terminou beneficiado um país cujo regime pode ser tudo menos democrático.
Parecia uma manobra maquiavélica exitosa. Longe disso. Além de fissuras diplomáticas graves no Cone Sul permitidas pelo Brasil, cuja diplomacia historicamente trabalhou para livrar a região de tensões - desta vez, fez o contrário -, há desdobramentos complexos de curto e médio prazos.
No Uruguai, o Senado aprovou a convocação do chanceler, Luis Almagro, para se explicar. Mujica teve ainda de ouvir críticas do próprio vice-presidente, Danilo Astori, segundo o qual, em entrevista ao 'El Observador', o que aconteceu em Mendoza foi uma 'ferida institucional muito grande, talvez a mais grave nos 21 anos de Mercosul'.
Em Assunção, o clima está mais tenso, como era de se prever. A comissão de assuntos exteriores do Senado pede a expulsão do embaixador e adidos militares venezuelanos, envolvidos numa história preocupante de contatos com oficiais paraguaios, para instigá-los a manter Lugo. Seria um golpe de fato, de pedigree chavista.
Se já não fossem suficientes os problemas comerciais entre Brasil e Argentina, criou-se uma tempestade político-diplomática. No dia 31, em reunião no Rio, o Mercosul precisa referendar as mudanças. Em tese, há uma chance de o desvario ser revisto, mas não se pode contar com tamanho bom-senso.
O que acontecerá se o Paraguai, ao retornar depois das eleições do ano que vem, como está acertado, pedir que sejam anuladas as decisões de Mendoza? Mais tensões pela frente. E, como todas as decisões no bloco têm de ser por unanimidade, haverá pelo menos um país disposto a dar o troco pela agressão sofrida. O Mercosul não precisaria de Chávez para travar de vez. Mujica, por sua vez, desembarcou em Montevidéu contente por ter conseguido sinal verde, disse, para firmar acordos bilaterais na América Latina. Se esta foi uma contrapartida ao Uruguai para ele concordar com tudo, abriu-se de vez uma fenda no acordo aduaneiro. A ideologia ainda destruirá o Mercosul.
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Folha de S. Paulo, 05 Jul 2012
Democracia paraguaia
Ives Gandra da Silva Martins
O assunto é geopolítica latino-americana
O processo paraguaio foi digno de grandes democracias. Mas Dilma se curva aos aspirantes a ditadores vizinhos, como o líder da Venezuela e a da Argentina.
Em 1991, fui convidado pelo Ministro da Justiça do Paraguai, com constitucionalistas de outros países latino-americanos, para proferir palestras sobre a Constituição brasileira. Á época, o Paraguai se encontrava em processo constituinte, em vias de promulgar a Constituição que hoje rege os destinos da nação.
Entre os temas que abordei, expliquei que toda a Constituição brasileira fora formatada para um regime parlamentar de governo, só na undécima hora tendo se transformado numa Lei Maior presidencialista.
Talvez por essa razão, o equilíbrio de Poderes foi realçado ao ponto de, apesar de nossas crises políticas -impeachment presidencial, crise do Orçamento, dos anões, superinflação, alternância do poder, mensalão etc.-, jamais alguém ter falado em ruptura institucional.
O cientista político Arend Lijphart, em seu livro 'Democracies', de 1984, detectou, em todo o mundo, apenas 20 países em que não houvera ruptura institucional depois da Segunda Guerra.
Desses, 19 eram parlamentaristas. Apenas um, os EUA, era presidencialista. Ulisses Guimarães me pediu o livro emprestado, mas preferi enviar um exemplar -lembrando da advertência de Aliomar Baleeiro, que dizia ter amigos que fizeram sua biblioteca com livros emprestados.
Sou parlamentarista desde os bancos acadêmicos, e sempre vi no parlamentarismo um sistema de 'responsabilidade a prazo incerto': eleito um irresponsável para a chefia do governo, ele pode ser afastado, sem traumas, tirando-lhe o Parlamento o voto de confiança.
Já o presidencialismo é um regime de 'irresponsabilidade a prazo certo', pois, eleito um irresponsável, ele só pode ser afastado pelo traumático processo de impeachment.
O Paraguai adotou o regime presidencial, mas, no artigo 225 de sua Constituição, escolheu instrumento existente no sistema parlamentar para afastar presidentes que:
a) Tenham mau desempenho;
b) Cometam crimes contra o Poder Público;
c) Cometam crimes comuns.
Tendo recebido um voto na Câmara dos Deputados e quatro no Senado, Lugo foi afastado do governo, nos estritos termos da Constituição, por mau desempenho.
É de se lembrar que o Parlamento tem representantes da totalidade da nação (situação e oposição). O Executivo, só da maioria (situação).
Tanto foi tranquilo o processo de afastamento no Paraguai que não existiram manifestações de expressão em defesa do ex-presidente. As Forças Armadas nem precisaram enviar contingentes à rua, e Lugo continuou com toda a liberdade para expressar as suas opiniões e até para montar um governo na sombra.
Processo digno das grandes democracias parlamentares. Mas difícil de ser compreendido pelo histriônico presidente venezuelano, que usa todos os meios possíveis para calar a oposição e a imprensa, pela aprendiz de totalitarismo que é a presidente argentina, que tudo faz para eliminar a imprensa livre em seu país, ou pelos dois semiditadores da Bolívia e do Equador.
O curioso foi o apoio da presidente Dilma a essa 'rebelião de aspirantes a ditadores', pisoteando a democracia e a Lei Suprema paraguaia a fim de facilitar a entrada no Mercosul de um país cuja monoeconomia só permitirá a seu conturbado presidente permanecer no poder enquanto o preço do petróleo for elevado.
Decididamente, a ignorância democrática na América Latina tem um passado fantástico e um futuro deslumbrante.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 77, advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra, é presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio
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Argentina acabará com o Mercosul, diz consultor brasileiro
(Folha se S. Paulo, 05 Jul 2012)
Para Rubens Barbosa, ex-embaixador nos EUA, ações recentes de Cristina Kirchner são prejudiciais ao bloco
Segundo Barbosa, que hoje preside conselho da Fiesp, país vizinho põe entraves a negócios com os brasileiros
SYLVIA COLOMBO
DE BUENOS AIRES
'A Argentina será responsável pelo fim do Mercosul.' A frase de Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e Londres e atual presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de SP), ecoa na mídia argentina com destaque nos últimos dias.
Em entrevista à Folha, Barbosa explicou por que fez a declaração à imprensa do país vizinho. Segundo ele, ações recentes do governo Cristina Kirchner têm sido extremamente prejudiciais ao bloco.
Em primeiro lugar, por causa das travas às importações, que os argentinos vêm impondo com mais vigor desde fevereiro.'Estão bloqueando o Brasil, mas deixando entrar outros países. Essa medida não ajuda a incrementar a indústria local e ainda prejudica os vizinhos.'
Em segundo lugar, por alimentar um ambiente de insegurança para os negócios na regiãodepois de nacionalizar 51% da petrolífera YPF.
Sobre o Paraguai, Barbosa diz que a Argentina foi quem tomou a posição mais radical desde o princípio, ao retirar seu embaixador e não reconhecer o novo governo paraguaio. 'Se dependesse da Argentina, haveria ainda sanções econômicas - ou seja, causaria um problema para a estabilidade da região.'
Ele acrescenta que a pressão para que a Venezuela integrasse o bloco começou em 2006, pelas mãos da própria Argentina. 'É errado aprovarem a entrada da Venezuela estando o Paraguai só suspenso. Se tivesse sido expulso, tudo bem, mas ainda é país-membro e tinha de ser respeitado. Isso fere o tratado.'
Para o ex-embaixador, o Brasil meteu-se em um 'imbróglio' ao respaldar a entrada da Venezuela, pois o país caribenho terá de fazer muitos ajustes em suas relações comerciais e diplomáticas para integrar o bloco. 'Como fica a questão de Israel, por exemplo, com quem o Mercosul tem acordo, mas a Venezuela não tem relações?'
Por meio da Fiesp, Barbosa tem acompanhado as dificuldades dos empresários brasileiros em concluir negócios com a Argentina.
'Os ministros, os técnicos brasileiros vão à Argentina, fecham acordos, depois eles param nas mãos do [secretário de Comércio Interior] Guillermo Moreno. Porque tudo virou uma questão política.'
Por fim, considera que o governo brasileiro deixa a Argentina ultrapassar limites. 'Aqui se defende a teoria de que a relação com a Argentina deve ser mantida a qualquer custo, mas o fato é que os argentinos estão extrapolando. Esse comportamento, no fim das contas, levará ao desmanche do Mercosul.'
Frases
'É errado aprovarem a entrada da Venezuela estando o Paraguai apenas suspenso. Se tivesse sido expulso, tudo bem, mas ainda é país-membro e tinha de ser respeitado'
RUBENS BARBOSA
ex-embaixador nos EUA