ENTREVISTA DE DILMA AO JORNAL ARGENTINO ‘LA NACIÓN’
"NINGUÉM PODE afirmar que o REAL não vaI deSvalORIZAr"
A presidente falou do real antes de sua viagem à Argentina
Domingo, 30 de janeiro de 2011
Dilma, sorridente, no encontro com jornalistas do ‘LA NACION’.
Por: Alberto Armendariz – Correspondente no Brasil
TRADUÇÃO DE FRANCISCO VIANNA
BRASÍLIA – Todos os refletores estão sobre ela e ela sabe muito bem disso. A poucas horas de aterrissar em Buenos Aires em sua primeira viagem ao exterior desde que tomou posse no cargo de presidente do Brasil, em 1 deste mês, Dilma Rousseff se mostra muito cautelosa em suas declarações à imprensa argentina. Escolhe com precisa objetividade cada palavra, cada gesto, e até seu sorriso mostra um ritmo metódico que se funde com o apuro de sua discreta maquiagem.
Está consciente de que, após herdar o poder do popularíssimo Luiz Inácio Lula da Silva, as expectativas em torno dela são enormes. De um dos temas mais sensíveis para a relação bilateral do Brasil com a Argentina – como uma possível desvalorização do real – disse que "no mundo de hoje ninguém pode afirmar" que a moeda brasileira não desvalorizará. E intuí também que, na sua primeira reunião oficial com a presidente Cristina Kirchner, as comparações estarão na ordem do dia.
"Pretendo ter uma relação extremadamente próxima da presidente Kirchner", adverte a mandatária durante uma entrevista conjunta com os jornais argentinos ‘La Nacion’, ‘Clarín’ e ‘Página 12’, numa sala de reuniões contígua a seu gabinete de despacho no terceiro andar do Palácio do Planalto.
A sóbria, mas um tanto alegre decoração da sala – com orquídeas, jarras coloridas e um tapete com motivos florais – assinala que esta tecnocrata e ex-guerrilheira, de 63 anos, que fez história ao converter-se na primeira mulher presidente do Brasil, está disposta a marcar um estilo diferente, mais austero do que o de seu predecessor. “Destoa” apenas a presença de um crucifixo barroco de madeira e prata, talvez colocado no local para marcar um esforço de marcar uma ‘boa vontade’ com a igreja católica, com a qual teve problemas durante a campanha eleitoral, quando foi acusada por clérigos de ateísmo marxista e favorável ao aborto.
Acompanhada de sua ministra de Comunicação Social, Helena Chagas, e seu porta-voz, Rodrigo Baena – que anotavam tudo –, Dilma procurou se apresentar sólida e afável, mas não chegou a se soltar senão no final da entrevista, quando se referiu a sua querida Buenos Aires e ao seu gosto pelo tango.
O que representa para a senhora o fato de os países mais importantes da América do Sul estarem, agora, presididos por mulheres?
- É algo para celebrar, uma demonstração de quanto evoluíram suas sociedades, no sentido de superar o tradicional preconceito contra a capacidade da mulher. Para mim é significativo também termos tido o exemplo da eleição de um indígena na Bolívia e de um operário metalúrgico no Brasil. A América latina está dando um exemplo ao mundo de que certos preconceitos e bloqueios econômicos e sociais estão sendo superados. Isso representa uma maior ‘democratização’ de nossas sociedades e de nossos países.
Quais são suas expectativas quanto às relações com a Argentina?
- Brasil e Argentina têm a responsabilidade perante a América latina de fazerem com que a nossa região tenha cada vez mais presença e ação no cenário internacional. E poderão conseguir isso de uma forma tanto mais efetiva, quanto mais próximas estejam suas economias, quanto mais elas se articulem e se desenvolvam, criando laços pelos quais ambos os povos ganhem com tal proximidade, em termos de desenvolvimento econômico e tecnológico, e de uma melhoria de suas condições de vida. Além disso, temos uma proximidade facilitada pelo fato de sermos mulheres que ora representamos duas grandes economias da região. Brasil e Argentina articulados, com líderes mulheres, terão chance de exercer uma presença maior nos organismos internacionais, como o G-20 o G-77. A relação bilateral é muito importante também para a UNASUL. O Brasil tem um compromisso – que assumiu fortemente desde o governo Lula, e ao qual vou hoje dar continuidade e aprofundar – é que percebemos que o destino do Brasil, seu desenvolvimento e a melhora das condições de vida do brasileiro tem que estar ligadas e compartilhadas com o resto da nossa América. Daí a importância que dou à UNASUL e ao MERCOSUL. O mundo globalizado exige a formação de blocos regionais. Para mim, é uma relação estratégica. Por isso, o primeiro país que vou visitar é a Argentina, porque creio que é nosso país ‘hermano’. Não estou subestimando nenhum outro vizinho, como Paraguai, Uruguai, Colômbia, Venezuela ou Peru, mas é até intuitivo politicamente para os outros países que a Argentina e o Brasil estejam juntos e, se possível, bem afinados.
Qual será o foco dessa primeira visita?
- Pela minha agenda, o foco é o seguinte: o governo brasileiro assume, uma vez mais, o compromisso com o governo argentino de praticarmos uma política conjunta e estratégica de desenvolvimento da região. Para nós, o desenvolvimento do Brasil tem que beneficiar o conjunto da região. Um exemplo: teremos uma política muito forte de criação e desenvolvimento de provedores para a exploração e processamento do petróleo da campa do pré-sal (nas profundezas marinhas). Nós temos uma política de conteúdo nacional e contemplamos uma política de conteúdo regional conjunta com a Argentina. Construímos uma agenda na qual Argentina e Brasil, que são países com grandes recursos alimentares e energéticos, possam aumentar o valor agregado e a oferta de emprego na região. Com a Argentina, queremos uma sociedade na área de tecnologia e inovação; uma sociedade no uso da tecnologia nuclear para fins industriais pacíficos. Vou me concentrar na idéia fundamental de uma relação especial, estratégica, com a Argentina. Essa é a idéia motriz, que se manifestará em todas as áreas de interesse dos dois países, ou seja, a de parceria justa e produtiva.
- Regularmente, nossos países têm arestas comerciais bilaterais e agora também problemas relativos ao sistema cambial. Como se situará o Brasil com relação a isso?
- Brasil e Argentina sofrem, como todos os emergentes, as consequências da política de desvalorização monetária praticada pelas duas maiores economias do mundo. Nossa posição no G-20 deve ser a de reagir contra essa política – a de desvalorização da moeda –, que sempre trouxe ao mundo situações de relacionamento internacional que se mostraram complicadas e até perigosas. As desvalorizações competitivas provocaram várias crises econômicas e disputas políticas e ela não é boa para qualquer país emergente. Os Estados Unidos, especialmente, que detêm a moeda que é a reserva mundial de valor, deve considerar isto. Por outro lado, não temos que aceitar políticas de dumping ou mecanismos de competição inadequados que não se baseiem em práticas transparentes e justas; devemos reagir perante tais desvios. Mas, também, sabemos que o protecionismo no mundo não leva a lugar nenhum. As perdas não se restringem aos que estão se defendendo, mas se estendem a todo o sistema.
- As medidas que o Banco Central brasileiro vem adotando para evitar a supervalorização do real frente ao dólar não estão dando o resultado esperado, e na Argentina existe o temor de uma eventual desvalorização do real. A senhora poderia afirmar que isso não vai ocorrer?
- Ninguém, no mundo, pode afirmar isso. Nos tempos mais recentes, temos conseguido manter o dólar dentro de uma faixa de flutuação, ou seja, não temos tido nenhum ‘derretimento’ como se diz por aí. O real oscilou todo esse tempo entre 1,6 e 1,7 (real por dólar). Agora, ninguém no mundo pode dizer que garante que isso irá continuar [a não desvalorização]. Por isso, os organismos multilaterais são tão importantes para discutir essa questão: é imprescindível que haja responsabilidade dos países desenvolvidos nessa questão.
- Esta semana, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou que visitará o Brasil em março. Significa isso uma virada de página nas relações entre Washington e Brasília depois das tensões com o governo Lula, em função do Irã?
- A relação do Brasil com os Estados Unidos é histórica e vem se transformando à medida que os dois países se desenvolverão. Hoje, fantasticamente, o Brasil tem superávit na relação comercial com os Estados Unidos; algo inconcebível pouco tempo atrás. É importantíssimo ver os Estados Unidos como um grande sócio comercial dos países da América latina. Para o Brasil, os Estados Unidos são – e sempre serão – um sócio muito importante. E, para nós, devemos sempre aumentar e melhorar o nível dessa relação. Tivemos uma boa experiência nos últimos anos e também tivemos diferenças de opinião. Mas, o que importa é perceber que esta é uma sociedade que tem um horizonte de desenvolvimento muito grande. Então, achamos que, a cada ano, vamos ter que virar a página do ano anterior.
- Tem-se dito que a senhora dará muita importância aos direitos humanos. Como se traduzirá na prática esse interesse em sua política externa?
- Não vou negociar os direitos humanos, não vou fazer concessões nessa área. Mas, tampouco aceito que os direitos humanos possam ser vistos como restritos a um país ou a uma região; essa é uma falácia. Os direitos humanos são um tema que devemos cuidar tanto em nosso país como no resto do mundo. Não vale fazer vista grossa com relação ao que ocorre em casa e ficar criticando o que ocorre em outros países. Os países desenvolvidos já tiveram problemas terríveis, como os das prisões de Abu Ghraib, e Guantánamo, mas também creio que apedrejar uma mulher [no Irã] não é algo aceitável em termos de direitos humanos. Então não creio que ter uma posição firme em torno dos direitos humanos seja simplesmente a de apontar com o dedo outros países que não os respeitam, mesmo que, em casa, nós os respeitarmos. É bom que cada um olhe para o próprio rabo, como diz a Bíblia. Muitas vezes se utilizam os direitos humanos não para proteger as pessoas, mas para fazer política, para usá-los como instrumento político. Em nome disso não vou defender a quem abusa dos direitos humanos. Mas, tampouco, sou ingênua que não possa ver quando o seu uso é meramente político.
- Nesse contexto, como a senhora vê a situação de Cuba?
- Com a libertação de prisioneiros políticos por opinião, Cuba deu um paso adiante. Tem que continuar trabalhando nesse sentido, dentro do um processo de construção de melhores condições econômicas, democráticas e políticas do país. Respeito também o tempo deles. Há que se entender que a política se faz numa determinada temporalidade. De Cuba prefiro dizer que existe um processo de transformação e creio que todos os países devem incentivar tal processo. Devemos protestar contra todas as falhas que possam existir com relação aos direitos humanos em Cuba. Não tenho nenhum problema em dizer se algo me parece que está ruim por lá, ou por aqui também, porque nós não somos um país que não tem dívidas a pagar com relação aos direitos humanos; nós as temos.
- A Venezuela está a ponto de entrar no MERCOSUL. Como a senhora vê o seu ingresso no bloco?
- É importante que a Venezuela ingresse no MERCOSUL; é bom para o bloco que outros países se somem. Isso muda o nível do MERCOSUL. A Venezuela é um grande produtor de petróleo e de gás. Tem muito a ganhar estando no MERCOSUL e nós também temos muito a ganhar com a Venezuela. Vejo com excelentes olhos a sua participação no bloco.
- Após a morte de Néstor Kirchner, qual é a sua posição frente a eleição do novo secretário geral da UNASUL?
- Isto está em processo de negociação, mas creio que sempre que se possa é benéfico que haja uma rotatividade no cargo. É um bom método porque a UNASUL é uma reunião de países na qual somos todos iguais, sentados numa mesa redonda onde não há ninguém na cabeceira. O cargo é meramente administrativo e a rotatividade nos garante que todos tenham sua hora de ocupá-lo. Nada mais justo que cada um tenha a sua vez. Esse é um princípio democrático essencial entre países soberanos. Ninguém é mais importante do que qualquer outro; cada país, um voto.