A aproximação com Ahmadinejad representou um dos maiores fracassos diplomáticos para Lula. A presidenta começa a deixar claro que o jogo mudou Isabel Clemente
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tornou o Irã numa espécie de símbolo de como sua política externa era mesmo independente. Enquanto a comunidade internacional condenava o governo do presidente Mahmoud Ahmadinejad por violar direitos humanos, financiar terroristas e conduzir um programa nuclear de intenções para lá de suspeitas, Lula resolveu se aproximar do Irã. Seu argumento era que isso teria efeitos positivos no comércio do Brasil com os países do Oriente Médio. Ele recebeu Ahmadinejad no Brasil e chegou a se engajar numa negociação para tentar evitar novas sanções contra o Irã, acusado de tentar fabricar uma bomba atômica. Em maio de 2010, Lula viajou para Teerã com líderes turcos para negociar um acordo – que fracassou. Agora, a presidenta Dilma Rousseff dá os primeiros sinais de afastamento do Irã.
Ainda não se sabe até que ponto irá essa mudança. Mas uma troca de correspondência na semana passada entre Dilma e a deputada iraniana Zohreh Elahian, que preside a Comissão de Direitos Humanos do Parlamento do Irã, revela que ela é significativa – pelo menos no que diz respeito aos direitos humanos. Em resposta a uma carta da deputada, o Palácio do Planalto informou que Dilma reitera a disposição de conferir ao tema “um lugar central em nossa política externa, sem seletividade e tratamento discriminatório”. A cuidadosa linguagem diplomática parece emitir opiniões óbvias de um governo democrático. Na realidade, a mensagem brasileira revela uma guinada na política externa de Dilma em relação à de Lula.
No ano passado, ganhou força um rumoroso debate internacional sobre a iraniana Sakineh Ashtiani, condenada à morte por apedrejamento, sob a acusação de adultério e assassinato do marido. Em agosto, Lula ofereceu asilo à iraniana e fez um apelo contra o apedrejamento. Mas, para não melindrar Ahmadinejad, caiu em contradição. Afirmou que era preciso respeitar as leis de cada país e que tinha “amizade e carinho” pelo presidente do Irã. Lula fez gestos semelhantes em direção a ditadores africanos e, durante uma visita a Havana, comparou os presos políticos de Cuba a criminosos comuns do Brasil. Um dos principais teóricos das ações de Lula no cenário internacional, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães definiu a defesa dos direitos humanos como uma tática das grandes potências para dissimular, “com sua linguagem humanitária e altruísta”, seus interesses estratégicos.
Desde que foi lançada candidata à Presidência, Dilma demonstra pensar diferente de Lula. Numa entrevista a ÉPOCA em fevereiro de 2010, ela comparou as violações dos direitos humanos no Irã às condições das prisões dos Estados Unidos em Guantánamo, Cuba, e Abu Ghraib, no Iraque. Disse que não “afiança” esses abusos, embora as relações entre países sejam soberanas. Em dezembro de 2010, depois de ser eleita, Dilma afirmou em entrevista ao jornal americano Washington Post que não apoiava apedrejamentos, não faria concessões nesse assunto e que a posição dela não mudaria depois de assumir a Presidência. Também disse que não teria votado pela abstenção quando estavam em pauta, na Organização das Nações Unidas, recomendações sobre a situação dos direitos humanos no Irã. Os representantes do Brasil argumentaram que o documento que apontava casos de violência e apedrejamentos, entre outros crimes, não passara por ampla e transparente consulta. “Não concordo com a maneira como o Brasil se absteve na ONU”, disse Dilma. Ela disse ainda que, como ex-prisioneira política, nutria um “compromisso histórico” com outras pessoas encarceradas por expressar sua opinião. E que, como mulher, não poderia concordar com apedrejamento ou com quaisquer outras “técnicas de características medievais” contra mulheres. “Não haverá concessões nesse assunto”, afirmou.
A dúvida, após a troca de correspondência da semana passada, é se a mudança da posição brasileira em relação ao Irã também se estenderá a outros assuntos além dos direitos humanos. Os especialistas em ler a linguagem cifrada das comunicações diplomáticas afirmam que a mensagem do Planalto traz implícita uma correção de rumo. Mas, embora as ações e as declarações de Dilma apontem para uma saudável revisão dos equívocos de Lula, muitas questões ainda não têm resposta. Não se sabe, por exemplo, que postura o Brasil adotará daqui para a frente em relação às relações do Irã com grupos terroristas ou às inspeções da ONU nas instalações nucleares iranianas.
"Eu não concordo com a maneira como o Brasil se absteve na ONU" DILMA ROUSSEFF, em entrevista ao jornal americano Washington Post, em dezembro de 2010, sobre a decisão do país de não condenar as violações aos direitos humanos cometidas pelo Irã
O pano de fundo para a nova postura do governo Dilma em relação ao Irã seria uma tentativa de maior aproximação com os Estados Unidos, o principal adversário do governo de Ahmadinejad no cenário internacional. O novo ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, foi embaixador em Washington, é casado com uma americana e é visto como um diplomata mais próximo dos Estados Unidos do que seu antecessor, Celso Amorim. Entre políticos próximos a Dilma, existe a convicção de que o Brasil deve tratar os Estados Unidos mais como parceiro do que como adversário no tabuleiro das relações internacionais, sobretudo diante da galopante ascensão da China.
Ao colocar o tema direitos humanos como “central” em relação ao Irã, a presidenta também dá sinais de que vai se opor à política interna de países cujas leis afrontam seus princípios. “Se essa mudança for para valer, o Brasil vai abandonar a posição anterior de nunca se pronunciar sobre assuntos internos de outros países para analisar caso a caso, o que ajudará no resgate de uma credibilidade perdida”, diz o ex-embaixador brasileiro em Washington Rubens Barbosa. A alta comissária para Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay, ainda não está convencida de que o governo brasileiro adotará mesmo uma nova política. Mas uma coisa parece ter ficado clara: Ahmadinejad, que tinha encontrado em Lula um aliado disposto a tolerar seus abusos, terá muito mais dificuldade em convencer Dilma de que fazer vista grossa às barbaridades no Irã pode trazer algum tipo de ganho ao Brasil.