Lei da Anistia não pode impedir punição de militares, afirma órgão da OEA Segundo a sentença, como responsável pelo desaparecimento de guerrilheiros, Estado deve investigar caso
BERNARDO MELLO FRANCO
A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelo desaparecimento de 62 pessoas na Guerrilha do Araguaia (1972-1975), maior foco da luta armada contra a ditadura militar. A sentença determina que o Estado identifique e puna os responsáveis pelas mortes e afirma que a Lei de Anistia não pode ser usada para impedir a investigação do caso.
O governo foi notificado ontem da decisão, aprovada por unanimidade no último dia 24. O tribunal é vinculado à OEA (Organização dos Estados Americanos). Em tese, o Brasil é obrigado a acatar suas determinações.
De acordo com a sentença, o Estado brasileiro é "responsável pelo desaparecimento forçado" dos guerrilheiros mortos pelas tropas que sufocaram a guerrilha.
Assim, deve promover uma investigação sobre os desaparecimentos "a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja".
Para a corte, as disposições da Lei da Anistia "carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação", "nem para a identificação e punição dos responsáveis" pelas mortes.
OUTROS CASOS
A decisão afirma ainda que a lei, aprovada em 1979, também não deve valer para "outros casos de graves violações de direitos humanos" durante a ditadura.
Esse trecho pode dar margem a novas condenações do país envolvendo o desaparecimento de opositores políticos do regime militar.
O texto estimula a criação da Comissão da Verdade, uma das propostas mais polêmicas do PNDH-3 (Plano Nacional dos Direitos Humanos), lançado em 2009. Ressalta, no entanto, que a iniciativa não substitui investigações no campo judicial.
O tribunal determinou que o Brasil realize "todos os esforços" para encontrar ossadas dos combatentes e promova um "ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional."
Além disso, ordenou que o governo federal crie "um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos" dirigido a "todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas".
Esse ponto deve provocar desconforto entre os militares, que travam batalha com militantes de direitos humanos contra o reconhecimento de que o Exército executou presos na guerrilha.
O caso do Araguaia se arrastava na Corte Interamericana desde 1995, quando o país foi denunciado por ONGs de direitos humanos. O julgamento só foi iniciado em maio deste ano.
O texto aprovado pelo órgão contabiliza 62 mortos, mas indica a existência de pelo menos mais oito desaparecidos no confronto.
O Itamaraty confirmou ontem que, pelas regras do direito internacional, o país é obrigado a cumprir a decisão, já que é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
Apesar do entendimento, o ministro Nelson Jobim (Defesa) sustentou este ano que o país poderia evocar a Lei da Anistia para descumprir eventuais condenações.
OEA condena impunidade no Araguaia
Corte responsabiliza governo brasileiro por morte de 62 guerrilheiros e diz que Lei de Anistia não pode impedir investigação de crimes
Marcelo Auler
A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), com sede em San José, na Costa Rica, condenou o Brasil por não ter punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos ocorridos na guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974, e determinou que sejam feitos todos os esforços para localizar os corpos dos desaparecidos.
Em sentença divulgada ontem, de 126 páginas, o Tribunal concluiu em seu comunicado oficial que o Estado brasileiro é responsável pelo desaparecimento de 62 pessoas - embora o número estimado por entidades de direitos humanos seja de 69 pessoas. A decisão determinou ainda que o Estado pague US$ 3 mil para cada família a título de indenização pelas despesas com as buscas dos desaparecidos. Estipulou também indenização a titulo de dano imaterial de US$ 45 mil a cada familiar direto e de US$ 15 mil para cada familiar não direto.
A Corte considerou que as disposições da Lei de Anistia brasileira não podem impedir a investigação e a sanção de graves violações de direitos humanos. Para ela, as disposições da lei "são incompatíveis com a Convenção da OEA, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis".
Outros casos. A decisão, embora refira-se à guerrilha do Araguaia, extrapola para outros casos quando a sentença diz que as disposições da lei "tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos". Este entendimento derruba a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou que a Lei da Anistia, de 1979, também beneficia os agentes do Estado que praticaram torturas e assassinatos.
A sentença foi provocada por três ONGs brasileiras - Centro Pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM-RJ) e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo (CFMDP-SP).
A decisão dos sete juízes estrangeiros e do juiz ad hoc brasileiro determina ao Estado brasileiro "a investigação penal dos fatos" para punir criminalmente os responsáveis. Na decisão, há determinações que certamente criarão constrangimentos, como a realização de um "ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional". Neste ato, segundo a decisão, devem estar presentes "altas autoridades nacionais e as vítimas do presente caso". Outra determinação é a da implementação em um prazo razoável de "um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas".
Falta de medidas do governo provocou decisão, diz PC do B
O presidente do PC do B, Renato Rabelo, concorda com a decisão da Corte Interamericana da OEA, mas lamentou que o governo não tenha tomado medidas previamente. "Essa decisão acaba nos constrangendo. Lutamos há muito tempo por um pronunciamento do governo brasileiro", disse.
"Como o governo não tomou medidas, abriu caminho para a sentença da OEA. O secretário de Direitos Humanos Paulo Vannuchi lutou por isso, mas não conseguiu obter uma posição explícita do governo Lula."
Governo Lula tentou tirar guerrilha da agenda
Leonencio Nossa
O governo Lula teve oito anos para evitar a condenação do Brasil na OEA pelas mortes no Araguaia. Desde que parentes de vítimas do Exército entraram com petição na OEA há 15 anos, o Estado deixou na gaveta os principais pedidos das famílias. Ao não esclarecer as mortes, o Planalto avaliou ter compensado queixas dos quartéis pela falta de investimentos.
No governo Fernando Henrique, 69 famílias tiveram direito a indenização de R$ 100 mil e se estabeleceu a responsabilidade do Estado. Ainda no governo tucano e no mandato de Lula, a política de indenizações, que tinha como objetivo atenuar a pressão das vítimas e seus familiares, transformou-se em pagamentos milionários a pessoas que disseram ter sofrido danos morais e materiais, bem longe da mata do Araguaia. Lula nada fez. A Advocacia-Geral tentou derrubar três vezes uma decisão judicial que determinou a abertura de documentos. Lula costuma dizer que militares lhe garantem que não há mais papéis. O dado concreto é que Exército e Marinha não mostram os arquivos de seus serviços de inteligência,
A pedido de Lula, o secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, evita falar da Lei da Anistia, dos anos 1970, que perdoou torturadores. A lei desrespeita a Convenção de Genebra relativa a prisioneiros, assinada pelo Brasil 20 anos antes. Dos 69 guerrilheiros mortos, 41 foram executados na prisão.
Só em 2005, na crise do "mensalão", o governo se moveu. O então secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, fez busca de corpos. A ação não teve sucesso. Em 2006, Lula disse que "a ditadura no Brasil não foi tão violenta como em outros países".