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Artigos-->MÍSTICA -- 14/11/2010 - 19:26 (Júlio Carvalho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Discurso e Mística



1. Introdução.



O termo mística nos chegou por via latina, de uma palavra grega que não só significava mistério, como iniciação nos mistérios. O nome manteve esta significação capaz de indicar a idéia de tudo aquilo que fosse impenetrável pela razão, portanto de difícil compreensão e, por extensão, o oculto no sentido religioso, mesmo que muitas vezes apareça na literatura cristã em um sentido mais amplo designando a experiência religiosa em geral e a vida espiritual como um todo.



A mística é uma forma de união do ser com Deus. A crença em um Deus já traz implícita esta relação, mas o que se trata aqui é de outra forma de aproximação, mais viva e mais forte. A questão é de se ter Deus como parte integrante da própria pessoa; trazê-lo numa união íntima; numa comunhão integral.



A Mística é uma profunda experiência da subjetividade, pois o Místico realiza uma viagem para as regiões abissais de sua interioridade, tentando criar um lugar de luz intensa e calor muito vivo que ele - o místico- sente como sendo um espaço onde conseguiu colocar o Divino. Para o judeu, para o cristão, para o muçulmano sufi, esta união total é com um outro que eles nomeiam Deus, já na mística hindu o que se procura é Brahma; uma espécie de Eu Universal.



Um poema de Hopkins enuncia literariamente este encontro:



I am gall,/ I am heartburn.God`s most deep decree / Bitter would have me taste; my taste was me;/.../ ( Estou mortificado, estou abrasado. (O mais profundo decreto de Deus teria para mim um sabor amargo; o sabor era eu mesmo) (HOPKINS. l984; )



O processo se desenvolve em etapas: uma fase inicial, difícil, em que o ser está convivendo com a sua própria pessoa e uma ulterior em que saboreia a divindade. Podemos falar em três momentos: a fase purgativa, em que o ser procura se libertar das falhas inerentes ao humano; a iluminativa, na qual se começa a entender os mistérios de Deus e a última, e mais procurada: a união. Mas para a vivência de todo este processo, nesta fase inicial acontece toda uma preparação do próprio ser. Cilveti detalha bem todos estes momentos



/.../ los períodos se caracterizam por su continuidad y por el predominio en cada uno de ellos de fenómenos que existem en los demás: al período purificativo sigue el iluminativo y a este el de únion/.../ (CILVETI. 1974;16)



O período iluminativo, nome que todos usam, corresponde, no ser que se prepara para a "via mística, a toda uma sensação de "luz": uma iluminação da alma, o início da compreensão. À "união" corresponde aquilo que impressiona a todos os que se aproximam das questões da Literatura Mística: o constante sentimento de "amor" que se enuncia a todo o momento no texto místico. Em resumo: primeiro o reconhecimento de toda limitação, de toda imperfeição e a vontade de superar tais entraves; isto conseguido vem a sensação de que o ser está sendo interiormente percorrido por uma claridade que é a própria manifestação da LUZ. A partir daí começa a verdadeira União". Neste meio tempo se processa a mortificação do "homem velho” (Cilvert) e a liberação do "homem novo". Nesta realização da mortificação o místico procura eliminar seus "apetites".



A semântica da Mística contém um amplo léxico formado por palavras que denotam uma significação relativa ao sentido de comer. Quando trabalharmos com o simbolismo do Discurso Místico poderemos tecer considerações mais aprofundadas a respeito desta questão semântica natural a uma Discurso tão dependente de todos os "sentidos"humanos.





Reparemos que para realizar este processo o indivíduo precisa experimentar uma ruptura com o mundo exterior e passar para o outro: o interior.



O exercício permanente da prática mística dá início a uma transformação da pessoa, pois o Eu habitual mais ligado ao mundo material deve se modificar para ser um Eu despojado. Verifica-se uma interessante opção de vida. Nesta forma o Ser antigo renasce (ele crê nisto!) como um novo Ser que agora vive uma existência peculiar: viver o mais possível desligado da vida comum para viver o que poderíamos chamar de vida mística. O homem comum quer ser o homem incomum, o mais possível em sintonia com a vida contemplativa.



Quando ele consegue a "sintonia"( ser com Deus nele) não há um limite de tempo para este estado, pois a própria sensação do tempo não existe, mas, todavia, o ser" iluminado"sabe que não pode conter Deus dentro de si permanentemente, mas tentará estar assim por um largo tempo.



Santa Teresa de Jesus, doutora em mística, percebeu isto ao procurar transmitir esta experiência para suas irmãs em Deus



Yo os digo, hijas, que le tengo por peligroso camino y que poderia el Demonio venir y hacer perder la devocion/.../ vi claramente que iba mal; porque como no podia ser tenerle siempre, andaba el pensamiento de aqui para allí, y el alma, me parece, como un ave revolando que no halla adónde parar/.../ (1982; 161)



Todo escritor que trata do fenômeno da Mística insiste neste aspecto da "busca da perfeição", enfatizando a experiência como uma constante educação dos sentidos e das sensações para alcançar o estágio da singularidade. Pedro Sainz Rodrigues (1984; 55) nos diz que os místicos na busca da perfeição abandonam a vontade, renunciam às exigências materiais que estão no seu dia-a-dia e adotam a ascese como via de chegar ao estado ideal. Para este autor os fundamentos da Mística são dois paradoxos: um intelectual e o outro ético.



Para o místico cristão a busca do Outro é um ato de amor, um "ágape", conforme Paulo (I Coríntios. 13); amor que começou em Deus antes da existência do homem; Deus me amou antes mesmo que eu nascesse.



O cristianismo desenvolverá, a partir dos Evangelhos e nas suas teologias, os arsenais não de Eros, mas de um Ágape sempre já apaziguado por um Pai que nos ama antes de nós termos que amá-lo/.../Paternal, narcísico, maternal: o amor cristão nutre-se de todas as fontes do desfalecimento individual e propõe o mosaico talvez mais rico de palavras que o ser humano, este precoce possesso, este apaixonado, possa querer ouvir (KRISTEVA. 1988; 82-83)



Na tradição mosaica o homem foi feito "à imagem, e semelhança de Deus", mas o cristianismo foi mais longe, porque saindo desta tradição, se estabeleceu sobre Cristo, que é o Deus feito homem e que morreu para a salvação deste mesmo homem. Quando este Deus se faz mortal ele se identifica totalmente com o homem; vive e morre como ele, portanto se Cristo deus-homem morreu e ressuscitou, o homem morrerá e ressuscitará.



Neste processo o homem cristão busca aperfeiçoar-se no Outro (Deus) que é seu igual. Obviamente o principal programa para a sua vida será o de assumir este Outro de forma total, por isso entendemos que o homem cristão nasce para (e num) viver um processo místico.



A sua busca deste Outro, por isso, será um ato de Amor (Amor Ágape) como identificação, um amor de prazer espiritual, um amor que já existe antes de se ver o outro porque já nasce com o indivíduo, mas de qualquer forma erótico.



/.../ la sexualidad se manifesta en la experiencia de lo sagrado con terrible potencia; y este en la vida erótica: todo amor es una revelación, un sacudimiento que hace temblar los cimientos del yo y nos lleva a proferir palavras que no son muy distintas de las que emplea el místico. (PAZ.l967;141)





O cristão aprende que seu corpo é a casa e a morada de Deus. Quando ele comunga, simbolicamente, abriga o próprio corpo de Cristo, por isso ele deve manter o seu corpo (e sua alma) sempre limpo, pois não se deve receber a ninguém em uma casa suja. Santa Teresa de Jesus metaforizava o corpo , mas propriamente a essência do corpo ( a alma), como um Castelo cheio de moradas.



Se o corpo é casa de Deus, o homem "casa" com o espírito de Deus: coabitarão a mesma casa. Casamento espiritual que surge para o cristão desde o início de sua vida. Por isso vemos o texto do "Cântico dos Cânticos", atribuído a Salomão, como o principal hino da mística cristã...



En el Cantar de los Cantares es donde encontram los místicos cristianos la imagineria más natural para el desarrollo del simbolismo del matrimonio. La más natural, porque además del significado que le da la Iglesia (relacion entre Dios y el pueblo judio, entre Cristo y da Iglesia /.../ encarna un arquétipo, un ideal común a los iniciados en los "misterios” /.../ la unión más íntima con la divindad (Cilvert. 1974; 64)



Como todo Amor, este também precisa ser falado e o poema de Salomão funcionará, então, como um texto fundador da "falação” da Mística cristã.



O “Cântico dos Cânticos" é assim designado por ser considerado pela tradição como o mais belo poema escrito por Salomão. O texto é composto por um prólogo, cinco poemas, um epílogo e dois poemas, em apêndice, que aos outros foram anexados muito mais por suas temáticas do que por uma relação direta com a produção principal.



O Cântico é considerado como herdeiro dos cânticos de amor egípcios e dos cânticos nupciais sírios. Seus personagens são a "esposa" (a amada), o esposo (o amado) e um coro formado pelas filhas de Jerusalém (ou filhas de Sião).



A interpretação religiosa deste poema, um texto de natureza acentuadamente erótica, o explica como um poema alegórico em que a esposa representaria o crente e o amado Deus.(ou a relação de Deus com a sua Igreja).



Devemos destacar o seguinte: em primeiro lugar; estabeleceu-se uma leitura que, de forma curiosa, deixou que se visse nos dois desejos, do crente e no de Deus, vontades fortemente embaladas por uma volição erótica.



Em segundo lugar; que todo crente, homem ou mulher, veste, no texto, a "máscara"do feminino ( ser esposa, ser a amada). Zaehner, citado por Cilveti (CILVETI. 1974; 49) do alto de sua autoridade de psicólogo católico explica que a alma (personagem-máscara do Eu - lírico) deve tomar esta forma



debe representar la mujer porq ue, en sus relaciones con Dios, es enteramente pasiva y receptiva...Es pues, comparable a la virgen que se enamora violentamente y nada desea tanto como ser poseída y asimilada por el amado. No hay que extrañarse de que los raptos de los místicos sean tan semejantes el papel feminino y Dios el masculino/.../ (CILVET.idem;49)







Se o canto enuncia o desejo do crente por Deus. e de Deus pelo crente (cujo amor é anterior ao do crente), ele manifesta a vontade do homem em assumir Deus. Pensemos: se eu sou feito à imagem e semelhança de Deus, eu estarei me desejando, então, em Deus.



Este "narcisismo” latente neste discurso sobre o desejo para com outro, que é Deus, nos faz lembrar a "Cantiga de Amigo” do Cancioneiro Galaico-português, em que o sujeito enunciador, enquanto sujeito lírico, é um homem que fala como mulher e que tem como objeto de seu canto de desejo um homem (o amigo).



Aceitar a esposa como representante simbólico do crente é admitir a relação com Deus como uma entrega amorosa e é, também, admitir que a relação erótica homem x mulher é o mais forte modelo de relação no nível de desejo. E se Deus, o esposo, "canta", admite-se, também, que este desejo é anterior a tudo, porque Deus quando criou o homem já o criou como um ser que lhe desejaria.



Por conseguinte há uma longa e demorada discussão em torno deste texto do Antigo Testamento, o que só destaca a sua significação e importância em todos os níveis. Gianfranco Ravasi, um dos muitos que têm se dedicado à hermenêutica do poema hebraico, nos parece coloca a questão de uma forma bem apropriada e gostaríamos de acrescentá-la ao que já dissemos



O Ct é, com efeito, um hino multíplice e variado do amor humano. Mas o é em forma aberta. Aberta a uma dimensão mais misteriosa e mais teológica. O Ct é certamente "humano", mas o amor por sua natureza tende ao infinito, é sinal do sagrado, é aberto intrinsecamente a Deus. Se quisermos adotar a linguagem moderna da lingüística, deveremos dizer que o Ct é comandado pela "polissemia": sobre o significado-base amoroso se ramificam de modo submisso e subentendido significados ulteriores, mas sempre radicados no primeiro e nele implícitos. (RAVASI.1988;24)





Teresa de Jesus, a doutora em mística, usa a metáfora do matrimônio constantemente em sua obra como meio de representar esta união do crente "con su Majestad":



"ya ternéis oído muchas veces que se desposa Dios con las almas espiritualmente /.../ y anque sea grosera comparación, yo no hallo otra que más pueda dar a entender lo que pretendo, que el sacramento del Matrimonio” (1982; 107).



Teresa reconhece que é estranho usar estas imagem, mas não consegue dela escapar por não haver outra maneira, de acordo com a tradição cristã, de sugerir a união mística homem com Deus.



A mística cristã é uma conseqüência antropológica desta ideologia, ou seja, uma leitura (hermenêutica) radical, feita pelo crente, de tudo o que sugere o processo, conduz a isto. Como é leitura ela é, também, discurso (escritura) na prática de si mesma e precisa ser enunciada.



A mística cristã é um procedimento do corpo e do espírito que precisa da voz para se concretizar. Existe o discurso místico porque existe a prática mística. O "Cântico dos Cânticos", por isso, é a pedra de lançamento da literatura mística cristã.



As sensações "místicas" a serem enunciadas são, logicamente, profundamente subjetivas, difíceis de serem ditas por que constituem o inefável



no se ha de saber decir, ni el entendimiento lo sabe entender, ni las comparaciones pueden servir de declararlo, porque son muy bajas las cosas de la tierra para este fin(Santa Teresa.19 ;86)



como também em São João da Cruz



Jeremias nos mostra esta incapacidade de manifestar e exprimir a linguagem divina, quando diante de Deus que lhe havia falado, soube apenas balbuciar:"A, a,a "(Jr 1,6). Esta mesma impotência do sentido interior da imaginação, e também a exterior, para exprimir a comunicação divina, foi manifestada, igualmente, por Moisés/.../ porque até mesmo a imaginação lhe parecia, não só destituida de expressão, e muito longe de poder traduzir algo daquilo que entendia de Deus/.../ (SÃO JOÃO DA CRUZ. NOITE ESCURA Liv.II Cap.XII)



e o seu falante preso à malha cultural tenderá, preferencialmente, a se manifestar sob a forma discursiva que chamamos de poesia lírica.



2. Mítica e estados d`alma.



O Eu que pretende percorrer a via mística procura alcançar uma identidade absoluta (união) com um Outro, ou seja, o Eu que ser Outro. Há uma pretensão de deixar uma identidade e assumir outra, só que esta outra será Ele próprio se imaginando transformado em um novo Eu.

Para o Eu cristão este outro é Deus, isto porque Deus pode ser ele mesmo, já que este Eu crê ser a imagem e a semelhança de Deus. No caso, este Eu quer assumir esta imagem, por isso se imagina nela e a quer como sendo, neste momento, a verdadeira imagem do seu verdadeiro Eu.

Para a imaginação mística, ao alcançar esta unidade total com o outro, o ser se presume alcançando um estado arcaico, perdido com o pecado (no caso cristão o pecado original). Portanto, esta união é um regresso. Na união mística há uma "passagem"para trás.

William James estudando a experiência mística admite que estes "estados apenas acrescentam um sentido supersensorial aos dados externos ordinários da consciência” (W.James. 19; 266). Seriam como todas as outras profundas experiências emocionais (amor,etc.) produzidas por situações das quais já temos certa vivência, mas que nos excitam complexamente quando agindo mais ativamente em nossa vida sensível.

Na experiência mística ocorre a realização de um desejo manifesto pela total necessidade de se anular uma personalidade para dar origem à outra que é absorvente.

O praticante da via mística, cotidianamente, promove o assassinato do seu Eu - real para que nasça o Eu absorvido; absorvido por algo abstrato que esta imaginação tem como concreto.

Esta mudança de estado (ou de forma!) decorre de uma atividade que age diretamente sobre os sentidos. o Eu-místico, primeiro, tem que (imaginar) ver o Outro, para depois conseguir ouví-lo, cheirá-lo, tocá-lo e sentir o seu calor. Por estas portas ele ingressa na loucura da transformação.

Segundo Laranjeiras



/.../eles diferem dos outros loucos lúcidos pela intervenção dum elemento psicopático /.../ a alucinação. São alucinações oníricas, i.e., análogas às dos sonhos, produzindo-se, como estas últimas, muitas vezes durante a noite, a meio sono, ou no sono, e também durante o dia, em condições particulares/.../ São em geral complexas: trata-se menos duma simples alucinação do que uma cena alucinatória, seguida e coerente, como acontece nos sonhos. Todos os sentidos podem tomar parte nessas alucinações: o sentido visual, sobretudo e em primeira linha, depois o ouvido, mas também o gosto, o olfato e até a sensibilidade geral /.../ (LARANJEIRAS. 19; 32-33)





A partir daí o místico fica subordinado a esta fantasia de ser o Outro e assumido por este Outro, vivendo como se dependesse da voz deste Outro que lhe comanda. Automatizado, ele vive de acordo com as convenções que acredita serem as do outro mundo habitado pelo Absoluto.



Este estreitamento psíquico, que dá ao místico o aspecto fatídico de autômato de uma entidade superior, que possui em si os destinos da humanidade enferma, opera-se pelos dois processos psicopatogênicos por que são realizadas, nas psicoses, todas as sistematições: primeiro, pela organização; segundo pela redução. Como acontece nas outras sistematizações, o místico faz convergir para a sua tendência à virtude todas as tendências que a podem exacerbar ou intensificar pelo menos (organização ou centralização) e destrói todas as tendências contrárias a esta tendência fundamental (redução). No domínio mental a redução realiza-se por um estreitamento da consciência exterior, objetiva, do não-eu, e a organização ou centralização por um acrescentamento da consciência interior, subjetiva, do eu; por uma subordinação a uma idéia /.../ o místico é sempre o mesmo autômato do seu ideal /.../ (LARANJEIRAS. 19; 36)



Depois de estar envolvido pelo processo, o ser místico não consegue viver o que poderíamos chamar de uma vida comum, mesmo que tenha plena consciência que não pode permanecer por longo tempo no estado místico, isto é, fora deste instante ele já não será o mesmo e é aí que deverá, se desejar, manifestar a sua experiência. Dissemos "se desejar", mas reconhecemos que a ressalva não é muito perfeita porque faz parte deste curioso processo a sua comunicação, pois o místico para se completar precisa dizer para os outros o que é esta experiência. Mesmo que sempre considere o que lhe acontece como inefável, ele travará uma luta contra este bloqueio para dizê-lo.



Procuraremos ver como o Discurso Místico se apresenta diante deste fato, i.e., que marcas lingüísticas denunciam este estado de coisas.





3. Preliminares ao Discurso Místico na poesia de João da Cruz.

Exulte o coração dos que buscam a Deus. (SL.104)





São João da Cruz, amigo e companheiro de Santa Teresa nas lides religiosas, é um dos mais interessantes casos de "poesia mística" na Literatura Ocidental, pois o nosso frade carmelita soube ser cristão místico radical e poeta. João da Cruz nos interessará por sua poesia, um total de vinte dois poemas, por todos considerada, independentemente de sua natureza, como importante produção da lírica maneirista espanhola.



João da Cruz procurou manifestar através de seus poemas uma posse; a sua posse de Deus que, na verdade, é a sua intenção de ser possuído por Deus. Sua obra poética comunica toda esta excessiva emoção de ter convivido com o Absoluto em um banquete espiritual, ao mesmo tempo em que o próprio poema é um ato de produção desta união e desta conquista do Absoluto. Quer dizer o poema verbaliza a experiência, mas também é parte da experiência.



Mas como o poema pode fazer parte deste processo? A partir de uma consciência de que Deus é o próprio verbo e, portanto, a palavra ser a sua morada, o seu abrigo. Não esqueçamos que o cristianismo é uma religião da palavra. O místico redescobre uma função arcaica da palavra; o místico e o poeta fazem isso.

João da Cruz é místico porque é poeta e é poeta por que é místico, ou seja, o discurso do místico está na mesma área discursiva do poema.



Por tudo o que já dissemos, gostaríamos, antes de trabalhar o texto poético de João da Cruz, de antecipar alguns pontos: a mística é a experiência com o Oculto, com o impenetrável, por conseguinte, com aquilo que está entranhado em algum lugar, nas profundezas. A manifestação verbal desta consciência nos antecipa um campo semântico básico para a linguagem mística. Palavras como: escuro, trevas - que formam o campo do não-iluminado; ou, por exemplo, luz, claridade, formando o campo do iluminado; amado, amante, amigo, pertencentes ao campo do erótico. Enfim a poesia mística articulará o Código verbal da comunicação lingüística do falante com um subcódigo preciso e pré-determinado. Esta precisão semântica conviverá com a significação do vago, com a sensação do impreciso, do inefável, com tudo aquilo que traz a marca do indeterminado, toda esta tensão entre os contrários deve, a nosso ver, justificar a presença permanente em seu corpo discursivo do paradoxo e do contraste. Feito este preâmbulo, vejamos como se apresenta na obra de João da Cruz a questão da Mística.



3.l. Uma interpretação dos poemas.



Se "Canções entre a Alma e o Esposo” não estivesse precedida do título maior CÂNTICO ESPIRIOTUAL, o leitor deste poema, além de considerá-lo uma criativa paráfrase dos "Cantares" de Salomão, ficaria entusiasmado com o sensualismo pagão pelo poema manifestado e com, por exemplo, estes versos



mira que la dolencia

de amor, que no se cura

sino con la presencia y la figura (15)



- os mais insinuativos da poesia ocidental-, seria levado, a crer que a poesia lírica espanhola do período maneirista conheceu um grande poeta, mas levando em consideração o título, que procura condicionar esta leitura para outra direção, como poderia entender este outro verso?



no quieras despreciarme,

que, si color moreno en mí hallaste,

ya bien puedes mirarme

después que me miraste,

que gracia y hermosura em mi dejaste.(18)



Começamos com estas interrogações diante deste primeiro poema de João da Cruz, um epitalâmio com metáforas báquicas e com um ritmo determinado pelas vozes em diálogo e suas emoções, deixando sentir à sensação de uma dança sensual e festiva que acompanharia o seu recitativo. Para ficar mais precisa a idéia: o ritmo que a leitura vai depreendendo sugere as figuras que falam (a esposa, o esposo, o coro) com se estivessem dançando ao mesmo tempo em que entoam seus versos. Afinal o modelo deste poema, já dissemos, é um hino de um ritual de acasalamento e o ritmo é uma força literária sempre associada ao ritual e João da Cruz, produzindo o seu poema, mantém esta unidade.



Rituales y relartos míticos muestram que es impossible dissociar al ritmo de su sentido/.../ Sabemos que rito y mito son realidades inseparables. (PAZ.l967;58)





João da Cruz, premido pelo inefável, recorre á experiência cristã já sedimentada que lhe oferecia como modelo o cântico de Salomão, mas, como todo artista (e este é um dos sinais que nos permite assim nomeá-lo) pretende ser original, buscando novas soluções e, segundo o nosso entender, consegue fazê-lo através deste sensualismo que tem um frescor todo especial. Poderíamos, até, encontrar as raízes deste sensualismo de João da Cruz na própria cultura ibérica.



Diríamos ainda mais que se trata de um sensualismo natural e sem pecado. as suas metáforas têm uma conotação erótica, mas sem uma malícia consciente que possa ser empregada para colorir o poema



!Oh cristralina fuente,

si en esos tus semblantes plateados

formases de repente

los ojos deseados

que tengo en mis entrañas dibujados!(17)



Isto é a expressão erótica de um sentimento, mas mediante um simples aprofundamento dos sentidos na vivência da união buscada e sem o recurso a uma insinuação maliciosa. Comparemos com os versos seguintes de Sóror Violante do Céu (Portugal, século XVII)



Pois estes olhos divinos,

Que nos dão tanta esperança,

Armas são também de fogo

Com que o coração se abraça

(PIRES. 1985; 123)



Na poesia da freirinha portuguesa, que também procura enunciar a união com Deus (no caso com o Cristo menino), sentiu uma malícia, uma conotação mais radical (armas são também de fogo) completada pelo abrasamento e continuada no verso seguinte.



Violante exagera com as "agudezas", levando sua expressão às fronteiras da heresia. (PIRES.1985;123)



Cremos que deixamos bem ressaltada a diferença e esclarecido o nosso raciocínio sobre o sensualismo de João da Cruz.



O espaço a ser percorrido pela "esposa” (eu - lírico) é plenamente edênico, criado por mãos divinas (! Oh bosques y espesuras,/plantadas por la mano del Amado) e tem participação ativa no contexto do poema, não podendo ser esquecido o papel de arquétipo que a natureza representa nos discursos (hinos, poemas etc.) que proclamam o acasalamento, as bodas e todo um ritual da fecundidade. Como diz o poema tudo é "la cena que recrea y enamora".



Ao vinho, símbolo do conhecimento, da iniciação, da vida e da imortalidade e usado como bebida de consagração da união nas bodas, Jesus acresceu a conotação de sangue da aliança ("este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança/.../"). João da Cruz faz com que a esposa (a alma que se inicia nos mistérios do conhecimento de Deus) sugue este vinho do próprio sangue do amado, sugerindo analogicamente a união total nestes versos que poderiam estar no poema do grande Salomão



..........

al adobado vino,

emissiones de bálsamo divino



En la interior bodega

de mi Amado bebi/.../(16)





O que nos relata o poema? O Cântico começa com as interrogações da esposa que procura o Amado (o esposo), interroga os pastores e obtém a resposta através do "coro das criaturas". Depois a esposa continua com suas indagações, ao vento e a si mesma. Ocorre, então, a primeira intervenção do esposo que a chama de volta.



A esposa afirma que no amado encontra a própria natureza, pedindo, depois, às criaturas (ninfas da Judéia) que não perturbem o encontro. O esposo também pede silêncio e declara já ter consigo a esposa protegida, no mesmo lugar em que, antes, a ela ele se uniu; lugar que, no passado, a primeira mãe (Eva) fora violada (perdera a graça de ser sem pecado).



A esposa encerra o canto fazendo referências: ao momento vivido, à visão báquica das jovens embriagadas que bailam, ao momento em que recebeu todo o saber e se colocou inteira ao serviço do esposo, para, finalmente, imaginar o que acontecerá a partir daí (o gozo e o prazer).



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