Mobilização de bispos faz Bento XVI defender participação do episcopado em questões políticas
Gerson Camarotti*
BRASÍLIA
O Papa Bento XVI disse ontem, no Vaticano, durante discurso para 14 bispos da Regional Nordeste 5 (Maranhão), que o episcopado tem “o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas”. Sem mencionar diretamente a eleição presidencial de domingo no Brasil, o pontífice criticou propostas de descriminalização do aborto.
— Quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático, que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda pessoa humana, é atraiçoado nas suas bases — afirmou o papa.
Segundo integrantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ouvidos ontem pelo GLOBO, a posição do Papa não foi casual, mas sim fruto de uma mobilização de bispos moderados e conservadores.
O próprio discurso do Papa revela que o assunto foi provocado pelos religiosos do Brasil.
— Lendo os vossos relatórios, pude dar-me conta dos problemas de caráter religioso e pastoral, além de humano e social, com que deveis medir-vos diariamente. O quadro geral tem as suas sombras, mas tem também sinais de esperança — disse o Papa.
O aborto teve destaque na disputa entre Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB). Os ataques de religiosos à petista por sua posição declarada antes da campanha, de ser favorável à descriminalização do aborto, foram apontados por analistas como um dos fatores que impediram sua eleição no primeiro turno.
Pressionada por grupos religiosos, Dilma assinou uma carta em que se compromete a, caso eleita, não propor mudanças na legislação atual sobre aborto e sobre outros temas relacionados à família e à adoração religiosa.
— Em determinadas ocasiões, os pastores devem mesmo lembrar a todos os cidadãos o direito, que é também um dever, de usar livremente o próprio voto para a promoção do bem comum — prosseguiu Bento XVI em seu discurso, disponível no site do Vaticano.
O Papa também defendeu o ensino religioso na rede de educação pública no país e o uso de símbolos religiosos em instalações públicas: — Amados irmãos, uno a minha voz à vossa num vivo apelo a favor da educação religiosa e mais concretamente do ensino confessional e plural da religião, na escola pública do Estado. Queria ainda recordar que a presença de símbolos religiosos na vida pública é ao mesmo tempo lembrança da transcendência do homem e garantia do seu respeito.
Bento XVI lembrou o Cristo Redentor, no Rio, que, segundo ele, “representa a hospitalidade e o amor com que o Brasil sempre soube abrir seus braços a homens e mulheres perseguidos e necessitados”.
Polêmica em acordo com a Santa Sé
A mensagem do Papa Bento XVI na véspera da eleição foi intencional e serviu para referendar um posicionamento político de segmentos da CNBB. Nos bastidores, cresce o descontentamento e a desconfiança com a candidatura de Dilma. Hoje, moderados e conservadores são maioria na CNBB, isolando prelados progressistas, historicamente próximos ao PT. Esse grupo majoritário não digeriu o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH 3), lançado pelo presidente Lula em dezembro do ano passado, e que previa — depois foi retirada — a descriminalização do aborto, entre itens polêmicos.
Segundo relatos, a posição de Bento XVI também foi uma espécie de resposta indireta à notícia divulgada há cerca de três semanas de que o Palácio do Planalto cogitava rever o acordo com a Santa Sé — assinado pelo presidente Lula e o Papa Bento XVI em 2008. O acordo regulamenta aspectos jurídicos da Igreja Católica no país, incluindo isenções fiscais, liberdade de credos e ensino religioso nas escolas públicas, mas sua constitucionalidade está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal por entidades civis como a OAB.
Ao GLOBO, um prelado da CNBB lembrou que, apesar das negativas do Planalto, a simples veiculação da notícia foi interpretada no Vaticano como uma espécie de ameaça velada.
Tanto que, além da questão do aborto, Bento XVI fez questão de ressaltar em sua mensagem de ontem um dos pontos fundamentais do acordo, lembrou esse bispo, a educação religiosa nas escolas públicas.
Outro forte desconforto da CNBB que ganhou ontem apoio de Bento XVI é em relação ao PNDH 3. Um influente bispo afirmou que, apesar das modificações feitas no plano, “nada garante uma não retomada dessas questões, caso Dilma seja eleita”. O Papa tocou num dos pontos mais importantes para os católicos no plano, pedindo a presença de símbolos religiosos em locais públicos.
Recado a Hugo Chávez em 2007
As palavras do Papa aos bispos do Maranhão avalizando o dever dos religiosos de emitir juízo moral em assuntos políticos acabou reforçando a posição adotada nas últimas semanas por alguns dos mais importantes bispos brasileiros, como o cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, o cardeal arcebispo de Aparecida, dom Raymundo Damasceno, além do próprio arcebispo dom Orani Tempesta.
Não é comum esse tipo de manifestação política da Santa Sé, mas também não chega a ser um fato inédito.
No papado de Bento XVI, a manifestação política mais contundente da Santa Sé ocorreu em 2007. Em fevereiro daquele ano, militantes próximos ao presidente Hugo Chávez tomaram de maneira violenta o Palácio Arquidiocesano de Caracas e desalojaram os funcionários. O Papa chegou a manifestar apoio ao arcebispo de Caracas, cardeal Jorge Urosa.
Mas a resposta mais contundente a esse episódio na Venezuela ocorreu em sua passagem por Aparecida, em maio daquele mesmo ano, quando Bento fez um discurso condenando os governos totalitários no continente, num recado ao governo venezuelano.
Já em Cuba, o processo foi diferente.
Lá, a Santa Sé trabalhou por uma aproximação com Fidel e Raul Castro para conseguir a liberdade religiosa para os católicos cubanos.
(*) Com agências internacionais
Dilma e Serra: é direito do Papa se manifestar
Declarações preocuparam, porém, o Planalto e petistas
BRASÍLIA e UBERLÂNDIA (MG). A mensagem do Papa Bento XVI aos bispos brasileiros avalizando que os religiosos devem emitir juízo moral em assuntos políticos causou contrariedade no Palácio do Planalto e na cúpula da campanha da candidata petista, Dilma Rousseff. A maior preocupação foi com a utilização que deverá ser feita por parte de prelados moderados e conservadores da orientação do Papa de rejeitar projetos políticos que contemplam aberta ou veladamente a descriminalização do aborto. Dilma, que tentou minimizar o fato, afirmou que a posição do Papa tem de ser respeitada. O candidato do PSDB, José Serra, deu respaldo à declaração de Bento XVI, afirmando que “é bom para o mundo ouvir a defesa da vida”.
Coordenadores da campanha de Dilma avaliaram que a mensagem do Papa pode resgatar a campanha religiosa feita contra Dilma na reta final do primeiro turno, quando foi explorada uma declaração da candidata em 2007 favorável à descriminalização do aborto. Dilma disse não acreditar em constrangimentos ou prejuízos para a campanha por causa do posicionamento da Santa Sé.
— Eu acho que é a posição do Papa e tem que ser respeitada. Ele tem direito de manifestar o que ele pensa. É a crença dele, e ele está recomendando uma orientação — afirmou Dilma.
Questionada sobre a campanha de teor religioso que houve contra sua candidatura, a petista discordou que haja ligação entre os fatos. Ela disse que são coisas diferentes a posição oficial da Santa Sé e a campanha pela internet feita anonimamente.
— Eu não acho que o Papa tenha nada a ver com isso. Aqui no Brasil ocorreu uma outra coisa. No Brasil ocorreu uma campanha que não veio à luz do dia.
Quem fez a campanha não se identificou, não mostrou a sua cara. E foi uma campanha de difamações, de calúnias.
E algumas delas feitas ao arrepio da lei.
Indagada sobre a posição de alguns bispos brasileiros contrários a sua candidatura, Dilma afirmou que, nesse caso, não há problema de um bispo vir a público e se posicionar sobre o tema. O problema, para ela, é quem faz campanha “por baixo do pano”. Recentemente, o bispo de Guarulhos, dom Luiz Gonzaga Bergonzini, declarou voto contrário a Dilma e chegou a classificar o PT de “partido da morte e da mentira”.
— Ele (o bispo) veio a público e falou a posição dele, uai! Nós somos contra é essa conversa que vem por baixo do pano. E essa campanha que vem por baixo do pano tenta fazer um jogo que confunde tudo.
Ela voltou a declarar ser pessoalmente contra o aborto, mas também contra a prisão de mulheres que interromperam gestação e, por isso, procuram hospitais.
Reafirmou que não faria mudança na legislação atual, que prevê abortos na rede pública para mulheres vítimas de estupro ou que correm risco de vida.
Mesmo antes de conhecer a íntegra da declaração de Bento XVI, Serra declarou que considera direito de um líder espiritual mundial fazer a defesa da vida.
— Não li a declaração na íntegra. O Papa é um líder espiritual mundial da Igreja Católica e ele tem pleno direito de emitir as suas diretrizes e orientações para os católicos do mundo. Tem plena liberdade, é um guia espiritual muito importante. E a defesa da vida é algo que merece fazer parte das palavras do Papa. Além do que é previsível, e é bom para o mundo ouvir isso, a defesa da vida.
A polêmica sobre o aborto foi um dos temas que dominaram o debate entre os candidatos no primeiro turno. Embora negue que tenha estimulado a inclusão de temas religiosos no debate, Serra acabou se beneficiando das contradições de Dilma sobre o assunto.
Desde que o assunto do aborto entrou na pauta eleitoral, Serra e Dilma passaram a priorizar encontros com líderes evangélicos e a disputar o apoio de representantes da Igreja Católica. Ontem, em meio a um encontro com líderes políticos em Uberlândia, Serra recebeu uma imagem de Nossa Senhora da Abadia, que ele beijou e acabou erguendo como um troféu em meio a um evento eleitoral. Durante seu discurso, o tucano citou um trecho bíblico. (Gerson Camarotti e Adriana Vasconcelos, enviada especial)
***
Folha de S. Paulo - 29/10/2010
Papa pede ação no Brasil contra aborto
Bento 16 diz a membros da CNBB que padres têm dever de intervir na campanha política para condenar prática
Na mensagem, pontífice afirma que em defesa da vida os sacerdotes não devem temer "oposição" nem "impopularidade"
HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA
O papa Bento 16 disse ontem em Roma que é dever dos bispos brasileiros intervir na campanha política para condenar o aborto. O pontífice afirmou ainda que descriminalização desse procedimento representa uma traição aos ideais democráticos.
Falando a bispos do Maranhão que lhe faziam a visita quinquenal em que relatam os problemas da diocese, o papa foi direto: "Quando, porém, os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas".
Bento 16 qualificou o aborto e a eutanásia de ações "intrinsecamente más", cuja descriminalização compromete a democracia.
"Caros irmãos no episcopado, ao defender a vida não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambiguidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo", diz a mensagem do papa aos brasileiros.
Nenhuma das posições defendidas por Bento 16 é nova. Elas estão consubstanciadas numa série de encíclicas, notadamente "Evangelium vitae" e "Gaudium et spes".
Mas, ao recapitular esses pontos numa mensagem direta a bispos brasileiros a três dias de um segundo turno fortemente marcado pela discussão do aborto, o pontífice dá a seu discurso um conteúdo político que, pelo menos em relação ao Brasil, é inédito -na Itália, interferências do papa já são uma tradição.
O aborto virou tema central da campanha na virada entre o primeiro e o segundo turno. Dilma Rousseff (PT) foi criticada em panfletos da Igreja Católica por ter defendido, no passado, a descriminalização do aborto.
Ela passou vários dias repetindo que é "a favor da vida" e fez uma carta a religiosos se comprometendo a não mudar a lei sobre o tema.
Ontem, José Serra elogiou o papa e disse que ele tem "pleno direito de emitir as suas diretrizes e orientações para os católicos do mundo". Dilma disse que a mensagem não afeta sua candidatura e que a posição de Bento 16 "tem de ser respeitada".
Em seu discurso, Ratzinger abordou outros dois temas presentes nas disputas culturais entre religiosos e secularistas: o ensino religioso nas escolas oficiais e a presença de crucifixos em espaços públicos como tribunais.