Deveríamos ter aprendido com a Revolução Francesa, com a russa, a chinesa e a cubana que cortar a cabeça dos líderes é inócuo
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Vocês devem ter visto os desenhos que o artista pernambucano Gil Vicente apresenta na recém- inaugurada Bienal de São Paulo, nos quais ele aparece atirando em Fernando Henrique Cardoso, cortando a garganta de Lula e matando líderes mundiais como Nethanyahu, Armadinejad, rainha Elizabeth e o atual papa.
Pronto, estabeleceu-se a polêmica. Formaram-se logo dois grupos opostos. A OAB, exercitando seu discurso jurídico, prometeu processar o artista e/ou a bienal por incitação ao crime e à violência; e, do outro lado, os curadores afirmando que isso é censura. E alçaram a palavra censura como um talismã que os protegesse.
Há aí vários mal-entendidos. Consideremos primeiro que esse episódio remete para algo conhecido no mundo antigo como morte em efígie. Não se podendo destruir o réu, destruía-se sua imagem, arrasando sua memória. Mas não é a primeira vez que na modernidade ocorre crime semelhante. Em 1965, três pintores mataram Marcel Duchamp. Gilles Aillaud, Antonio Recalcati e Eduardo Arroyo pintaram oito quadros realistas, nos quais surpreendiam Duchamp subindo uma escada, esmurravam-no, torturavam-no e jogavam-no escada abaixo nu. Duchamp, que propunha a morte da arte, não gostou de se ver morto ali. Analisando esse quadro/episódio em meu livro O enigma vazio (Rocco), dizia que não é matando, mesmo em efígie, o ícone da arte de nosso tempo que o entenderemos. O desafio é ir a fundo em sua vida&obra (foi o que tentei fazer). Além do mais, a violência dos três pintores se insere no quadro violento dos anos 1960/70, quando o pensamento totalitário à esquerda e à direita achava que pela força se resolveriam problemas sociais e políticos.
Portanto, preservando-se o direito de o artista se expressar, mas alertando para as consequências disso, não se pode deixar de ver na obra daquele artista pernambucano um paradoxal exercício da violência. A meu ver, deveríamos ter aprendido com a Revolução Francesa, com a russa, a chinesa e a cubana que cortar a cabeça dos líderes é inócuo. Por outro lado, ressurge aí a síndrome voluntarista, perversa e autoritária do “justiceiro” – figura que a sociologia estuda pertinentemente.
Isso posto, é crucial trazer à discussão uma pergunta: é o artista um cidadão acima de qualquer suspeita? Essa é uma clara alusão ao filme de Elio Petri Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto, de 1971. Naquela película, policial comete assassinato e, por pertencer a altos escalões do sistema, julga-se tão incólume que até participa das investigações. Transpondo para o caso da bienal e da arte atual, pergunta-se: estaria o artista acima de todas as leis sociais?
Para começar a entender essa pergunta, lembre-se de que a ditadura recente nos deixou marca deletéria: depois de tanta repressão, caímos na ânsia de repressão nenhuma. Mergulhamos no oposto. Por isso, o mote: é proibido proibir – que tem o seu charme juvenil, mas é um paradoxo, pois proibir a proibição é exercitar a proibição e a censura, só que do outro lado.
Por sua vez, a ideologia da pós-modernidade alardeia que tudo é legítimo, que não há fronteiras, nem valores, que as coisas se esgotam em si mesmas sem qualquer outro compromisso que não seja hedonista e narcísico. Portanto, um vetor nacional e outro internacional se complementam em forjar uma ideologia de época, que deve ser analisada cautelosamente.
Isso nos leva a um outro aspecto, já que esta 29ª bienal tem como tema Arte e política. Ora, falar da política convencional é fácil. Acusar políticos, verberar contra os militares é uma banalidade. Eles são os “outros”. No entanto, há um enfrentamento político, igualmente urgente, dentro das artes. É necessário questionar o sistema em que as artes se baseiam. Isso consiste em rever o poder dos curadores, o sistema das galerias, as premiações, a crítica universitária e jornalística, a publicidade, a bolsa de valores, enfim, o deus ex machina que, hoje, mais que nunca, controla as artes – o mercado. Para esclarecer a esquizofrenia do sistema artístico e de nossa sociedade, leiamos este poema do antipsiquiatra R.D. Laing:
Ele estão jogando o jogo deles
eles estão jogando de não jogar o jogo
se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão
quebrarei as regras desse jogo
e receberei a sua punição.
O que devo pois é jogar o jogo deles
o jogo de não ver o jogo que eles jogam.
Uma discussão radical sobre política e arte passa pelo exame interno do sistema das artes hoje e tem que enfrentar certos paradoxos, dilemas e sofismas. É uma operação tão arriscada e séria que pode levar a um suicídio histórico, a um colapso do sistema. Ou, então, o que seria admirável, ao renascimento da própria arte de forma para nós ainda inimaginável.