Entre 1967 e 1970, a estudante Dilma Rousseff combateu a ditadura militar. O que os processos da justiça militar revelam sobre a jovem que se tornou líder de uma das organizações que pegaram em armas contra o governo
Leandro Loyola, Eumano Silva e Leonel Rocha
Reprodução
Em outubro de 1968, o Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um documento de 140 páginas sobre o estado da guerra revolucionária no país. Quatro anos após o golpe que instalou a ditadura militar no Brasil, grupos de esquerda promoviam ações armadas contra o regime. O relatório lista assaltos a bancos, atentados e mortes. Em Minas Gerais, o SNI se preocupava com um grupo dissidente da organização chamada Polop (Política Operária). O texto afirma que reuniões do grupo ocorriam em um apartamento na Rua João Pinheiro, 82, em Belo Horizonte, onde vivia Cláudio Galeno Linhares. Entre os militantes aparece Dilma Vana Rousseff Linhares, descrita como esposa de Cláudio Galeno de Magalhães Linhares (Lobato). É estudante da Faculdade de Ciências Econômicas e seus antecedentes estão sendo levantados. Dilma e a máquina repressiva da ditadura começavam a se conhecer.
Ilustração: Sattu
Durante os cinco anos em que essa máquina funcionou com maior intensidade, de 1967 a 1972, a militante Dilma Vana Rousseff (ou Estela, ou Wanda, ou Luiza, ou Marina, ou Maria Lúcia) viveu mais experiências do que a maioria das pessoas terá em toda a vida. Ela se casou duas vezes, militou em duas organizações clandestinas que defendiam e praticavam a luta armada, mudou de casa frequentemente para fugir da perseguição da polícia e do Exército, esteve em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, adotou cinco nomes falsos, usou documentos falsos, manteve encontros secretos dignos de filmes de espionagem, transportou armas e dinheiro obtido em assaltos, aprendeu a atirar, deu aulas de marxismo, participou de discussões ideológicas trancada por dias a fio em aparelhos, foi presa, torturada, processada e encarou 28 meses de cadeia.
Hoje candidata do PT à Presidência da República, Dilma fala pouco sobre esse período. ÉPOCA pediu, em várias ocasiões nos últimos meses, uma entrevista a Dilma para esclarecer as dúvidas que ainda existem sobre o assunto (leia algumas delas no quadro da última página). Todos os pedidos foram negados. Na última sexta-feira, a assessoria de imprensa da campanha de Dilma enviou uma nota à revista em que diz que a candidata do PT nunca participou de ação armada. Dilma não participou, não foi interrogada sobre o assunto e sequer denunciada por participação em qualquer ação armada, não sendo nem julgada e nem condenada por isso. Dilma foi presa, torturada e condenada a dois anos e um mês de prisão pela Lei de Segurança Nacio-nal, por subversão, numa época em que fazer oposição aos governos militares era ser subversivo, diz a nota.
Dilma foi denunciada por chefiar greves e assessorar assaltos a banco
A trajetória de Dilma na luta contra a ditadura pode ser conhecida pela leitura de mais de 5 mil páginas de três processos penais conduzidos pelo Superior Tribunal Militar nas décadas de 1960 e 1970. Eles estão no acervo do projeto Brasil: Nunca Mais, à disposição na sala Marco Aurélio Garcia (homenagem ao assessor internacional da Presidência) no arquivo Edgard Leuenroth, que funciona em um prédio no campus da Universidade de Campinas, em São Paulo, e em outros arquivos oficiais. A leitura de relatórios, depoimentos e recursos burocráticos permite conhecer um período da vida de uma pessoa que mergulhou no ritmo alucinante de um tempo intenso. O contexto internacional dos anos 1960, de um mundo dividido entre direita e esquerda, em blocos de países capitalistas e comunistas, propiciava opções radicais. O golpe militar de 1964 instaurou no Brasil um regime ditatorial que sufocou as liberdades no país e reprimiu oposições. Milhares de pessoas foram presas por se opor ao regime, centenas foram assassinadas após sessões de tortura promovidas por uma horda de agentes públicos mantidos ocultos ou fugiram para o exílio para escapar da repressão.
Dilma Rousseff foi um desses jovens marxistas que, influenciados pelo sucesso da revolução em Cuba liderada por Fidel Castro nos anos 50, se engajaram em organizações de luta armada com a convicção de que derrubariam a ditadura e instaurariam um regime socialista no Brasil. Dilma está entre os sobreviventes da guerra travada entre o regime militar e essas organizações. Filha de um búlgaro e uma brasileira, estudante do tradicional colégio Sion, de Belo Horizonte, a vida de classe média alta de Dilma mudou a partir do casamento com o jornalista Cláudio Galeno Magalhães Linhares, em 1967. (Dilma) Ingressou nas atividades subversivas em 1967, levada por Galeno Magalhães Linhares, então seu noivo, afirma um relatório de 1970 da 1a Auditoria Militar. As primeiras menções a Dilma em documentos oficiais a citam como integrante de uma dissidência da Polop. Esse grupo adotou o nome de Organização. Com novas adesões de militantes que abandonaram o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), a Organização se transformou em Colina (Comando de Libertação Nacional). Em seu documento básico, o Colina aderiu às ideias de Régis Debray, autor francês que, inspirado na experiência cubana de Fidel Castro, defendia a propagação de revoluções socialistas a partir de focos guerrilheiros. A doutrina de Debray ficou conhecida como foquismo.
Ex-contemporâneos de prisão citam o apartamento de Dilma da Rua João Pinheiro, em Belo Horizonte, como um dos principais pontos de reuniões da organização. Em depoimento prestado no dia 4 de março de 1969, o militante do Colina Ângelo Pezzutti afirma que encontrou-se (com outro militante) algumas vezes no apartamento 1.001, Condomínio Solar, residência de Galeno e Dilma. Dilma é citada como responsável por ministrar aulas de marxismo, comandar uma célula na universidade para atrair novos militantes para a causa. Em princípios de 1968, o declarante, por recomendação de Carlos Alberto, coordenou uma célula política, na qual tomaram parte Dilma, estudante de economia, cujo nome de guerra é Estela, Erwin e Oscar (nomes de outros dois militantes), diz o depoimento de outro militante, Jorge Raimundo Nahas. O objetivo principal dessa célula era trabalhar o meio estudantil. Um dos universitários recrutados foi Fernando Damata Pimentel, de 17 anos. Ex-prefeito de Belo Horizonte, Pimentel é candidato ao Senado pelo PT e é um dos coordenadores da campanha de Dilma.
De acordo com os depoimentos, nas reuniões muitas realizadas no apartamento de Dilma o grupo decidia suas ações. Em seu depoimento, Nahas afirmou que parte do Colina, com o decorrer do tempo, passou a acreditar que a organização deveria ter um caráter mais militar. Foram criados setores de ex-propriação, levantamento de áreas, sabotagem e inteligência e informações. Dilma e Oscar permaneceram no setor estudantil, diz Nahas. Essa decisão marca um ponto de inflexão na curta história do Colina. O grupo passou a fazer ações armadas. O historiador Jacob Gorender, que esteve preso com Dilma no presídio Tiradentes, em São Paulo, é autor de Combate nas trevas, o mais completo relato da luta armada contra a ditadura militar. Ele afirma que o Colina foi uma das poucas organizações a fazer a pregação explícita do terrorismo.
De acordo com Gorender, em 1968, o Colina já aderira à luta armada. Segundo ele, no dia 1o de julho de 1968, o Colina matou por engano o oficial militar alemão Otto Maximilian von Westernhagen, que fazia um curso no Rio de Janeiro. A intenção do Colina era eliminar o militar boliviano Gary Prado, que estava no mesmo curso. Prado fora o responsável pela prisão de Che Guevara, o célebre líder da revolução cubana. O Colina ajudou a promover greves, assaltou bancos, roubou carros e matou policiais em confrontos em Minas e no Rio (leia o quadro na página ao lado). Na denúncia encaminhada à Justiça Militar em 1970, o juiz auditor José Paulo Paiva afirma que, no Colina, Dilma chefiou greves e assessorou assaltos a bancos. Não há registro de que Dilma tenha participado diretamente das ações armadas do Colina algo que ela sempre negou.
A série de roubos a banco, no final de 1968, pôs a polícia no encalço dos militantes. Um deles, Pezzutti, foi preso ou, no jargão da militância, caiu no dia 14 de janeiro de 1969. Torturado, Pezzutti deu informações que levaram a polícia a três aparelhos, como eram chamados os locais onde viviam e se reuniam os militantes, do Colina. Na noite de 29 de janeiro de 1969, a polícia atacou três casas em Belo Horizonte: na Rua Itacarambu, na Rua Itaí e na Rua 34. Na Itacarambu houve confronto. Quando os policiais entraram na casa, Murilo Pinto da Silva, então com 22 anos, e outro militante reagiram com rajadas de metralhadora. Os tiros mataram o inspetor Cecildes Moreira de Faria e um guarda civil chamado José Antunes Ferreira e feriram outro policial. Na Rua Itaí, a polícia achou documentos. Na Rua 34, encontrou armas e bombas. Na Rua Itacarambu foram apreendidos pistolas, revólveres, um fuzil e metralhadoras Thompson e INA, explosivos e uniformes da polícia. Banido do país em 1971, Pezzutti passou pelo exílio no Chile e depois morreu em um acidente de moto na França, em 1975.
A partir das prisões, a situação do Colina ficou difícil. Dilma e Cláudio Galeno abandonaram o apartamento da Rua João Pinheiro. A Justiça Militar abriu um Inquérito Policial Militar (IPM), conduzido pelo então coronel Otávio Aguiar de Medeiros uma década depois, promovido a general, Medeiros seria o poderoso chefe do SNI no governo João Figueiredo. No dia 11 de março de 1969, à frente do IPM que investigava o Colina, Medeiros assinou o despacho número três. O texto, de cinco linhas, ordena uma operação de busca e apreensão no apartamento de Dilma e Galeno. Eles só encontraram cadernos, documentos pessoais e livros como Revolução brasileira, de Caio Prado Júnior, e Revolução e o Estado, de Fidel Castro.
Dilma e Galeno já estavam na clandestinidade. Em depoimento prestado à Justiça Militar em 21 de outubro de 1970, Dilma afirma que o casal fugiu de Belo Horizonte com Cr$ 6.500 (cruzeiros) mais ou menos e se mantinham com esse dinheiro. Segundo o depoimento, eles passaram um mês no Hotel Familiar Baia, no Rio de Janeiro, depois foram para um apartamento na Rua Santa Clara, em Copacabana. O casal também passou alguns dias na casa de uma tia de Dilma, sob o pretexto de que estava de férias, segundo Dilma conta em depoimento. Com o dinheiro da organização, militantes como Dilma alugavam casas, dormiam no chão para não ter de comprar móveis, se sustentavam e compravam carros e armas.
Com dinheiro fornecido pela VAR Palmares, Dilma comprou um Fusca 66
Em meados de 1969, os militantes do Colina começaram a discutir uma fusão com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Liderada pelo ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, a VPR era uma das organizações mais importantes da luta armada. Lamarca abandonara o Exército ao fugir do quartel de Quitaúna, em Osasco, com um caminhão com armas e munições. Em abril de 1969, Colina e VPR realizaram um Congresso em Mongaguá, no Litoral Sul de São Paulo. Pela VPR estavam Carlos Lamarca, Antonio Espinosa, Cláudio de Souza Ribeiro, Fernando Mesquita Sampaio e Chizuo Ozawa, cujo codinome era Mário Japa. Pelo Colina estavam Dilma, seu segundo marido, Carlos Franklin de Araújo, Carlos Alberto de Freitas (codinome Breno), Maria do Carmo Brito e Herbert Eustáquio de Carvalho (ou Daniel). No meio das discussões, segundo Espinosa, Dilma e Carlos Alberto de Freitas lembraram que tinham de consultar as bases da Colina. As conversas foram interrompidas e retomadas em julho, no mesmo local. Ao final, as duas organizações se fundiram para formar a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR Palmares). Dilma e Breno temiam que a VPR fosse excessivamente militarista, afirma Antonio Espinosa. Ele veio da VPR e se tornou um dos comandantes da VAR Palmares. Ao mesmo tempo, Lamarca e Cláudio temiam que o pessoal do Colina fosse muito assembleísta, estudantil. A desconfiança era recíproca, mas não era discutida abertamente.
De acordo com os ex-militantes Espinosa e Darcy Rodrigues, a VAR Palmares teve cerca de 700 integrantes ativos em todo o Brasil. Cerca de 200 eram armados. No total, incluídos simpatizantes e apoiadores, a VAR Palmares reunia cerca de 2 mil pessoas espalhadas pelo país. A VAR Palmares durou apenas três meses, mas marcou época com a mais rumorosa ação do período. Em depoimento em abril de 1970, o militante Edmur Péricles de Camargo afirma que, um ano antes, soube da localização de um cofre com dinheiro do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros após uma conversa com um de seus contatos, Gustavo Buarque Schiller, sobrinho de Ana Capriglione, amante de Adhemar. Morto em março de 1969, Adhemar de Barros tinha a fama de ser um dos políticos mais corruptos do país. Em 18 de julho de 1969, 13 militantes da VAR Palmares, liderados por Darcy Rodrigues, invadiram a casa de Ana Capriglione e retiraram o cofre. Os US$ 2,5 milhões em dinheiro vivo, expropriados do cofre do Adhemar, garantiram tranquilidade financeira à VAR Palmares, que não precisou mais fazer assaltos para se sustentar. Na terminologia da esquerda dos anos 60, expropriação significava roubo justificado, como forma de justiça social. Metade do dinheiro de Adhemar ficou com o marido de Dilma, Carlos Franklin de Araújo. Não há registros de que Dilma tenha participado diretamente do assalto. Ela sempre disse que alusões a seu envolvimento na ação são fantasiosas a nota que sua assessoria enviou a ÉPOCA repete isso.
Na VAR Palmares, a importância de Dilma cresceu. Em várias partes do processo, ela é elogiada por sua capacidade intelectual. Ela tinha uma formação acima da maioria dos militantes, afirma Espinosa. Uma das provas da importância de Dilma é sua presença constante nos depoimentos de colegas presos. Dilma é tão citada que, em dado momento do processo, o juiz afirma que não há (necessi-dade) de especificar sua ação, pois tudo o que foi feito no setor teve a sua atuação direta.
Dilma se destacava sobretudo na parte financeira da VAR Palmares. Em seu depoimento prestado ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em 26 de fevereiro de 1970, Dilma afirma que recebeu NCr$ 25.000 (cruzeiros novos) para custeio das despesas iniciais da regional (da VAR) em São Paulo. Em depoimento, a militante Sônia Lacerda Macedo diz que entregara Cr$ 8.000 (cruzeiros) a Dilma num encontro na Avenida Ipiranga, no centro de São Paulo. Num relatório, o procurador Eudo Guedes Pereira afirma que Dilma teria recebido, no total, Cr$ 49.000 da VAR Palmares de seu marido, Carlos Franklin de Araújo, conhecido como Max. Ela era do comando nacional. Era responsável por distribuir o dinheiro, diz Espinosa. Com NCr$ 7.000 e um documento falso em nome de Maria Lúcia Santos, Dilma comprou um Fusca 1966 bege, segundo ela. Os valores citados nos depoimentos são confusos, devido à situação econômica do período. A inflação, em alta no final da década de 1960, fez com que o governo cortasse três zeros no cruzeiro em fevereiro de 1967. A moeda passou a se chamar cruzeiro novo. Em maio de 1970, como a inflação não era controlada, o governo novamente cortou três zeros e a moeda voltou a se chamar cruzeiro. Os valores citados nos depoimentos são de operações feitas pelas organizações entre 1967 e 1970. Assim, todas são em cruzeiros novos. Como muitos depoimentos foram tomados depois de maio de 1970, os militares fizeram a conversão dos valores.
A VAR Palmares dispunha de um setor de falsificações de documentos, pois até documentos falsos recebeu, disse Dilma em depoimento ao Dops. Como ela não sabia dirigir, quem conduzia o carro eram colegas como Antonio de Pádua Perosa. Perosa foi preso com Dilma num bar no centro de São Paulo. Em seu depoimento, ele afirmou que chegou a receber dinheiro roubado de Dilma. Dilma afirma em depoimento que deu NCr$ 4.000 para Perosa manter o setor de Imprensa. O militante José Olavo Leite Ribeiro afirmou que viu Dilma entregar Cr$ 800 a um casal de militantes para pagar aluguel de um aparelho. Dilma disse ainda que entregou NCr$ 1.000 a Leite Ribeiro para manutenção do setor de Inteligência da VAR Palmares.
A VAR Palmares durou apenas três meses. Rachou por divergências de orientação
A aventura da VAR Palmares acabou rápido. Em setembro de 1969, a organização fez um congresso em Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Foi montada uma estrutura de segurança para o congresso, realizado no mesmo período em que a polícia procurava os sequestradores do embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick. Segundo Espinosa, 36 delegados da organização, procuradíssimos pela polícia, se reuniram. Além deles, haveria 14 pessoas encarregadas da guarda na casa e cinco na cozinha. Na estrada de acesso, havia mais militantes em pontos com metralhadoras e radiocomunicadores. A maioria nem sabia onde estava, afirma Espinosa. Era praxe das organizações levar os militantes com óculos escuros vedados para manter em segredo a localização de aparelhos.
O esquema em Teresópolis foi mantido durante os 26 dias do congresso. As discussões começavam às 8 horas da manhã e iam até a noite, diz Espinosa. Depois, os grupos de trabalho elaboravam textos. As discordâncias entre os foquistas, que defendiam a luta armada, e os massistas, que defendiam a mobilização das massas, (grupo a que Dilma pertencia) levaram ao racha. Um grupo ligado a Lamarca preferiu sair e reativar a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). A maioria ficou na nova organização, agora chamada apenas VAR (Vanguarda Armada Revolucionária). Na saída de Teresópolis, os remanescentes da VAR, cerca de 40 pessoas, foram para um apartamento no Leblon enorme, coisa da alta burguesia, segundo Espinosa. Nesse apartamento, foi eleita a nova direção da VAR. Éramos eu, Breno, a Dilma, o Max e o Loyola, afirma Espinosa.
Espinosa caiu em novembro. Por pouco tempo, sua posição de liderança foi exercida por Dilma. Ela acabou presa dois meses depois, quando outro militante da VAR, José Olavo Leite Ribeiro, foi levado pelos militares para cumprir seus pontos. Um deles era com Dilma e Antonio de Pádua Perosa. Dilma foi presa com documentos falsos, Cr$ 200 na carteira e o Fusca. Ribeiro afirmou, em entrevista a Luiz Maklouf Carvalho, autor do livro Mulheres que foram à luta armada (Editora Globo), que Dilma estava armada. Seria natural que alguém em sua posição de liderança portasse uma arma e Dilma sabia atirar. Carregávamos cápsulas de cianeto para tomar em caso de prisão, diz Espinosa. O auto de apreensão elaborado pelo delegado do Dops Fábio Lessa de Souza Camargo, em 26 de fevereiro de 1970, não menciona nenhuma arma entre o material apreendido com Dilma. Nenhum dos outros documentos do processo faz menção ao fato.
No depoimento prestado à Justiça Militar, Dilma afirma que foi torturada por 22 dias (leia mais na reportagem da página 44). Um depoimento mais extenso, de 19 páginas, foi prestado por Dilma em 26 de fevereiro de 1970, no Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Acuada pela tortura, Dilma deu informações que levaram à captura de quatro colegas: João Ruaro, Maria Joana Teles Cubas, Carlos Savério Ferrante e José Vicente Correa, conhecido como Miguel. Eles foram pegos quando os militares levaram Dilma a locais marcados para encontros (pontos). Dilma também foi levada pelos militares a aparelhos da VAR. Dilma bateu à porta da residência do denunciado conhecido como Miguel, diz o militar Waldevir Martins Ferreira em depoimento prestado em 9 de março de 1971. Quando Ferreira se identificou, Miguel tentou fechar a porta e atirou. Ferreira foi ferido no braço. Miguel e outro militante foram presos. Nos depoimentos posteriores prestados à Justiça Militar, após meses na prisão, Dilma negou a maior parte do que dissera no Dops após as sessões de tortura. Afirma que foi torturada por 22 dias e cita nominalmente o capitão Maurício Lopes Lima, da Operação Bandeirante, como um de seus algozes.
Perseguida, presa e condenada pelos militares há 40 anos, Dilma hoje goza de tratamento especial da Justiça Militar. Recentemente, seu ex-colega Antonio Espinosa foi ao Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília. Devido a uma polêmica causada por uma entrevista, ele requereu acesso a seu processo por sua militância na VAR Palmares. Ele e Dilma fazem parte do mesmo processo. Por isso, a peça com milhares de páginas faz centenas de menções a Dilma. Espinosa pediu cópias de cerca de 400 páginas. Elas vieram com o nome da Dilma coberto por tinta preta, afirma Espinosa. De acordo com a lei, apenas os próprios réus, ou pessoas com uma procuração assinada por eles, podem ter acesso aos processos no STM. Mas apenas o nome de Dilma, entre os nomes de dezenas de outros militantes, foi ocultado das páginas copiadas a pedido de Espinosa. Recentemente, o processo de Dilma foi separado dos demais dentro do STM. Ele está guardado em um armário específico. Os funcionários têm ordens expressas para não fornecê-lo a ninguém.
É uma ironia. Aos olhos dos militares que governavam o Brasil na época, os militantes que optaram pela luta armada nas décadas de 1960 e 1970 podiam ser confundidos com bandidos comuns. Eles assaltaram bancos, lojas e quartéis para obter armas. Também executaram militares e civis. Derrotada na luta armada contra a ditadura, Dilma hoje lidera as pesquisas para as eleições presidenciais e pode ser considerada vencedora numa história difícil de avaliar. No final dos anos 60, a democracia ainda estava longe de ser um valor apreciado na América Latina. A revolução cubana exercia grande apelo entre a juventude e a opção pela luta ar-mada soava legítima para alguns. Lutei para ajudar o Brasil a mudar, e mudei com ele, costuma dizer Dilma. Militantes que pegaram em armas hoje são políticos que exercem o jogo democrático em diversos partidos diferentes. Ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), outra organização de luta armada, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB) é candidato ao Senado por São Paulo. Fernando Gabeira (PV), um dos sequestradores do embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick é candidato a governador do Rio. A vida de Dilma, deles e de muitos outros é uma prova de que o Brasil, depois de muito sofrimento, melhorou.
14/08/2010
Dilma no cárcere
O momento da prisão, a tortura e os anos no presídio Tiradentes de acordo com os relatos de quem ficou com ela na cadeia
KÁTIA MELLO
Eram 16 horas do dia 16 de janeiro de 1970, na Rua Martins Fontes, centro de São Paulo, quando Dilma Vana Rousseff Linhares foi presa. Ela carregava na bolsa uma carteira de identidade falsa em nome de Maria Lúcia dos Santos, um título de eleitor e uma carteirinha de estudante colegial, com outro nome falso, de Marina Guimarães Garcia de Castro e há controvérsia sobre a presença de uma arma. O horário e as identidades falsas constam de documentos obtidos por ÉPOCA nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Na foto, uma universitária mineira de 22 anos, cabelos castanhos encaracolados, curtos, com o rosto moldurado por óculos pretos e grossos.
Militante da organização clandestina VAR-Palmares, um grupo com raízes no movimento estudantil e no Exército que pegava em armas para combater o regime militar, Dilma é descrita na documentação como militante de esquema subversivo-terroristas (sic), uma das molas mestras e um dos cérebros dos esquemas revolucionários postos em prática pela esquerda radical e pessoa de dotação intelectual apreciável. Ela era conhecida por codinomes como Estela, Luiza e Wanda, além dos nomes que constavam em seus documentos falsos. Para reconstituir seus 28 meses na prisão, ÉPOCA consultou toda a documentação disponível no Dops e entrevistou dez ex-presos políticos que conviveram com Dilma atrás das grades em diferentes períodos.
Depois de presa, Dilma foi, de acordo com a documentação do Dops, levada diretamente para as instalações vizinhas ao quartel do Segundo Exército, na Zona Sul de São Paulo, onde funcionava a Operação Bandeirantes (Oban), um centro de interrogatório e tortura a presos políticos. Lá estava preso Antonio Roberto Espinosa, um dos líderes da VAR-Palmares. A equipe de tortura já recebia batendo, diz Espinosa. Você chegava, era algemado, descia no pátio e era recebido num corredor polonês. Ia apanhando escada acima. Chegava à sala de tortura e era imediatamente despido.
Segundo os ex-presos, os primeiros dias de tortura costumavam ser os piores, porque os interrogadores queriam extrair o máximo de informações no menor tempo possível. Na Oban, eles costumavam deixar o preso nu, sozinho, e voltavam horas depois para um novo interrogatório. Algumas mulheres eram presas grávidas. Outras estavam amamentando e eram separadas de seus bebês foi o que aconteceu com a jornalista Rose Nogueira, de 64 anos, contemporânea de Dilma na prisão. Eu tinha 23 anos e fui separada do meu bebê quando ele tinha 1 mês, diz ela.
A fotógrafa Nair Benedicto, hoje com 70 anos, também esteve presa com Dilma. Ela conta que foi levada para a Oban com o filho de 1 ano e meio, acompanhada da mãe. Eu ficava ouvindo meu filho, que já estava andando, do outro lado da cela, mexendo nos trincos, e eles me diziam: Tá vendo? Estão torturando seu filho, afirma. Nair diz que sua mãe e seu bebê só foram liberados um dia depois. Espinosa diz que, na Oban, três equipes se revezavam em turnos. Essas equipes eram dividas entre o grupo que fazia a captura dos prisioneiros e os que realizavam a tortura.
De acordo com os documentos obtidos por ÉPOCA, depois da passagem pela Oban, no dia 3 de março Dilma foi levada para o Dops, onde ficou por dois meses. Era lá que os militares faziam a ficha do preso político. Ficávamos num porão, sem claridade, com aquele cheiro de mofo. Você entrava, passava pela carceragem e havia um corredor em L, onde estava o fundão, diz Nair. Ela conta que, ali, homens e mulheres se uniam na solidariedade. Quem tinha um biscoito mandava meio biscoito para quem chegava da tortura, afirma.
Em um texto que produziu para ÉPOCA no ano passado, Dilma lembrou seus tempos de Dops. Afirmou que foi para uma cela solitária com Leslie Denise Beloque, hoje economista. Certo dia, diz Dilma, um senhor bateu com uma caneca na janelinha da cela das moças e perguntou o nome delas. Era Jacob Gorender, baiano, ex-militante do PCBR e historiador marxista. Fizeram barbaridades com ele e passamos a cuidar dele. Lavávamos sua roupa, amassávamos abacate, botávamos açúcar, limãozinho. Ficamos amicíssimas dele. A gente o achava velho, mas ele tinha 47 anos, escreveu Dilma. Nair afirma que, no Dops, quando os guardas se distraíam, era possível dar um alô para os colegas da ala masculina ou até cantar músicas juntos. Depois do Dops, alguns presos políticos seguiam para o presídio Tiradentes, que ficava na Avenida Tiradentes, Zona Norte de São Paulo. Segundo a economista Diva Burnier, de 63 anos, Dilma chegou ao presídio com Leslie Denise e sua cunhada, a pedagoga Maria Luiza Belloque.
Dilma e o ex-marido costumavam se encontrar
no pátio para visitas higiênicas
Quando a Dilma chegou no Tiradentes, ela tinha um cabelo bem curtinho, era magra e já encontrou toda uma organização. A gente já podia receber comida e livros, afirma Nair. As primeiras presas políticas do Tiradentes também chamado de A Torre , como Nair, Emilia Vioti, Maria do Carmo Campelo de Souza, Dulce Maia e Rose Nogueira, fizeram várias reivindicações de melhoria para a prisão. No começo, a gente não tinha direito a nada. Tiravam tudo, desde fivela de cabelo, brincos até os sutiãs com bojo, diz Nair. Pedi para receber livros, talheres e uma televisão. Eu só podia receber visita dos meus pais e irmãos, afirma a hoje produtora Dulce Maia, de 61 anos, que ficou meses numa solitária. De acordo com Dulce, o único a conseguir furar o cerco imposto a ela na prisão foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, então professor universitário. Não sei como ele conseguiu.
As presas contam que, logo que chegavam à Torre, eram rigorosamente revistadas, obrigadas a ficar de cócoras e apalpadas pelas carcereiras. Ao passar pelas celas das presas comuns, conhecidas como corrós o termo popular usado para descrever as correcionais, presas por crimes como vadiagem ou prostituição , ouviam os gritos: Carne fresca, carne fresca!. Fiquei aterrorizada quando cheguei ao Tiradentes, diz Diva. Era muita gente gritando. Para a maioria, porém, era um alívio chegar à Torre, porque o mundão, como chamavam a vida lá fora, começava a se conectar com o mundinho, a vida na prisão. Familiares e amigos poderiam localizá-las, ao contrário do que acontecia no Dops e na Oban. As presas podiam receber cartas vistoriadas pela carceragem e visitas, com alimentos, livros, discos, vitrolas, rádios de pilha ou televisões.
As visitas aconteciam aos sábados à tarde, e as mulheres costumavam se produzir para esses encontros. Rose conta que Dilma normalmente andava de moletom ou calça jeans, mas colocava um batom para ver sua mãe, a viúva Dilma Jane Silva Rousseff, e seus irmãos. Não era sempre que dona Jane ia visitá-la, pois morava em Belo Horizonte. As presas também arrumavam o cabelo e a moda na época era encrespá-lo. A Dilma não fazia papelote porque já tinha o cabelo crespo, diz a ex-presa Leane Almeida, de 61 anos, hoje paisagista. Elas também trocavam roupas e sapatos uma com a outra, pois não queriam passar aos familiares nenhum sinal de dor ou desespero.
Durante alguns meses, Dilma também descia ao pátio para ver seu então marido, o jornalista gaúcho Carlos Franklin Paixão de Araújo, um militante da VAR-Palmares preso sete meses depois dela. Enquanto Dilma estava presa e ele não, Carlos teve um caso com a atriz Beth Mendes. Espinosa, que depois dividiu a cela com Carlos, disse que sabia desse affaire. Até eu ser preso, o caso com a Beth Mendes era segredo, diz. Dilma e Carlos costumavam se encontrar no pátio para um ritual conhecido no presídio como visita higiênica. Era uma espécie de privilégio. Dilma diz que, depois, perdoou Carlos. Eles viveram juntos por 30 anos e tiveram uma única filha, Paula, que nasceu em março de 1976. O casal se separou em 1996 e se divorciou em 2000.
No Tiradentes, as mulheres formavam aquilo que, nas palavras da ex-presa e hoje historiadora e socióloga Márcia Mafra, de 62 anos, era uma espécie de condomínio em que todas eram responsáveis por cozinhar, fazer trabalhos manuais, limpar as celas. Elas se dividiam em duplas. Na cozinha, Dilma fazia dupla com Maria Aparecida Costa, advogada, de 63 anos. Cida Costa conta que ela e Dilma nunca foram talentosas no fogão: A Dilma era desprovida de qualquer dote para a arte do forno e fogão. Acabamos juntas, escolhidas ou nos escolhendo, porque íamos dormir tarde. Cida diz que ela e Dilma criaram um método para cozinhar: faziam o básico à noite, como arroz para 40 ou 50 pessoas, e a mistura quase sempre uma omelete com sardinha no dia seguinte. Não havia geladeira. As verduras e os legumes eram conservados em isopores com água, diz Rose. A cozinha era uma cela cinza, onde havia apenas um fogão grande e prateleiras. O almoço era a única refeição que as presas faziam juntas. Cada uma tomava o café da manhã em sua cela, com os alimentos trazidos pela família. Se chegava uma torta ou bolo, em geral eram divididos. Chegavam esfacelados depois de passar pela revista, afirma Rose.
A população da Torre, na conta das ex-presas, variou entre 20 e 60 mulheres. Cida afirma que, durante muito tempo, Dilma ficou em sua cela. No térreo, havia a celinha e um celão. Subindo a escada, logo à direita, vizinha à cozinha, ficava nossa cela. A visão da rua era a liberdade, ali, ao alcance do olhar, diz. Todas dormiam em beliches que funcionavam como cama, mesa, cadeira e um recanto para ficar só. Dilma, diz Cida, dormia na cama de cima. Uma caixa de madeira era onde as presas mantinham seus objetos pessoais. Ali, no mocó, como diziam, se refugiavam para ler, ouvir música ou apenas ficar em silêncio. De acordo com Leane, nos momentos mais melancólicos e todas confessam que tinham os seus , Dilma costumava ouvir tango. Ela punha o disco, deitava e ficava escutando, fumando, compenetrada. E isso era na minha cela, porque a gente tinha uma vitrola, diz. Márcia afirma que eram musicalmente ecléticas: Tínhamos uma coleção de discos, inclusive os recém-lançados, que iam de Elis, Milton Nascimento, Chico Buarque, passando por Johnny Hallyday, chegando a Vivaldi, Beethoven e Brahms. Márcia conta que fazia sucesso na prisão a canção London, London, de Caetano Veloso, sobre o exílio. Dilma já disse que também gostava de Billie Holliday.
À noite, as mulheres se reuniam para ver televisão. Dilma fazia parte do grupo que dormia tarde e, às vezes, assistia à sessão Coruja e, nos sábados de madrugada, ao seriado Jornada nas estrelas. Márcia diz que Dilma brincava com uma expressão do Dr. Spock, personagem da série, quando surgia uma proposta considerada estapafúrdia: Esta é uma questão de raciocínio lógico!. Na Copa do Mundo de 70, elas se reuniram em volta da TV. Dilma vibrava com os gols do Brasil. Ela entendia de futebol, discutia as regras, se era pênalti ou não era, diz Rosalba de Almeida Moledo, de 66 anos, socióloga. Durante o dia, as presas faziam várias atividades: de artesanato a aulas de inglês. Além de crochê, diz Rose, Dilma bordava panos. Ela bordava bem um ponto reto, que se chamava mexicano, afirma. As mulheres fizeram biquínis de crochê usados para, nas manhãs de sol, tomar sol no pátio. Às vezes não ficavam por muito tempo, porque apareciam ratazanas, e os guardas que cercavam os muros ficavam espiando as moças. Era nesse pátio que praticavam esportes, como vôlei. Dilma preferia o vôlei à ginástica canadense, diz Rosalba.
De todas as atividades, afirmam que o que mais faziam era ler. Os livros circulavam entre as presas políticas, que depois se reuniam para discuti-los. Eram livros de economia, política, marxismo, trazidos pelos familiares ou que chegavam da ala masculina. As carcereiras também às vezes conseguiam trazer jornais. Eu me lembro de ler o Estadão, diz Rosalba. Márcia cita André Malraux, García Márquez, Mario Puzo, Irving Wallace entre os autores lidos no Tiradentes. Na prisão, a gente podia refletir e ler muito. Li Lévi-Strauss, Poulantzas, quase todo Dostoiésvski, disse Dilma em entrevista concedida anos atrás. As presas decidiam um texto em comum e todas liam. Depois, discutiam. Nessa hora, a Dilma arrasava. Ela é muito inteligente e tem uma capacidade de síntese fantástica. Eu pensava: gente, ela não pode ter lido o mesmo texto que eu!, diz Nair. As mulheres vinham de organizações políticas com orientações distintas, com idades, origens sociais e profissões diferentes. No confinamento, diz Cida, até surgiam divergências, intolerâncias e cobranças. Mas, segundo os relatos das ex-presas políticas, predominava o sentimento de solidariedade. Na prisão, Dilma era vista como uma mulher direta, mas, de acordo com Cida, nunca agressiva ou desrespeitosa.
Dilma não tinha nenhum talento na cozinha, diz uma colega de presídio
O livro Tiradentes, um presídio da ditadura, de Izaías Almada, Alipio Freire e J.A. Granville, que reúne depoimentos de 35 ex-presos políticos que passaram por lá, relata que um dos momentos políticos mais difíceis no presídio foi a greve de fome, em 1971. O presídio inteiro rachou. Dilma e eu nos colocamos em posições divergentes ela contra a greve de fome, e eu aderi à greve. Deflagrada a greve, ela se mostrou cuidadosa e respeitosa com todas as grevistas, afirma Márcia. Nesse período, diz ela, Dilma ficou entocada em sua cela, com poucas aparições, até que as presas fossem levadas para o hospital militar, uma semana depois.
Para algumas presas, Dilma exercia um papel de orientadora. A advogada cearense Rita Sipahy, hoje com 71 anos, conta como Dilma ajudou a prepará-la para o interrogatório quando ela foi libertada, pouco depois da greve de fome. Eu era contra a greve, diz ela. Ela e Dilma chegaram à conclusão de que seria melhor Rita dizer que não aderiu à greve por saber que deixaria logo a prisão. Ela tem essa capacidade de tomar decisões rápidas, diz Rita.
Dilma era também vista como uma mulher divertida. Rose e Rita afirmam que ela colocava apelidos em todas. Dilma era muito brincalhona. Ela me chamava de melé de califon. Melé no jogo de baralho é curinga. E califon é porque um dia eu disse que no Ceará o sutiã era califon, diz Rita. Com as mais próximas, Dilma falava sobre dores e amores. Em 1972, num período de maior calmaria e menor lotação no presídio, me lembro de passar noites conversando com Dilma sobre a vida lá fora, os amores, as famílias e nossas tentativas de elaborar a prisão, a tortura, as grandes quedas, diz Márcia.
Dilma foi condenada a seis anos de prisão. Ela cumprira quase três quando o Supremo Tribunal Militar reduziu sua condenação a um ano e um mês. Dilma deixou então o presídio Tiradentes, em 1972, e partiu para a casa da família, em Belo Horizonte. Depois seguiu para Porto Alegre, onde Carlos de Araújo, seu marido, continuava preso. Em 1974, ele foi solto. Sobre os tempos de prisão e a tortura, Dilma não costuma falar. ÉPOCA solicitou por vários meios uma entrevista com ela sobre o assunto. Todos os pedidos foram negados.
Numa rara entrevista em que comentou o tema, concedida em 2003 ao jornalista Luis Maklouf, autor do livro Mulheres que foram à luta armada (Editora Globo), Dilma afirmou que, além da palmatória e do pau de arara, passou pela cadeira de dragão, um assento com espaldar de aço, cintas de couro, para prender os pulsos do torturado, e uma espécie de trava, para imobilizar suas pernas, de maneira a elevar ao limite a potência dos choques aplicados à vítima, segundo a descrição do jornalista e ex-preso político Emiliano José. Ela disse que levou choque elétrico no bico dos seios, nas mãos, nos pés, nas coxas, na cabeça. Eu queria desmaiar, não aguentava mais tanto choque e comecei a ter uma hemorragia, afirmou. Ela disse que, por causa do sangramento, teve de ser socorrida no Hospital do Exército. A lembrança que ficou dos tempos de tortura, diz ela, é o ladrilho branco do banheiro, manchado de sangue.