O crack – a droga mais perigosa da atualidade – invadiu a classe média. Uma pesquisa inédita mostra que as famílias não sabem onde obter ajuda. O que fazer para salvar os dependentes
Rodrigo Turrer e Humberto Maia Junior
Foram quatro anos sob os efeitos de maconha, cocaína, ácido lisérgico, ecstasy, crack e até chá de fita cassete – uma “droga” a que os dependentes recorrem para suportar crises de abstinência. A triste viagem de Renan começou na casa da família, num bairro de classe média em São Paulo, e o levou ATÉ a favela Paraisópolis, a segunda maior da capital paulista.
“Lá eu estava onde eu queria, com a galera, e me drogava direto”, diz. Seus pais, Alda e Eli, haviam tentado impor limites para afastá-lo da dependência. Primeiro, conversaram. Depois, proibiram o filho de usar o carro, cortaram a mesada, estabeleceram horário para que ele chegasse em casa. Eles não eram novatos no assunto. Antes de Renan, o caçula da família Larizzatti, outros dois filhos do casal haviam passado por problemas semelhantes. “Com três filhos usando drogas, vi que era o fundo do poço”, diz Alda. O casal decidiu internar o mais novo, então com 22 anos. Antes de ser levado para uma clínica de desintoxicação, Renan fez uma ameaça aos pais: “Quando sair, eu mato vocês”. Três anos e dois meses depois do último contato com as drogas, Renan ajuda a família na casa lotérica que os sustenta. “Hoje, se eu matar meus pais, só se for de amor”, afirma. Histórias como a dos Larizzattis ocorrem em muitas famílias. Às vezes, porém, o desfecho é trágico. Em 2009, a consultora aposentada Flávia Costa Hahn, de 60 anos, moradora de um bairro nobre de Porto Alegre, matou seu único filho, Tobias Hahn, de 24 anos. O rapaz consumia crack desde os 18 anos. Em abril do ano passado, depois de passar três noites em claro fumando crack, Tobias voltou para casa para pedir dinheiro. Flávia conta que discutiu com o filho, foi agredida e, para tentar se defender, pegou um revólver da coleção de armas do marido. A arma disparou e atingiu Tobias no pescoço. Ele morreu na hora. Em outro caso dramático, o músico Bruno Kligierman, de 26 anos, um jovem de classe média alta morador da Zona Sul do Rio de Janeiro, sufocou até a morte a amiga Bárbara Calazans, de 16. Ele havia consumido crack a noite toda. Seu pai, o poeta Luiz Fernando Prôa, o entregou à polícia.
Para dependentes de drogas, raramente há uma saída fácil. Internar o filho drogado, como fizeram os pais de Renan, é um recurso extremo, que até pouco tempo atrás era definido como exagerado. Para os Larizzattis, a decisão provou ser correta. Não só porque ele venceu a dependência. “Os pais de hoje têm medo de agir, estabelecer regras ou proibir”, afirma Luiz Fernando Cauduro, vice-presidente da ONG Amor Exigente, que ajuda famílias nessa situação. “Esse medo tem de ser rompido. Ele leva a família a não tomar uma atitude – e isso pode tornar o caso crônico.”
Medidas exageradas podem levar o usuário de
drogas a ficar mais tempo nesse universo
Mas o que fazer quando mesmo uma atitude mais dura da família não basta? Em 2005, a funcionária pública Sônia (nome fictício) descobriu que seu filho mais novo, então com 13 anos, era usuário de drogas. Sônia, o marido e outros dois filhos viviam num condomínio de classe média alta no interior paulista. O caçula havia começado a fumar maconha aos 11 anos, com amigos. Seu rendimento escolar despencou, ele trocou de amizades e se distanciou dos irmãos. “Achei que era um problema da idade, da adolescência”, diz Sônia. “Só percebi que eram as drogas quando antigos amigos dele me falaram que ele estava andando com uma turma barra-pesada.” Sônia procurou ajuda onde pôde. “Pesquisei na internet, em serviços públicos, paguei psicólogos, terapias, até a igreja eu procurei”, diz. A família decidiu tirar o filho da escola para distanciá-lo das amizades e vigiá-lo de perto. Ficava sob os cuidados do pai, vendedor de joias, que o levava até nas viagens de negócios. Em 2007, Sônia internou o filho em uma clínica para dependentes ligada a religiosos. O tratamento era baseado mais em ações espirituais do que terapêuticas, e não teve resultado. “Foi um tiro no pé, havia gente mais velha, e ali ele aprendeu tudo sobre as drogas.” Sônia decidiu então mudar de cidade. “Queria afastá-lo de tudo o que havia acontecido.” No começo, a estratégia deu certo: o filho passou um ano sem se drogar, começou a trabalhar em um pet shop e pensava em voltar a estudar. Mas houve uma recaída. Hoje, aos 17 anos, o caçula de Sônia está internado. Pela segunda vez, ele tenta largar o vício.
Os resultados distintos das experiências de Sônia e da família Larizzatti no combate às drogas mostram que não existe um método infalível. A internação numa clínica só deve ser considerada quando outras abordagens falham. “Os pais devem saber conversar com os filhos”, diz a psicóloga Lulli Milman, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), autora do livro Cresceram!!!: um guia para pais de adolescentes (Editora Nova Fronteira). “Quando descobrem que o filho fumou maconha na festa de sábado, alguns pais amplificam a questão e tratam o garoto como se fosse um traficante”, diz. Para ela, uma medida exagerada pode levar o filho a ficar por muito mais tempo no universo das drogas. Rejeitado em casa, ele pode buscar lugares onde seja mais aceito – ainda que esses locais coloquem sua vida em risco. “Pais que adotam esse discurso dogmático, sem muita relação com a realidade, tendem a se afastar dos filhos e ficar desacreditados por eles”, diz Lulli.
“A maior parte das pessoas faz uso consciente de drogas ilícitas da mesma forma que muitas pessoas usam álcool”, diz o antropólogo Edward MacRae, que também é pesquisador do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Eu frequento lugares em que vão jovens. Vejo que usam maconha, e isso não afeta seu desempenho de forma tão perceptível como ocorre com o álcool.” Nem todo usuário esporádico, porém, é capaz de abrir mão do consumo quando bem entender. “O uso recreacional é como uma roleta-russa”, diz Ruben Baler, pesquisador do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (Nida, na sigla em inglês), dos Estados Unidos. Para ele, é impossível saber de antemão se alguém se tornará dependente ou não. O uso de drogas como válvula de escape aumenta na proporção da incapacidade dos jovens de aceitar a frustração. Mas muitos usuários não percebem quanto a droga se tornou parte de sua rotina até que tenham se tornado dependentes.
A melhor estratégia para afastar os jovens das drogas envolve uma abordagem múltipla. Primeiro, a intervenção da família, que não pode se acanhar ante o problema. Em seguida, vem o tratamento contra a dependência química, a busca de alternativas à droga – que pode ser pela fé ou por um novo propósito na vida – e o apoio comunitário (da igreja, dos amigos, dos grupos especializados como o Narcóticos Anônimos) para manter a pessoa longe do mundo das drogas.
É possível usar drogas como recreação?
Embora alguns usuários de maconha, cocaína e ecstasy entendam que o consumo moderado não afeta suas vidas, pesquisadores afirmam que é impossível prever quem ficará dependente
Rodrigo Turrer e Humberto Maia Junior
Aos 28 anos, Henrique (nome fictício) é gerente em um dos maiores bancos multinacionais no Brasil. Foi uma ascensão e tanto: ele entrou como analista sênior, foi promovido a coordenador um ano depois e, em menos de dois anos, já ocupava uma das gerências. "Várias pessoas mais velhas do que eu não se mexeram como eu me mexi e não obtiveram o mesmo reconhecimento", diz com naturalidade, sem demonstrar arrogância. Henrique se considera uma pessoa responsável. Ele se mudou do interior de São Paulo para a capital quando foi aprovado no curso de Administração da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Se formou aos 22 anos sem ter sido reprovado em nenhuma matéria. "Nunca fui de matar aulas", diz. Tem no currículo um MBA em Contabilidade. Fala inglês e espanhol. Frequenta a academia de ginástica duas vezes por semana e não perde o futebol com os amigos. Parece o tipo de homem que um conservador pai de família iria querer como genro. Exceto por um detalhe: para relaxar entre tantas atividades, Henrique fuma maconha. “A erva é como a cerveja depois do trabalho e nunca me prejudicou em nada.”
Aliar uma boa vida pessoal e profissional com o uso de drogas não é exclusividade de Henrique. Como ele, muitos outros jovens são usuários convictos de substâncias ilícitas e não se deixam ser escravizados por elas. Integrantes de uma geração pouco acostumada com imposições, dogmas e autoritarismo mas que não abre mão da busca pelo prazer, eles se sentem livres para usar substâncias que provocam o bem estar ainda que possam levar ao vício.
Muitas pessoas de sua geração cresceram ouvindo o discurso anti-drogas recheado de frases de efeito: “droga mata”, “maconheiro é vagabundo”, “droga é uma droga”. Mas, ao atingir certa idade, se tornaram "Henriques" ou passaram a ter muitos deles entre suas amizades mais próximas. “Eu consigo usar drogas com responsabilidade e não me sinto especial por isso. Conheço muitas pessoas que também conseguem e levam uma vida normal”, diz Mariana, de 27 anos, formada em Comunicação Social. Bem sucedida no trabalho e na vida afetiva, ela não tem nenhum ranço daquele estereótipo de usuário que busca nas drogas uma fuga.
Olhando as drogas sobn a perspectiva de quem as conseome de forma recreacional, parece tudo muito bom. Claro que o uso de uma substância ilícita tem implicações legais, mas isso não parece ser um impeditivo para quem as consome moderadamente, em ambientes privados. Quanto aos riscos que as drogas impõem à saúde, os usuários costumam compará-los ao álcool e ao tabaco, que também fazem mal e viciam, mas são liberados. O que parece não pesar na conta dos usuários que se consideram imunes ao vício é que eles também não estão livres de sofrer consequências mais dramáticas que decorrem dessa escolha. Pesquisas mostram que a cada 10 consumidores, de um a dois se tornam dependentes. É uma minoria, mas que pode vir a ter problemas como abandonar os estudos, o trabalho, a família; vão roubar, se prostituir ou gastar toda a mesada para sustentar o vício; vão se afundar; provocar angústia nos pais, que irão se perguntar o que fizeram de errado e, se puderem, gastarão pequenas fortunas no tratamento do filho.
“É impossível saber de antemão se alguém se tornará dependente ou não. Usar a droga apenas ‘para experimentar’ é uma loteria, é como fazer sexo sem camisinha”, diz Ronaldo Laranjeira, psiquiatra, especialista em dependência e coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Estado de São Paulo. Como até hoje ninguém conseguiu explicar por que alguns usuários perdem o controle e outros não, a recomendação mais sensata é evitar.