Conquista científica ou presunção criadora?
Da redação de Medicina e Persona
CIDADE DO VATICANO, segunda-feira, 7 de junho de 2010 (ZENIT.org).– Em artigo recentemente publicado na Science [1], Craig Venter e sua equipe descrevem a síntese química do genoma do Mycoplasma mycoides, agente infeccioso causador da pleuropneumonia bovina, e sua subsequente transferência para a célula de outra bactéria, o Mycoplasma capricolum – agente causador da mesma doença em caprinos – obtendo assim um novo microorganismo, o Mycoplasma mycoides Jcvi-syn1.0.
Desse modo, lograram produzir um organismo vivo sintético, cujo citoplasma e maquinário para síntese protéica deriva do organismo original, enquanto seu DNA nuclear foi completamente substituído por um DNA sintetizado in vitro. Este resultado representa o êxito de um projeto iniciado há mais de 10 anos, com um custo estimado da ordem de 40 milhões de dólares e que mobilizou 20 pesquisadores dedicados em tempo integral.
Foi obtido mediante o emprego de recursos já conhecidos e de alguns ainda inéditos, pelos quais 1078 sequências de cerca de 10 mil bases foram associadas em 11 unidades intermediárias contendo 100 mil bases cada, que então foram integradas para constituir o genoma completo, com cerca de um milhão de bases. Este genoma foi então transferido para o microorganismo final. As células contendo o genoma sintético são capazes de se desenvolver de forma autônoma normalmente, formando colônias com o mesmo aspecto daquelas formadas pela bactéria original, e são indistinguíveis pela análise proteômica.
As considerações feitas por Venter no início do artigo são interessantes, pois possibilitam entender as motivações para este empreendimento científico: nossa capacidade de obter informação genômica foi multiplicada por oito ao longo dos últimos 25 anos, mas nossa capacidade de compreendê-la permanece ainda muito limitada. Não estamos aptos a compreender as funções de todos os genes contidos em nenhum organismo vivo, mesmo nos mais simples organismos unicelulares. Se os cromossomos contêm todo o repertório genético de uma célula bacteriana, seria então possível reproduzir um sistema genético completo via síntese química, partindo apenas de uma sequência de DNA armazenada num computador?
A pesquisa liderada por Venter parte desta aposta, e chega a um resultado positivo. Na discussão, afirma-se que o resultado oferece uma prova do segundo princípio, segundo o qual é possível produzir células viáveis partindo de sequências genéticas digitais; este princípio deve ser aplicável também à síntese de genomas mais complexos.
Aproximamo-nos assim da “célula sintética”, antevendo para o futuro a síntese de organismos mais complexos, sob a ótica da “biologia sintética”, a produção de células com características inexistentes na natureza destinadas a aplicações biotecnológicas.
Seria então possível vislumbrar um futuro com organismos pluricelulares complexos com características definidas in vitro?
Esta não é uma questão óbvia, uma vez que as células animais e humanas são muito mais complexas que as do micoplasma e, como o próprio Venter reconhece, não compreendemos ainda as funções de todos os seus genes. Pode este estudo abrir novas perspectivas de terapias para doenças genéticas? Como se sabe, nascem por ano em todo o mundo 8 milhões de crianças portadoras de doenças de origem genética. Muitas destas disfunções são monogênicas, isto é, associadas ao mau funcionamento de um único gene. Já estão sendo realizados experimentos clínicos no campo da terapia gênica, e em breve, envolvendo recombinação homóloga – a substituição do gene defeituoso por um gene sadio, visando a tratar doenças genéticas tais como as imunodeficiências primárias (doença granulomatosa crônica, deficiência de adesão leucocitária, síndrome de Wiskott Aldrich [2]). De um ponto de vista puramente clínico, a eficácia terapêutica destas abordagens é evidente nos pacientes que receberam o gene sadio, transferido para o genoma de suas células-tronco hematopoiéticas[3].
Qual a relação entre os estudos da equipe de Venter e estas pesquisas? Estes competem com os estudos já em andamento? Sob o ponto de vista “cultural”, certamente sim – no que se refere ao modo de conceber a pesquisa e abordar o código genético – e também do ponto de vista do financiamento.
A medicina nasceu para a melhoria das condições de saúde, em uma sucessão de etapas e passagens inevitáveis, como nos ensina a história. Neste cenário, corresponde melhor à categoria das possibilidades terapêuticas a ideia de substituir um gene do que o projeto de criar um genoma ex novo. Como, aliás, nos ensina o tão conhecido mito de Ícaro.
-----
[1] Gibson DJ, Glass JI, Lartigue C, et al. Creation of a Bacterial Cell Controlled by a Chemically Synthesized Genome. www.sciencexpress.org / 20 May 2010 / Page 1
[2] Aiuti A, Roncarolo MG. Ten years of gene therapy for primary immune deficiencies. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2009:682-9
[3] Aiuti A, Cattaneo F, Galimberti S, Benninghoff U, Cassani B, Callegaro L, Scaramuzza S, Andolfi G, Mirolo M, Brigida I, Tabucchi A, Carlucci F, Eibl M, Aker M, Slavin S, Al-Mousa H, Al Ghonaium A, Ferster A, Duppenthaler A, Notarangelo L, Wintergerst U, Buckley RH, Bregni M, Marktel S, Valsecchi MG, Rossi P, Ciceri F, Miniero R, Bordignon C, Roncarolo MG. Gene therapy for immunodeficiency due to adenosine deaminase deficiency. N Engl J Med. 2009;360(5):447-58.
|