A mãe do dissidente cubano morto numa greve de fome diz a ÉPOCA que ele é uma vítima de Fidel e Raúl. Por que o caso representa mais um embaraço para Lula
JULIANO MACHADO COM JULIO LAMAS
A cubana Reina Luisa Tamayo estava sentada numa sala de espera do Hospital Hermanos Ameijeiras, pouco antes das 13 horas do dia 23, quando um médico veio lhe dizer que, enfim, poderia entrar no quarto de Orlando Zapata Tamayo. “Vi meu filho já agonizando, se debatendo, inconsciente. Eram os últimos momentos”, disse Reina a ÉPOCA. Ela saiu por alguns minutos. Quando voltou, o corpo do filho já estava coberto, com os aparelhos desligados. “Eu o descobri e acariciei seu rosto em despedida. Tinha acabado de perder não só um de meus cinco filhos, mas também um homem justo.”
Esse foi o fim da greve de fome de Orlando Zapata, um pedreiro e encanador de 42 anos que lutava contra o regime castrista em Cuba. Em 3 de dezembro do ano passado, ele decidiu parar de se alimentar como forma de protestar contra as más condições de tratamento na prisão em que estava, na cidade de Camagüey. Acusado pelo governo de “desacato”, “desobediência” e “desordem pública”, estava preso desde 2003. Mesmo recebendo alimentação intravenosa à revelia, seu estado de saúde foi piorando, até que as autoridades tiveram de transferi-lo para um hospital de prisioneiros em Havana. Em caráter de emergência, Zapata foi conduzido para o mais bem equipado Hermanos Ameijeiras. Não foi o suficiente para salvá-lo após 83 dias de protesto. Para a mãe dele, o culpado pela morte é um só. “Foi um assassinato premeditado. O regime foi matando meu filho aos poucos.”
O caso de Orlando Zapata fez o mundo voltar suas atenções para a condição dos presos políticos de Cuba – cerca de 200, segundo entidades de direitos humanos – e pôs em uma situação especialmente embaraçosa o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Poucas horas depois de Zapata definhar até a morte na cama de um hospital, quando o clima entre os dissidentes e o governo já era de tensão, Lula chegou a Havana para uma visita ao presidente Raúl Castro e a seu irmão, o ex-líder Fidel Castro. A finalidade da viagem era fechar um contrato para a reforma do Porto de Mariel, perto de Havana, com financiamento brasileiro. Mas ninguém queria saber disso. Lula teve mesmo de responder sobre Zapata. “Temos de lamentar, como ser humano, sobre alguém que morreu porque decidiu fazer greve de fome”, disse Lula. Ele se esquivou de fazer qualquer referência aos motivos que levaram Zapata a tomar essa decisão. Num tom que soou irônico, afirmou que não via “problema nenhum” caso os dissidentes cubanos quisessem se tornar “dissidentes do Lula”. Também questionado, o assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, disse que “há problemas de direitos humanos no mundo inteiro”.
O que incomodou mesmo Lula foi uma carta assinada por 50 prisioneiros cubanos – 42 atrás das grades e oito em liberdade vigiada por questões médicas – pedindo ao presidente do Brasil que intercedesse pela libertação deles ante Raúl e Fidel. No documento, divulgado pela imprensa internacional às vésperas da visita, Lula é chamado de um “magnífico interlocutor” para “tirar a nação da profunda crise em que se encontra”. A carta faz referência específica a Orlando Zapata, que “desde dezembro se mantém em greve de fome para reclamar seus direitos e hoje tem condições de saúde perigosas para sua vida”. Irritado, Lula afirmou que não recebeu nenhuma correspondência. “As pessoas precisam parar com o hábito de fazer carta, guardar para si e depois dizer que mandaram”, disse. “Se essas pessoas tivessem falado comigo antes, eu teria pedido para ele (Zapata) parar a greve e quem sabe teria evitado que ele morresse.”
Os dissidentes garantem que tentaram entregar o documento na Embaixada do Brasil em Cuba no dia 18, mas não teriam sido atendidos. O ministro-conselheiro Vilmar Coutinho, número dois da embaixada, nega. “Afirmo que não recebemos nenhum documento aqui em Havana. Consultamos Brasília e lá também não receberam nada.” Segundo Coutinho, na manhã do dia 25 a embaixada acusou o recebimento de um fax de uma entidade de exilados cubanos em Miami, chamada Cuban Liberty Council, com uma reprodução da carta, não a original. O documento fora mandado no dia 23, horas depois da morte de Zapata, mas os diplomatas não o teriam visto porque estavam fora para recepcionar a comitiva presidencial.
Se Lula leu a carta ou não, provavelmente Zapata não teria resistido do mesmo jeito. O que causou decepção entre os dissidentes foi a forma como ele tratou a questão em meio a uma evidente s crise. “Escrevemos a carta com alguma esperança de que Lula pudesse ao menos abordar o assunto com Raúl e Fidel”, diz o poeta e jornalista Jorge Olivera Castillo, um dos 50 signatários do apelo a Lula. Jorge Olivera faz parte do Grupo dos 75, uma referência ao número de cubanos detidos durante uma onda brutal de repressão do governo em março de 2003, conhecida como a Primavera Negra. Orlando Zapata também foi preso nessa ocasião. Sua mãe é integrante do grupo Damas de Branco, composto de mulheres que são parentes dos 75 detidos.
Membro do Movimento Alternativa Republicana e do Conselho Nacional de Resistência Civil, Zapata era considerado um “delinquente comum” pelo governo. Segundo alguns colegas, era discriminado por ser negro. Foi um entusiasta do Projeto Varela, movimento liderado pelo dissidente Oswaldo Payá no início dos anos 2000 que defendia um referendo para a realização de reformas políticas. Zapata já fora detido em 2002, quando também fez uma greve de fome em apoio a outros colegas da dissidência. Foi a julgamento por várias vezes, a maioria em tribunais militares e supostamente sem direito a um advogado. Sua pena atual era de 36 anos de prisão. Segundo a Anistia Internacional, era um dos 65 “prisioneiros de consciência” cubanos, ou seja, pessoas detidas por suas crenças políticas e que não usavam de violência para alcançar seus objetivos.
Elizardo Sánchez, ativista político e presidente da clandestina (porém tolerada) Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional, classifica de “presente macabro” para Lula a morte de Zapata, quase simultânea a seu desembarque em Havana. “Lamentavelmente, a presença de Lula serviu para ratificar a tirania cubana, cuja fonte de poder é a intensa exploração dos trabalhadores. Lula simplesmente fechou os olhos ante a tragédia que sofre o povo de Cuba”, afirmou.
As críticas a Lula não se restringiram aos opositores internos do regime castrista. O influente diário espanhol El País, que no ano passado elegeu o presidente brasileiro o “Homem do Ano”, não poupou Lula desta vez. Uma reportagem do jornal dizia que o presidente ia a Havana para dar “todo seu respaldo político e econômico” ao regime cubano em sua quarta e última viagem oficial à ilha comunista. “Na agenda (de Lula) não há espaço para os dissidentes – algo que não surpreende, pois Lula é um velho aliado”, afirma a reportagem. Outros governos tiveram atitude diferente. Até mesmo a Espanha, geralmente acusada de tratar os problemas cubanos com excessiva cautela. No exercício da presidência rotativa da União Europeia, o premiê José Luis Zapatero exigiu de Raúl Castro que “devolva a liberdade aos presos de consciência e respeite os direitos humanos”. A secretária americana de Estado, Hillary Clinton, também pediu o fim das detenções políticas. Afirmou que a Casa Branca reiterava “sua forte objeção às ações do governo cubano”.
Se os dissidentes apontaram o regime castrista como responsável pela morte de Zapata, o governo também encontrou um culpado: os Estados Unidos. Raúl Castro disse “lamentar muito” o episódio que se deveria à “confrontação que temos com os EUA, pela qual temos perdido milhares de cubanos”.
Enquanto “lamentava” o caso, o regime cubano não perdeu tempo em repreender de todas as formas a previsível reação dos opositores após o anúncio de que Zapata estava morto. Pouco depois de saber da notícia, a blogueira Yoani Sánchez, a dissidente do regime mais conhecida no exterior, postou em seu Twitter que o telefone fixo de seu apartamento ficara mudo de repente. “Uma forma de evitar que nos inteiremos da indignação gerada pela morte de Zapata Tamayo.” Ação dos oficiais de segurança ou não, essa medida foi até branda diante das dezenas de prisões denunciadas pelas entidades de direitos humanos após o dia 23.
Outra estratégia de intimidação foi o cerco policial à casa de vários dissidentes, que se viram impedidos de sair às ruas para protestar ou apenas prestar solidariedade à família de Orlando Zapata. Segundo Elizardo Sánchez, da Comissão de Direitos Humanos, pelo menos 100 pessoas se encontravam nessa situação até o fim da semana passada. Uma delas era a engenheira agrônoma e militante política María Antonia Hidalgo, que vive em Holguín, capital da província de mesmo nome. Aos 37 anos, María Antonia, amiga de Reina, a mãe de Zapata, relatou a ÉPOCA aquilo por que passava na tarde da quinta-feira 25. “Neste momento há vários policiais uniformizados e armados circulando a minha casa com motos. Estão vigiando as redondezas para impedir que eu me encontre com Reina Tamayo.” María Antonia disse que estava desesperada depois de um “companheiro de luta” ter sido supostamente levado pelos militares para um hospital psiquiátrico da região. “Ele entrou aqui em casa de forma ‘ilegal’ e vieram buscá-lo à força. Querem traumatizá-lo, porque ele não é louco. Devem tê-lo escondido em algum lugar do hospital e lhe estão dando eletrochoques.”.
Logo após a morte de Zapata, a blogueira Yoani Sánchez tuitou que seu telefone fora emudecido
María Antonia tinha a intenção de viajar até Banes, uma cidadezinha de 35 mil habitantes no interior de Holguín, a 800 quilômetros de Havana, onde viviam Orlando Zapata e sua família. Mas ela não conseguiu. Em uma grande operação policial, todos os acessos de Banes foram bloqueados na véspera do funeral de Zapata, ocorrido na manhã do dia 25.
O objetivo evidente era restringir ao máximo o acesso de opositores à cerimônia e evitar que o enterro se transformasse em um ato político na cidade – curiosamente a terra natal de Fulgencio Batista, o ditador derrubado pela Revolução Cubana em 1959. Mais de mil policiais, além de comandantes de alta patente, se deslocaram da capital cubana. O corpo de Zapata foi trazido de Havana em um comboio de seis carros de polícia. A ideia dos oficiais era enterrá-lo assim que chegassem a Banes, mas a família protestou, e eles marcaram a cerimônia para as 7 horas da manhã do dia seguinte.
Mesmo esvaziado, o funeral ocorreu em ambiente tenso. Segundo Reina Tamayo, a família queria carregar o caixão até o cemitério, mas as autoridades não permitiram. “Puseram o caixão dentro de um carro fúnebre e nos levaram em outras viaturas de polícia até lá”, diz Reina. Tudo teria sido muito rápido, para evitar aglomerações.
Afirmar que Orlando Zapata vai se tornar um mártir do castrismo ainda é prematuro, mas a maior parte dos dissidentes diz que a grande repercussão de sua morte ajudou a escancarar para os líderes mundiais como o governo cubano trata quem não está satisfeito. O caso de Zapata fez lembrar Pedro Luis Boitel, líder estudantil da Universidade de Havana que inicialmente apoiou a revolução, mas depois se virou contra ela. Condenado em 1961 a dez anos de prisão, Boitel morreu na cadeia em maio de 1972, após uma greve de fome que durou 53 dias. Naquela época, o episódio foi abafado pelo regime. Hoje, isso não é mais possível. Como disse Reina Tamayo, num recado a Raúl Castro e a líderes estrangeiros que passam ao largo do problema dos prisioneiros políticos de Cuba. “Aqui está uma mulher que não aceita condolências de governantes e que não vai se calar. Orlando está vivo no coração dos cubanos.”
Obs.: Poucas horas depois da morte de Orlando Zapata, Lula foi confraternizar em Havana com os algozes do dissidente, Fidel e Raúl Castro. Este último culpou os EUA pela morte de Zapata... Lula, que meteu o bico no caso de Honduras, não deu um pio sequer, no caso cubano. Aliás, durante os jogos Panamericanos no Rio, Lula não teve nenhum drama de consciência ao devolver os fugitivos pugilistas à sanha dos Castro. O que prova que ele não passa de um patife a serviço dos carniceiros do Caribe. Uma vergonha para todos os brasileiros! (F. Maier)