Parlamentares passam na Câmara às quintas só para bater ponto e garantir salário e seguem para estados
Publicada em 07/11/2009
O Globo
RIO - Eram 8h de quinta-feira. Num plenário vazio e silencioso, deputados, à vontade e com roupas casuais, alguns de jeans e camiseta, chegam aos poucos, se cumprimentam e digitam a senha de presença no painel da Câmara, que vale para o dia inteiro. Assim, asseguram quórum para votação e garantem o salário do dia - cada ausência em sessão deliberativa pode custar de R$ 800 a R$ 1 mil, descontados no contracheque. Mas muitas dezenas deles estão ali só de passagem. Quase que imediatamente, seguem para o Aeroporto Juscelino Kubitschek, em direção às suas bases, para onde vão cada vez mais cedo à medida que se aproxima o ano eleitoral. É a gazeta oficial e remunerada, como mostra a reportagem de Evandro Éboli para o O Globo deste domingo.
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Leia também: Deputado flagrado prefere acusar a câmara: "É um sistema distorcido"
A sessão mesmo só abre às 9h. A liberação do painel uma hora antes é uma concessão do presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP). Deputados pedem a ele que antecipe o painel para que viajem o quanto antes para suas regiões - de um lado, asseguram presença para abertura de sessão, interesse coletivo; de outro, se livram do desconto pela ausência.
Quando o segundo secretário da Câmara, Inocêncio Oliveira (PR-PE), iniciou de fato a sessão de quinta-feira, às 9h em ponto, anunciou que 97 deputados já tinham assinalado presença, o que garantia a abertura dos trabalhos - que exige mínimo de 51 presenças. Mas apenas 11 deputados estavam no recinto. Outros 120 estavam nos gabinetes ou outras dependências.
O hábito da gazeta não distingue deputados. Parlamentares de todas as legendas, do baixo ou do alto clero, da esquerda, do centro, da direita, formador ou não de opinião adotam essa prática, antiga na Casa. É a distorção de um sistema, ou do regimento interno, que exige quórum mas não a presença física, exceto quando a votação é nominal e precisa do voto de cada um, o que ocorre normalmente apenas às terças e às quartas-feiras.
O histórico quórum baixo das quintas-feiras levou os líderes a decidirem que a pauta será sempre leve e com projetos consensuais, sem polêmica, que não despertam o interesse dos parlamentares. Com o acordo, a votação é simbólica. O deputado que preside a reunião anuncia: "Quem for favorável que permaneça como se acha. Aprovado". A votação pode durar menos de 30 segundos.
Deputado flagrado prefere acusar a Câmara: `É um sistema distorcido`
RIO - É unanimidade entre deputados que o trabalho parlamentar não se restringe a sessões de plenário e que os compromissos nos estados são parte do mandato. Mas poucos julgam ser indevido estar oficialmente numa sessão enquanto, na verdade, estão muito longe dali. Décio Lima (PT-SC) reconheceu o que poucos gostam de abordar: marca presença para não ter desconto no salário. Mas culpa o sistema da Casa, como mostra a reportagem de Evandro Éboli para O Globo deste domingo.
Fernando Coelho Filho (PSB-PE), usando camisa polo amarela e calça jeans, registrou presença no painel às 8h57m e embarcou em seguida.
Fotogaleria: Deputados gazeteiros: Eles fazem do que deveria ser trabalho quase um passeio
Parlamentares passam na Câmara às quintas só para bater ponto e garantir salário e seguem para estados
- Sou bastante presente. Saio na quinta porque preciso pegar conexão para Petrolina, mas não falto a votação relevante. Mas é contraditório marcar presença e estar ausente.
Flagrado na gazeta, novato volta ao plenário
Há cinco meses no mandato, Wilson Picler (PDT-PR) estava por volta das 10h no aeroporto quando, ao ser abordado pelo GLOBO, decidiu voltar para o plenário da Câmara. Foi o único entrevistado que se incomodou com a situação.
Antes de retornar à Câmara, ligou para seu gabinete para saber se havia votação. Mais tarde, telefonou do plenário para dizer que os acordos internacionais foram votados e não precisaram do voto dele e nem de outros poucos parlamentares presentes à sessão.
- Estou de plantão, sem fazer nada, feito um bobo.
REPORTAGEM COMPLETA
08/11/2009
Presença marcada, deputado na estrada
Parlamentares passam na Câmara às quintas só para bater ponto e garantir salário e seguem para estados
Evandro Éboli BRASÍLIA
Eram 8h de quinta-feira. Num plenário vazio e silencioso, deputados, à vontade e com roupas casuais, alguns de jeans e camiseta, chegam aos poucos, se cumprimentam e digitam a senha de presença no painel da Câmara, que vale para o dia inteiro. Assim, asseguram quórum para votação e garantem o salário do dia — cada ausência em sessão deliberativa pode custar de R$ 800 a R$ 1 mil, descontados no contracheque.
Mas muitas dezenas deles estão ali só de passagem. Quase que imediatamente, seguem para o Aeroporto Juscelino Kubitschek, em direção às suas bases, para onde vão cada vez mais cedo à medida que se aproxima o ano eleitoral. É a gazeta oficial e remunerada.
A sessão mesmo só abre às 9h. A liberação do painel uma hora antes é uma concessão do presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP). Deputados pedem a ele que antecipe o painel para que viajem o quanto antes para suas regiões — de um lado, asseguram presença para abertura de sessão, interesse coletivo; de outro, se livram do desconto pela ausência.
Quando o 2º secretário da Câmara, Inocêncio Oliveira (PR-PE), iniciou de fato a sessão de quinta-feira, às 9h em ponto, anunciou que 97 deputados já tinham assinalado presença, o que garantia a abertura dos trabalhos — que exige mínimo de 51 presenças.
Mas apenas 11 deputados estavam no recinto. Outros 120 estavam nos gabinetes ou outras dependências.
O hábito da gazeta não distingue deputados. Parlamentares de todas as legendas, do baixo ou do alto clero, da esquerda, do centro, da direita, formador ou não de opinião adotam essa prática, antiga na Casa. É a distorção de um sistema, ou do regimento interno, que exige quórum mas não a presença física, exceto quando a votação é nominal e precisa do voto de cada um, o que ocorre normalmente apenas às terças e às quartas-feiras.
O histórico quórum baixo das quintas-feiras levou os líderes a decidirem que a pauta será sempre leve e com projetos consensuais, sem polêmica, que não despertam o interesse dos parlamentares. Com o acordo, a votação é simbólica. O deputado que preside a reunião anuncia: “Quem for favorável que permaneça como se acha. Aprovado”.
A votação pode durar menos de 30 segundos.
Na quinta passada, por exemplo, o plenário aprovou nove acordos internacionais assinados pelo governo nas áreas de meio ambiente, energia, educação e segurança pública com Alemanha, Serra Leoa, Israel, Jordânia, Timor Leste, Tanzânia e Marrocos. Assunto que não estimula a presença dos deputados em Brasília. Muito menos no plenário. Menos de 30 estavam presentes nas votações de quinta. Também ficam prejudicados nesses dias os debates nas comissões técnicas, que insistem em fazer reuniões, mas nunca conseguem quórum.
A distância entre o Congresso Nacional e o aeroporto é de 14 quilômetros. Entre digitar a senha no plenário e ingressar na área de embarque, alguns deputados gastaram tempo bastante curto. Os seis parlamentares que cumpriram esse trajeto mais rapidamente foram: Paulo Rocha (PT-PA) e Olavo Calheiros (PMDB-AL), em 20 mi/p>
nutos; Ratinho Júnior (PSC-PR), em 22 minutos; João Paulo Cunha (PT-SP), ex-presidente da Câmara, em 24 minutos; Paulo Magalhães (DEMBA), em 33 minutos; e Luciano Castro (PR-RR).
A deputada Rita Camata (PSDB-ES) registrou presença às 8h35m, no mesmo momento em que Luciano Castro (PR-RR). Deixaram o plenário falando sobre as viagens que fariam em seguida.
Abordada mais tarde no aeroporto, às 11h, Rita Camata disse que a atividade parlamentar não é só no plenário e que tinha reuniões no estado.
— Sou uma das que mais ficam aqui nas quintas-feiras. Em compensação, volto no domingo à noite. Somos vítimas mesmo dos que acham que deputado só trabalha em plenário — disse Rita Camata.
É o argumento mais comum, e até considerado legítimo, usado pelos parlamentares. O que se questiona, no entanto, é a formalização da gazeta.
Ex-líder do PR, Luciano Castro alega que a viagem para seu estado leva quatro horas, e que há poucos voos. Diz que costuma viajar nas madrugadas de sexta para Boa Vista (RR), diferentemente do que fez nesta quinta. E reconhece: — É meio esquisita mesmo essa situação.
Mais de 400 deputados marcam presença e, se você vai ver no plenário, não tem nem 50. É necessário mudar. E ano que vem, ano eleitoral, será pior ainda.
Líder do bloquinho — que reúne PSB, PCdoB, PRB e PMN —, Márcio França viajou às 10h para São Paulo, depois de marcar presença às 8h20m no painel. O deputado disse não ter hábito de embarcar tão cedo, e que só viaja no fim do dia. Explicou que precisou antecipar sua viagem para acompanhar o velório de um aliado político em São Vicente (SP).
— Mas não vejo problema em que o deputado cumpra tarefas na sua região se não há questão relevante sendo votada na Câmara. A votação na quarta, que foi importante, foi até 11 da noite — disse França.
Gustavo Fruet (PSDB-PR), um dos mais presentes na Câmara, decidiu viajar mais cedo, para participar de um evento na OAB em Curitiba (PR). Também disse que permanece boa parte deste dia da semana em Brasília. Fruet afirma que condena essa prática, e que foi a primeira vez que marcou presença e não ficou para a sessão: ele registrou seu nome no painel às 8h28m e foi fotografado no aeroporto às 9h53m.
— Tenho 100% de presença. Essa de hoje (quinta) poderia nem vir e me justificar depois.
Mas não fiz. Cada um tem seu papel, e está ciente de sua responsabilidade — disse Fruet.
O deputado João Paulo Cunha foi procurado e sua assessoria, em São Paulo, informou que, na sexta, ele estava num compromisso em Campinas (SP). Não houve retorno do parlamentar
Deputado flagrado prefere culpar a Câmara: `É um sistema distorcido`
Fernando Coelho, de Pernambuco, afirma não faltar a votação importante
Evandro Éboli
BRASÍLIA. É unanimidade entre deputados que o trabalho parlamentar não se restringe a sessões de plenário e que os compromissos nos estados são parte do mandato. Mas poucos julgam ser indevido estar oficialmente numa sessão enquanto, na verdade, estão muito longe dali. Décio Lima (PT-SC) reconheceu o que poucos gostam de abordar: marca presença para não ter desconto no salário. Mas culpa o sistema da Casa.
Sem terno e gravata, de camiseta preta, Décio marcou presença no painel às 8h50m e seguiu às 10h para Florianópolis.
Ele contou que, no momento em que O GLOBO fazia foto no plenário, seus colegas se irritaram.
— Disse a eles que estávamos errados. É um sistema distorcido que me obriga a marcar presença para não perder salário nem ter ausência num dia de votação pouco importante — disse, admitindo o interesse individual, mas justificando o coletivo: — Se não for assim, não tem quórum para essas votações.
Fernando Coelho Filho (PSBPE), usando camisa polo amarela e calça jeans, registrou presença no painel às 8h57m e embarcou em seguida.
— Sou bastante presente.
Saio na quinta porque preciso pegar conexão para Petrolina, mas não falto a votação relevante.
Mas é contraditório marcar presença e estar ausente
Surpreendido na gazeta, novato volta ao plenário
"Estou de plantão, sem fazer nada"
BRASÍLIA. Há cinco meses no mandato, Wilson Picler (PDT-PR) estava por volta das 10h no aeroporto quando, ao ser abordado pelo GLOBO, decidiu voltar para o plenário da Câmara. Foi o único entrevistado que se incomodou com a situação.
Antes de retornar à Câmara, ligou para seu gabinete para saber se havia votação.
Cancelou reunião no estado naquele dia e, entre indignado e surpreso, anunciou: — O que está ocorrendo na Câmara agora?! Estou cometendo algum erro? A informação é que não há votação, mas se você está dizendo que tem, vou voltar.
Mais tarde, telefonou do plenário para dizer que os acordos internacionais foram votados e não precisaram do voto dele e nem de outros poucos parlamentares presentes à sessão.
— Estou de plantão, sem fazer nada, feito um bobo.
Picler fez um discurso informando que O GLOBO estava no aeroporto preparando uma reportagem sobre a ausência dos deputados no plenário. Mas seu discurso não ecoou.
Colega de Picler, Dilceu Sperafico (PP) lembra que a exigência de painel é decisão de Michel Temer.
— Ficamos até de madrugada, e nunca aparece ninguém para fotografar. Não vou ficar quinta-feira para cumprir horário.