A atual geração, digamos, ‘científica’ dos estudos legislativos brasileiros tem pouco mais de 20 anos. (Quero combinar com o leitor que, por ‘científica’, será compreendida aqui a disciplina intelectual que descreve a realidade objetivamente; raciocina – de preferência – quantitativamente; documenta fatos sistematicamente; discute-os comparativamente à luz de evidências produzidas por outros pesquisadores; expõe transparentemente os métodos e técnicas utilizados; e avalia desapaixonadamente se, como e até que ponto suas hipóteses iniciais e conclusões coadunam-se entre si, além de confirmar ou refutar o corpus teórico vigente na área de estudo em questão.)
Seu marco inaugural é O Congresso e o sistema político do Brasil (Rio: Paz e Terra, 1993), do falecido cientista político americano de origem libanesa Abdo I. Baaklini, que foi diretor do Centro para o Desenvolvimento Legislativo e também professor do Departamento da Administração Pública, da State University of New York (Suny), Albany. A obra de Baaklini cobre, em sua maior parte, o período em que o Senado Federal e a Câmara dos Deputados sobreviveram dentro da camisa-de-força político-institucional do AI-5, dos decretos-leis e do “decurso de prazo” (dispositivo regimental que garantia a aprovação dos projetos de lei do Poder Executivo não apreciados pelo Legislativo), imposta pelo regime militar. O livro termina no momento em que a Assembléia Nacional Constituinte refundou o estado democrático de direito, em 1988, e, no ano seguinte, foram realizadas as primeiras eleições presidenciais diretas desde 1960.
Sob a égide da nova constituição, em meados dos anos 90, os cientistas políticos da USP e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) Argelina Figueiredo e Vicente Limongi deram um passo importante na consolidação acadêmica da área com o projeto de pesquisa sugestivamente intitulado Terra incógnita. (Argelina hoje leciona no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj.) A súmula dos estudos da dupla está no livro Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional (Rio: FGV, 1999). Suas duas principais conclusões: (1) graças às medidas provisórias e ao mecanismo regimental da “urgência constitucional”, que confere prioridade à tramitação de proposições legislativas emanadas do Poder Executivo (arts. 64, parágrafos 1º a 4º, da Constituição Federal e 204 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados), o presidente da República é, na prática, o maior dos legisladores; e (2) o triângulo de poder que controla a formatação da agenda de votações, na Câmara – e, portanto, define aquilo que tem ou não tem chance de virar lei –,é integrado pela presidência da Casa, o Colégio de Líderes partidários e, claro, o Palácio do Planalto.
Para que o leitor tenha uma idéia mais clara do enorme poder de fogo legislativo do presidente da Republica no Brasil, basta lembrar que ao seu colega nos Estados Unidos é vedado tomar diretamente iniciativa no processo de elaboração das leis, menos, ainda, claro, quando se trata da apresentação de propostas de emenda à veneranda Constituição de 1787/89. Sempre que o poderoso inquilino da Casa Branca identifica um problema de política pública a requerer providências do Capitólio, ele proclama publicamente suas preocupações e sugestões e negocia com os líderes democratas e republicanos de ambas as Casas a apresentação de proposições por congressistas e planeja estratégias para a tramitação/aprovação das mesmas.
Não por acaso, aqui, durante o período analisado por Figueiredo e Limongi, que cobre as legislaturas coincidentes com os dois mandatos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso uma média pouco menor que 90% (!) das proposições transformadas em lei se originaram do Executivo. Durante a era Lula, verificou-se uma pequena redução dessa média, sem que ela jamais caísse, porém, abaixo de 80%.
As outras duas pontas do triângulo (presidente da Câmara e líderes partidários) centralizam a montagem da pauta de votações em Plenário (Ordem do Dia), bem como a designação dos presidentes das comissões e dos relatores de projetos de lei (PLs) e propostas de emenda à Constituição (PECs). Sempre que o regimento assim o permite, os líderes se manifestam e votam em substituição à suas respectivas bancadas partidárias. É assim, por exemplo, que é aprovada a esmagadora maioria dos requerimentos de urgência, o que permite a inclusão de uma proposição na Ordem do Dia logo na sessão seguinte, atropelando as comissões, caso elas ainda não tenham proferido seus pareceres sobre a matéria. Neste ponto, o regimento dá a esses colegiados mais cinco sessões (uma sessão deliberativa corresponde a um dia de votação em Plenário; normalmente, as sessões deliberativas ocorrem às terças, quartas e quintas-feiras). Findo esse prazo ainda sem pareceres, o presidente da Mesa aponta relatores de plenário, que se pronunciam oralmente.
O leitor também já deve ter lido ou ouvido a expressão “urgência urgentíssima”, consagrada pelo costume, mas que não aparece em parte alguma do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Trata-se de ‘via expressa’ de tramitação possibilitada pelos seus arts. 153, inciso IV, e 155, graças à qual a matéria é incluída automaticamente na Ordem do Dia ou mesmo na pauta de uma sessão já em andamento. De novo, a assinatura do respectivo requerimento por líderes partidários que representam a maioria absoluta dos deputados é o que basta para aprová-lo.
Bem que o constituinte de 1988 (no art. 58, parágrafo 2º, inciso I da Constituição Federal) tentou valorizar o trabalho da ‘massa’ dos deputados nas comissões permanentes atribuindo a estas “poder conclusivo”, o que dispensa a apreciação em Plenário de certos tipos de projetos de lei ordinária – à exceção dos de código; de iniciativa popular; de autoria de comissão; de lei complementar (cuja aprovação exige apreciação em dois turnos e maioria absoluta de votos favoráveis, e não apenas de manifestação dos líderes quando o Plenário está quase vazio...); daqueles oriundos do Senado, ou por ele emendados, caso tenham sido aprovados pelo Plenário de lá; dos relativos à matéria que não possa ser objeto de lei delegada; dos que hajam recebido pareceres divergentes de duas ou mais comissões; ou, obviamente, dos que passem a tramitar em regime de urgência. Projetos em tramitação conclusiva também, são redirecionados para o Plenário sempre que haja recurso nesse sentido assinado por, no mínimo, um décimo dos membros da Casa. Mas tais recursos são raros.
Mesmo assim, como assinalam, mais uma vez, Figueiredo e Limongi, sob FH I e II, os projetos promulgados em lei que tramitaram exclusivamente por comissões não passaram de 10% do total. Seria muito útil se alguém com mais paciência para números do que eu pudesse calcular esse percentual para os últimos seis anos. Meu palpite, baseado na observação cotidiana dos trabalhos das comissões, é de que o referido índice tenha aumentado um pouco mais, por uma razão bem característica das relações Executivo – Legislativo no período Lula: sua base de apoio parlamentar, apesar de mais numerosa que a de FHC, é, talvez por isso mesmo, mais heterogênea e menos disciplinada em algumas votações nominais de matérias relevantes para o Planalto.
Situações desse tipo sugerem aos muitos lobistas que atuam na Câmara, aí incluídos os assessores parlamentares da Casa Civil da Presidência da República dos ministérios, das empresas estatais etc, a tática mais segura de manter os projetos de seu interesse tramitando no âmbito mais restrito e ‘administrável’ das comissões.
Justiça seja feita, uma base governista fragmentada foi, é e, até onde a vista alcança alcança, continuará sendo o grande desafio para todos os presidentes da República eleitos no presente marco constitucional. E, aqui, o leitor de Figueiredo e Limongi encontra um aparente paradoxo que esses autores constatam mas não se propõem a explicar, qual seja: como é possível que, sobretudo na era FHC, mas, em grande medida, também neste incompleto octênio Lula, as estatísticas de votações nominais traduzam tanta ‘disciplina’ (resultados obedientes à orientação das respectivas lideranças em torno de 90%) por parte dos aliados do governo – e, mais ainda, pela dos oposicionistas –, se em nenhuma das eleições gerais realizadas de 1990 para cá, até mesmo o partido do presidente, eleito por maioria absoluta, não conquistou sequer 20% das cadeiras da Câmara?
Para abrir essa caixa-preta, é preciso recorrer a outra obra marcante da nova geração de estudos legislativos: Os entraves da democracia no Brasil (Rio: FGV, 2002), do americano Barry Ames, professor de política comparada da Fundação Andrew Mellon, na Universidade de Pittsburgh. Avançando na senda aberta por seu compatriota David Mayhew (Congress: the electoral connection, primeira edição de 1974), Ames lança luz sobre as motivações nacionais e os interesses bem concretos que levam uma base tão diferenciada a exibir comportamento quase monolítico no painel eletrônico de votações: em poucas palavras, indicação de afilhados políticos para cargos em confiança na administração pública federal (direta ou indireta, além das fundações, empresas e outros penduricalhos estatais) e autorização para que sejam pagas as emendas de autoria desses parlamentares ao Orçamento da União, em seus respectivos redutos eleitorais – benefícios cuja distribuição é monopólio do Executivo e um fator decisivo para a reeleição dos deputados.
Depois da conquista do poder, a conversão de Lula e de seus colaboradores mais próximos às ‘cláusulas pétreas’ da economia de mercado produziu algumas inversões interessantes nesses cenários, sem, contudo, alterar fundamentalmente a tradição de apoio claramente majoritário da base às propostas governistas: os situacionistas de ontem, que formam a oposição de hoje (sobretudo PSDB e DEM), alinham-se com o governo Lula – nem que seja por coerência – em votações importantes para a estabilidade monetária e o equilíbrio fiscal, do mesmo jeito que votavam com a administração tucana, e acabam garantindo a preciosa maioria, quando petistas da linha dura votam contra ou, o que é mais freqüente nesses casos, se refugiam na abstenção. A infidelidade desses neo-oposicionistas afiguram-se especialmente providencial quando se trata de aprovar emendas constitucionais, cuja apreciação está submetida à ‘ditadura dos três quintos’ em dois turnos de votação. O resto fica por conta da famosa, ou melhor, infame infidelidade partidária que incha as bases de qualquer governo, no melhor estilo daquele político personagem de Machado de Assis que, candidamente, ponderava mais ou menos nos seguintes termos: “Não tenho culpa se os governos mudam; eu, por mim, estou sempre com eles”...
O maior mérito, entre muitos, do trabalho de Barry Ames consiste em revelar os mecanismos que movimentam o presente sistema de relações Executivo-Legislativo, batizado de “presidencialismo de coalizão” pelo cientista político Sergio Abranches, no seu influente artigo “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, publicado na revista Dados, do Iuperj, vol. 31, nº 1, 1988 (pp. 5-38). Um sistema que, a despeito do seu presidencialismo de direito, comporta-se quase como um parlamentarismo de fato, pois, para manter-se em funcionamento, necessita do contínuo respaldo majoritário do Congresso – com uma peculiaridade crucial: no parlamentarismo de tipo europeu, a maioria parlamentar forma o governo (ou seja, o Poder Executivo); já no presidencialismo de coalizão à brasileira, é o Executivo que, para governar, precisa formar essa maioria em troca de favores aos congressistas.
Para saber mais
Um balanço sistemático, atualizado e muito competente das questões que acabo de discutir é o estudo dos cientistas políticos e consultores legislativos da Câmara Antônio Octávio Cintra e Marcelo Barroso Lacombe, “A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da ciência política, publicado na coletânea Sistema político brasileiro: uma introdução, sob a direção de Lúcia Avelar, minha colega no Ipol/UnB, e do mesmo Cintra, já em sua segunda edição pela Fundação Konrad Adenauer em parceria com a Unesp, 2006.
Até agora, em comparação com a Câmara, o Senado tem recebido bem menos atenção dos estudiosos do Poder Legislativo. Um pioneiro e bem-vindo conjunto de trabalhos sobre a estrutura, o funcionamento e os bastidores políticos daquela Casa é O Senado Federal brasileiro no Pós-Constituinte (Brasília: Senado Federal/ Unilegis [Universidade do Legislativo Brasileiro], 2008) organizado por Leany Barreiro Lemos, doutora em Sociologia pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas, da UnB, e servidora do Senado.
(*) Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB) e analista da Kramer & Ornelas – Consultoria. Atualmente orienta grupo de alunos de graduação na elaboração de manual, inédito no Brasil, sobre o Congresso dos Estados Unidos, a ser publicado em 2009.