Consulta pública sobre nova ortografia recebeu só 12 e-mails
Enviadas ao longo de 3 semanas para e-mail do MEC, nenhuma sugestão sobre como aplicar as novas regras foi aproveitada
Envolvimento de brasileiros contrasta com as reações em Portugal, onde houve abaixo-assinados e debates contra mudanças
RICARDO WESTIN
DA REPORTAGEM LOCAL
Antes de elaborar o decreto que foi assinado ontem pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o MEC (Ministério da Educação) realizou uma consulta pública para que os brasileiros fizessem sugestões de como a nova ortografia deveria ser posta em prática. Ao longo das três semanas da consulta, chegaram ao governo apenas 12 mensagens. Nenhuma delas foi aproveitada.
O MEC recebeu as contribuições no mês passado, pelo e-mail acordoortografico@ mec.gov.br. A consulta pública havia sido noticiada em todo o país por sites e jornais.
A não ser por F.G. (o MEC forneceu à Folha apenas as iniciais dos nomes), que sugeriu que o "senhor ministro da Educação" fizesse um "pronunciamento à nação sobre as mudanças", as mensagens simplesmente não trataram da implementação das novas regras.
V.R. questionou sobre a existência do hífen em "afrodescendente" e "afro-brasileiro". E.B. solicitou uma cópia das novas regras "em PowerPoint".
A maioria dos participantes pediu mudanças no acordo. L.K. se queixou do "abuso na eliminação dos acentos". Para ele, "dar um ar inglês ao português não ajuda a difundir" o idioma. R.M. não gostou de saber que ainda haverá grafias diferentes em Portugal e no Brasil -isso, na opinião dele, "gera transtornos".
D.T. foi ainda mais longe e sugeriu que o português seja escrito tal como é pronunciado. Ele deu exemplos: "caza" em vez de "casa", "xave" no lugar de "chave" e "teliado" em vez de "telhado". "As regras da língua portuguesa são exageradas. Se escrevêssemos como falamos, facilitaria a vida de todo mundo", argumentou.
As sugestões não foram acatadas. "O conteúdo vem de um acordo internacional, que já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado [o decreto legislativo é de 1995]. Não dá para mudar", explica Godofredo de Oliveira Neto, presidente, no MEC, da Comissão de Língua Portuguesa.
O envolvimento dos brasileiros contrasta com as reações que pipocaram em Portugal, onde calorosos debates nos meios de comunicação e abaixo-assinados contra as mudanças mantiveram o tema sempre em evidência.
"Os portugueses reagiram tão fortemente por entender que o acordo seria uma concessão ao Brasil, uma perda política e cultural. Aqui, não houve esse sentimento. Além disso, convenhamos, o acordo altera tão pouca coisa para nós...", diz o professor de língua portuguesa Carlos Alberto Faraco, da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
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Lula sanciona o novo acordo ortográfico
Mudança, que ocorrerá gradativamente de 1º de janeiro do próximo ano até 2012, irá afetar cerca de 0,5% das palavras
Presidente diz que acordo é "reencontro do Brasil consigo mesmo`; importância da medida "é maior do que pode parecer à primeira vista", disse
Vanderlei Almeida/Ag. AFP
Lula durante discurso na Academia Brasileira de Letras, no RJ
SERGIO TORRES
DA SUCURSAL DO RIO
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou ontem, na ABL (Academia Brasileira de Letras), no Rio, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que mudará a grafia de cerca de 0,5% das nossas palavras. O fim do trema, do acento agudo em ditongos abertos ("idéia" será "ideia") e do acento circunflexo com duplos "e" e "o" ("vôo" será "voo"), entre outras mudanças, ocorrerá gradativamente de 1º de janeiro do próximo ano até 2012. Previsto desde 1990, mas não-ratificado pelos Congressos de todos os países, o acordo ganhou um protocolo modificativo nessa década. Ele foi aprovado por Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e, em 2002, pelo Brasil. Em maio de 2008, Portugal concordou com as bases do acordo. Lula classificou o acordo como um "reencontro do Brasil consigo mesmo" e disse que a importância da medida "é maior do que pode parecer à primeira vista", pois tem "pertinência e, sobretudo, significado estratégico no que diz respeito à cooperação entre os países lusófonos". Para o presidente, o acordo propicia "um novo impulso" ao "intercâmbio Brasil-Portugal" e "o imprescindível resgate" dos "laços substantivos com a África, em particular a África de língua portuguesa". "Para nós, representa mais, muito mais que uma prioridade geopolítica. Diz respeito à nossa alma, diz respeito à nossa identidade como nação multi-étnica e multicultural, ao próprio destino da civilização brasileira", discursou Lula, sem dar espaço aos improvisos que costumam caracterizar seus pronunciamentos públicos. Colunista da Folha e escritor, o acadêmico Carlos Heitor Cony, presente à solenidade, é um dos poucos integrantes da Academia a discordar de Lula quanto à importância do novo acordo. "Para mim, realmente, acho absolutamente inútil e improdutivo. (...) Portugal jamais vai se submeter, a Portugal metrópole, a certas coisas."
Machado
No encerramento de seu discurso, Lula citou trecho de texto em que o escritor Machado de Assis (1839-1908), cujo centenário de morte ocorreu ontem, afirma que "um governo" e "uma revolução" se fazem com palavras e idéias. "Disse Machado de Assis: "Palavra puxa palavra, uma idéia traz outra. E assim se faz um livro, um governo ou uma revolução". Façamos juntos a revolução do livro e da leitura em nosso país", disse Lula na cerimônia, em que também foram homenageados os cem anos da morte do escritor, fundador e primeiro presidente da ABL e, para Lula, "insuperável" na literatura brasileira. Para uma platéia de acadêmicos e intelectuais, Lula prometeu inaugurar até o fim de 2009 ao menos uma biblioteca pública em todos as cidades do país. Ao falar sobre Machado, a quem se referiu como o "genial bruxo do Cosme Velho [bairro na zona sul do Rio, onde o escritor morou]", Lula destacou a origem do escritor, "mulato", "filho de lavadeira", "neto de escravos alforriados" e que "começou muito cedo a trabalhar". "Machado venceu pelo seu próprio talento individual. Mas quantos outros gênios da raça foram impedidos de surgir e de se desenvolver?", perguntou o presidente. Na chegada de Lula, cerca de cem servidores da Justiça do Estado do Rio protestaram contra o governador Sérgio Cabral (PMDB), cobrando reajuste salarial de 7,3%. A categoria está em greve há sete dias.