E vi (e escrevi) quando ela quase morreu de tristeza ao saber que seus pupilos haviam criado mensalão. Chorava, chorava, chorava...
Maria da Conceição Tavares está de volta à arena. Certa vez Gay Talese escreveu que Frank Sinatra com gripe era como Picasso sem pintura, Ferrari sem combustível – só que pior. Conceição sem causa é como Sinatra sem voz. Quando ela chora, de alegria ou de tristeza, emite vibrações que influenciam as decisões sobre os rumos da economia. "O neo-liberalismo foi enterrado", decreta a professora.
Desde o escândalo do mensalão, há três anos, a professora Maria da Conceição Tavares, mãe do desenvolvimentismo econômico brasileiro, mantinha-se recolhida, em depressão. Derretia-se em lágrimas de amargura.
Estive ontem à noite com ela, no jantar pelos 200 anos do Ministério da Fazenda. Estavam lá quase todos os ex-ministros vivos, liderados por Delfim Netto. Mas era Conceição, aos 78 anos, a estrela da festa.
O jantar foi no Hotel Alvorada, à beira do Lago Paranoá e ao lado do Palácio da Alvorada, Brasília. Até recentemente chamava-se Hotel Blue Tree. É o melhor ponto de encontro da corte, onde o Itamaraty costuma instalar os chefes de Estado estrangeiros.
Foi lá que o ministro Guido Mantega também escolheu como cenário da festa pelos 200 anos do Ministério da Fazenda. Convidou todos os ex-ministros da Fazenda ainda vivos para participar de um seminário sobre os rumos do país. Fez muito bem. Na festa de ontem, estavam lá Delfim Netto, Ernani Galveas, Bresser Pereira, Zélia Cardoso de Mello e Paulo Haddad. Faltaram Pedro Malan, que fez falta. E Antônio Palocci, o trotsquista-liberal do PT. Esse aí não foi de birra, morre de inveja de Mantega.
Mas compareceram as duas estrelas maiores do pensamento econômico brasileiro, Delfim Netto, o liberal, e Maria da Conceição, a desenvolvimentista. Conceição tem uma nova causa. Estava eufórica no jantar de ontem à noite. Com o desempenho político de seu afilhado Lula neste segundo mandato. Com a condução, pelo discípulo Mantega, do país diante da crise internacional da sub-prime. Está feliz com a infelicidade do modelo neo-liberal, que ela sempre combateu. Sua alegria mais recente foi saber que o Tesouro dos EUA vai socorrer com US$ 200 bilhões duas empresas norte-americanas de financiamento imobilário, Fannie Mae e Freddie Mac, para tentar estancar a quebradeira em cascata.
Esta é a prova definitiva de que o modelo neo-liberal não funciona. Conceição acha que o neo-liberalismo era só uma pregação artificial dos tais "mercados internacionais" para manter a hegemonia sobre nossotros, os emergentes. Para eles próprios, o que funciona mesmo é a velha intervenção do Estado na economia, como vem pregando Conceição há mais de 50 anos. "O socorro é o enterro do neo-liberalismo", decretou ontem a professora.
Lembro-me com muita clareza quando Conceição chorou pelo Plano Cruzado. Fui testemunha ocular de suas lágrimas, como jovem repórter. Também assisti pela TV quando ela lacrimejou no Plano Real. Lembro-me quando ela se derreteu copiosamente quando Lula chegou ao poder. E vi (e escrevi) quando ela quase morreu de tristeza ao saber que seus pupilos haviam criado mensalão. Chorara, chorava, chorava...
Conceição é assim mesmo, emotiva. Desta vez não a vi chorar pelo enterro do neo-liberalismo, confesso. Mas como ela sempre extravassa seus sentimentos pelas lágrimas, usei-as como metáfora para fazer o título dessa crônica.
Há exatamente três anos, em setembro de 2005, escrevi uma reportagem sobre a depressão profunda da professora. Foi capa da revista "Dinheiro". É uma boa oportunidade de republicá-la. Como documento histórico, para que nossos leitores se recordem dos erros do passado deste governo. Mas também como documento do tempo presente, para registrar o quanto essa senhora, portuguesa de nascimento, continua louca de paixão por seu país de adoção.
Desta forma, como contraponto, a matéria abaixo talvez consiga valorizar ainda mais as lágrimas alegres de Conceição Tavares. Abaixo, uma crônica sobre as lágrimas amargas de Conceição Tavares.
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"ESTE ES UN GOBIERNO DE MIERDA, PERO ES MI GOBIERNO, MIERDA!"
por Hugo Studart
Maria da Conceição Tavares está chorando. Ela já chorou em público pelo Plano Cruzado, quando suas idéias foram postas em prática. Lacrimejou no Plano Real e derreteu-se copiosamente quando seu protegido Lula chegou ao poder. Mas desta vez as lágrimas de Conceição são amargas. E reclusas. Ela atravessou três meses consecutivos com um cigarro aceso numa mão e um controle remoto na outra, trancada no apartamento, assistindo ao vivo a sessões de CPI pela TV Senado.
Aos 75 anos, ela foi abatida pelas notícias de corrupção no partido que ajudou a empinar, o PT. Conceição, essa portuguesa que já se disse ensandecida de paixão pelo Brasil, entrou em depressão profunda. “Joguei meus últimos anos de vida num projeto que fracassou”, tem repetido aos poucos amigos que ela permite que a visitem.
De início, caiu doente. Ficou apática, chorava muito. Utilizava adjetivos como frustrada, arrasada, decepcionada. “O choque foi muito grande”, justificou. A cada susto, um cigarro. Conceição fumava três carteiras de cigarro por dia. Já fuma quatro e está passando para a quinta. A cada revelação, a hérnia de disco somatiza dores agudas na coluna.
O professor Carlos Lessa subiu ao apartamento para tentar consola-la. “Vamos fazer desse limão uma limonada”, propôs. Lessa acabou chorando junto – e desceu na maior crise de depressão que enfrentou na vida. “Conceição está se arrastando emocionalmente, é só angústia”, consterna-se Lessa. “Para ela está sendo terrível ver desmoronar todos seus sonhos, é muito doloroso suportar o que está acontecendo com o Brasil, com o PT e com seus amigos petistas”.
O senador Aluízio Mercadante conseguiu uma pequena vitória. Na terça-feira 30, telefonou para a professora. “Você já soube da variação parcial do PIB?”, indagou, tentando demonstrar euforia com as notícias de retomada do crescimento. Ela se mostrou cética – mas ficou de pé. No dia seguinte, à noite, Conceição apareceu num debate com o presidente interino do PT, Tarso Genro. Foi surpresa, ninguém esperava que aceitasse o convite. “Pode ser um governo de merda, mas é o meu governo”, foi logo avisando, num discurso duro e emocionado. “Enquanto eu tiver saúde, e ultimamente não tenho tido muito, vocês vão ver o que é gritar”.
Estava ali a Conceição velha de guerra. Ela disse que não se exime de culpa pela crise – ao contrário. “Não culpo o Lula nem o governo, nem mesmo o Palocci”, gritou. “Estávamos todos lá, todos, desde que entrei no partido. Não vem agora com ar de quem não tem nada a ver com isso. Então estavam todos dormindo ou de touca?”.
Seus amigos, a começar por Mercadante, torcem para que a professora continue gritando. Nas últimas semanas, Conceição já expulsou do apartamento pelo menos cinco discípulos que ousaram falar mal do PT ou de Lula – entre eles os economistas José Carlos de Assis, Márcio Henrique de Castro e Luiz Eduardo Melin. O amigo Darc Costa ensaiou chamar toda a esquerda de porcalhona. “Ponha-se daqui pra fora”, disse. “Estais a me ofender em meu próprio lar!”. Ela também rompeu com o economista César Queirós Benjamin, ex-PT, e se afastou do professor Luciano Coutinho por conta de divergências na avaliação da atual política econômica. “Ela continua apaixonada pelas grandes causas, essa é sua grande virtude: a paixão”, minimiza Coutinho.
Certa vez Gay Talese escreveu que Frank Sinatra com gripe era como Picasso sem pintura, Ferrari sem combustível – só que pior. Conceição sem causa é como Sinatra sem voz. Quando ela chora, de alegria ou de tristeza, emite vibrações que influenciam uma legião de catedráticos do pensamento econômico –aliados ou adversários-- discípulos de toda sorte, executivos de empresas e autoridades públicas que precisam tomar decisões sobre investimentos e os rumos da economia.
Neste momento, as lágrimas de Conceição representam o testemunho vivo da frustração do pensamento econômico desenvolvimentista com os rumos da economia. Conceição é a grande mãe do desenvolvimentismo latino-americano – da mesma forma que o pai é Celso Furtado, seu maior amigo, falecido em novembro último. “Minha única alegria é saber que o Celso morreu antes de ver isso”, tem repetido. “Ela está sofrendo por inteiro, está sentindo essa crise com as tripas”, conta a amiga Rosa Freire de Aguiar, viúva de Furtado.
O drama da professora é que ela ainda não conseguiu processar a culpa de cada um nessa crise. Ela acha que houve certo deslumbramento no PT, mas não parece convencida do que diz aos interlocutores. Analisar a conduta de Delúbio Soares, Silvio Pereira e Marcos Valério, está fácil. Ela se recusa a pronunciar seus nomes e só se refere a eles como “vilões”.
Mas Conceição cai em prantos quando tem que falar de seus amigos Lula e José Dirceu. Para ela, Lula foi um inocente, “sacrificado no meio dos vilões”. Já Dirceu, foi um “inocente útil”. Quando provocada a falar sobre Antônio Palocci, ela muda de assunto. Diz apenas que a corrupção está associada a essa política econômica errada, “reducionista”, como define. “Se o País estivesse crescendo, a corrupção seria menor”, explica.
O secretário do Tesouro Joaquim Levy, um técnico que nada tem a ver com a crise, está levando a culpa. Conceição só se refere a ele como “aquele filho de Washington”. “O superávit primário é uma vergonha, não vai levar o País a lugar nenhum”, queixa-se. “A corrupção é fruto dessa falta de perspectiva”.
O apartamento onde Conceição se recolheu fica no bucólico bairro do Cosme Velho, a meio caminho do Cristo Redentor. Tem 180 m2 de chão e pelo menos 300 m2 de estantes nas paredes. Há livros (lidos) na sala, no corredor, nos três quatros e até no banheiro. Ela acorda e devora quatro jornais diários. Corre para a hidroterapia na academia Mira Sports, na rua das Laranjeiras – única forma de aliviar as dores na coluna, cada vez mais agudas – e volta correndo para a televisão, a tempo de assistir a sessão de alguma CPI. Está aficionada pela CPI do Mensalão – antes era a dos Correios.
Viúva, vive só com uma empregada. Seu escritório, tocado pelo assessor Alexandre Silva, fica ao lado do edifício onde mora. Ela tem ido pouco por lá. Seu principal interlocutor é o professor Luiz Gonzaga Beluzzo. Conversam por telefone no mínimo duas vezes por semana. Beluzzo tem sido cuidadoso em suas análises sobre a crise interna e procura animar Conceição discutindo economia internacional. Ele é seu fio-terra. Neste momento, estão em pleno debate acadêmico sobre o último texto de Alan Greenspan, publicado na America Economic Review. Greenspan escreve sobre a dificuldade de se usar modelos rígidos de política monetária em economias que se transformam com muita rapidez. “Conceição fica exultante quando exerce sua postura crítica”, conta Beluzzo.
Aluízio Mercadante também tem tentado a mesma tática para instiga-la. Ele é hoje o discípulo mais predileto de Conceição. Ela o tem alertado sobre os riscos de uma queda abruta das taxas juros no Brasil depois de quase um ano na estratosfera. “Foi uma barbeiragem”, ataca Conceição. Mercante, por sua vez, encomendou à professora um estudo sobre a bolha de crescimento chinesa, para que ele pudesse entender melhor a relação cambial entre a China e os Estados Unidos. Ela já começou suas leituras.
A amiga Rosa Freire tenta convence-la a dar um tempo, a dar uma relaxada, a visitar Portugal. “Não consigo, está complicado”, respondeu. Depois Conceição sorriu. Disse que está pensando em ir ao Chile. Já sozinha, ela então se lembrou que às vésperas do golpe militar que derrubou Salvador Aliende, a esquerda chilena saiu em passeata. Uma faixa se destacava na multidão: “Este es un gobierno de mierda, pero és mi gobierno, mierda!”.
Conceição enxugou as lágrimas e foi a um debate do PT avisar: “Enquanto eu tiver saúde, vocês vão ver o que é gritar”.
(*) Carlos Hugo Studart - jornalista e historiador, formado pela Universidade de Brasilia. Atuou como repórter, editor ou colunista em veículos como Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Veja, Manchete e IstoÉ-Dinheiro. Colaborou com as revistas Interview, Playboy, Imprensa, República e Primeira Leitura. Ganhou diversos prêmios de jornalismo, como o Prêmio Esso. É mestre em História pela UnB, especializando-se em história cultural e nos estudos do imaginário. Lecionou em institutos educacionais, como a Universidade Católica de Brasília. É organizador e co-autor do livro “Os Presidenciáveis: Vida, obra e idéias dos candidatos ao Palácio do Planalto”, e autor de “A Lei da Selva – Estratégia, Imaginário e Discurso dos Militares sobre a Guerrilha do Araguaia”. Atualmente trabalha como diretor em Brasília da Editora Três e da revista Isto É