A edição de hoje a Folha de São Paulo trás o relato da sabatina feita com o ex-presidente José Sarney. Notável, não pelo homem, vez que Sarney encarna o que há de mais desprezível na política brasileira, mas pelas idéias expostas. Sarney tem o dom de verbalizar muito bem o que pensa sobre as coisas da política e não tem o menor pejo de expô-las na dimensão da sua real mediocridade.
Sarney é uma espécie de último elo entre os políticos da velha estirpe, pré-1964, e a nova geração de revolucionários que chegaram à Esplanada dos Ministérios. Tem todos os vícios da antiga elite política e todos os da nova: o oportunismo, o cinismo, a visão paroquial do poder, o descompromisso com os interesses gerais da nação, a incapacidade colocar sua figura política, em gesto de grandeza, contra a maré montante do comunismo. Nunca foi oposição, exceto no momento em que pôde ser o pivô do impeachment de Fernando Collor. Tão sem fibra é o homem do Maranhão que não tem palavra para confrontar José Serra, político que colocou sua filha, então candidata à Presidência da República, em situação vexaminosa.
Isso nem é sabedoria política e nem é habilidade. É pura covardia, uma covardia que lhe tem servido para escalar o poder e até chegar à Presidência da República. Covardia de resultados, diria alguém mais cínico. É a covardia transformada no seu oposto, numa virtude, aos olhos dos desatentos e dos alpinistas sociais. É um exemplo acabado da inversão dos valores que estamos em ver em nosso país.
Se há um sujeito histórico sobre o qual pesa a responsabilidade pelos desatinos da nação brasileira, esse é José Sarney. Nunca soube dizer não, jamais quis ser de oposição, não tem código de conduta exceto dizer amém aos poderosos do dia. É capaz de se compor até com o capeta, desde que seus interesses miúdos sejam preservados. Em suma, é um homem desprovido de princípios.
As novas lideranças revolucionárias encabeçadas pelo PT – assim como toda a cúpula da social-democracia representada pelo PSDB, dedicam-lhe o maior desprezo, mas o usam quando lhes convém. Fez assim FHC, faz assim Lula. Em nome da suposta “governabilidade” Sarney sempre se dispôs à mais abjeta subserviência para manter as suas áreas de influência no plano federal. Um caso notável de um corpo desprovido de alma.
Na sabatina da Folha, como não poderia deixar de ser, Sarney derrama elogios à figura do presidente Lula. Afirmou: “-Chegamos no fim do século com um operário no poder. Isso é uma coisa importantíssima". Importantíssima por quê? Só se for por servir de cobaia de laboratório para cientistas políticos. Isso mesmo, Lula, como figura histórica, tem a importância de uma cobaia, pois Lula encarna tudo que de nocivo a nossa história produziu em matéria política. É ele sinônimo do abaixamento do nível civilizacional em que estamos metidos, descenso que está a destruir não apenas os valores, mas o próprio Estado. Exemplos? A desordem nas despesas públicas, exorbitância na tributação, desastre na segurança pública, no sucateamento das Forças Armadas, nas besteira em matéria de política internacional. Nosso ridículo papel nas negociações de Doha e o nosso mambembe papel no MERCOSUL, este um legado deprimente de Sarney, são exemplo acabado da destruição de nosso papel como nação. Tudo se conecta, podemos dizer com Platão.
A coisa importantíssima não é Lula ter, alguma vez na vida, sido operário, mas sim, é que um homem tremendamente desqualificado tenha chegado a primeiro mandatário da nação. Uma catástrofe de proporções inimagináveis se Sarney não tivesse virado presidente. É Sarney o ancestral de Lula, mais do que o elo histórico com o antigo. Em gratidão o PT deveria mandar lhe fazer um busto e colocá-lo com honra à porta de seu diretório central. É seu maior cabo eleitoral.
Sarney, todavia, tem razão ao dizer que Lula "tem base profunda, raiz mais profunda". Certamente essa profundidade não tem forma positiva, é a profundidade dos buracos, se quiser, dos túmulos. Essa profundidade não é solidez, nem ligação com a tradição e nem muito menos com as coisas da filosofia política, que Lula é intelectualmente mais raso que uma ameba. Lula é profundo no sentido de que é o homem-massa que brotou das profundezas das multidões, não como um líder, mas como um igual que tem o mandato de fazer os caprichos bestiais das massas. A história mostra o perigo dessa profundidade infernal, abissal, devoradora. Se Sarney soubesse o que disse passaria correndo a fazer parte da oposição a Lula. Mas não sabe, não tem noção de perigo e não é um estadista. É a covardia encarnada. É apenas um político fisiológico como outro qualquer, com a diferença que levou a fisiologia ao paroxismo. É essa sua fórmula de sucesso.
Escrevendo sobre Mirabeau, político da época da Revolução Francesa, Ortega y Gasset lembrou-nos uma frase de Joseph Chénier, que queria retirar os restos mortais de Mirabeau do Panteão dos Grandes Homens da França. Sua frase: “Considerando que não há grande homem sem virtude”. Há alguma virtude em Lula? Em Sarney? Nenhuma. Não esperemos que morram para serem removidos do panteão de nossos grandes homens, pois senão será tarde demais.