Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior (Bom Despacho/MG)
Moro numa casa ensolarada, amplas varandas com floreiras, onde Miele, meu gato, gosta de tomar banho de sol. Na casa em frente, minha vizinha, a modelo Ésper, exercita-se brincando com Paco, um coelho javanês. Já pensei em contratá-la para trabalhar na área de marketing da fábrica de tecidos de minha família. Só não levei adiante essa idéia porque o marido, Ocimar, me falou do temperamento explosivo e a forte tendência à anorexia da jovem esposa.
Naquela manhã de sábado de aleluia, embalado pelos gritinhos e gemidos de Ésper, acabei dormindo na rede de crochê da varanda. Coelhos desfilavam numa ampla colcha de chenile. Paco apareceu com uma cueca de tafetá vermelha e gravata borboleta de mousseline xadrez. Meu gato não gostou nada do que viu. Enfurecido saltou sobre Paco, desnudando-lhe o traseiro. Eu tentava tirar Paco daquela enrascada, quando os pêlos do tornozelo dele grudaram na colcha de chenile. Acordei. Anabela viu nas minhas alucinações uma premonição.
& 9472; Você é cheia de não-me-toques, ironizei.
Foi aí que vislumbrei um vulto se esgueirando da cozinha para o jardim. Passou por baixo das alamandas e foi se esconder no roseiral. Mal pude acreditar no que vi. Miele havia matado Paco e se preparava para devorá-lo. Como iria explicar a tragédia aos meus vizinhos. Os donos do coelho certamente sofreriam um troço.
Sei lá o que me deu. Peguei o defunto coelho, removi a terra que cobria sua plumagem, saltei o muro e, com toda frieza, coloquei o cadáver bem juntinho do batente da porta. Anabela descabelou-se, esmurrou o grande urso de espuma e bradou o mantra “faraooon”.
& 9472; Isso não vai dar certo, caramba!
& 9472; Que vão pro meio do inferno!
Para minha surpresa, nos dias seguintes, nenhuma reação do outro lado do muro. Meses depois, nossos vizinhos se mudaram. Para dissimular a culpa, Anabela cantava para si mesma alguns versos de uma canção melancólica de Jacques Prévert: “Ceux qui flottent e ne sombrent pas/Ceux qui ne prennent pas Le Pirée pour un homme...”
Naquela tarde de domingo, final da Copa América, encontrei Ocimar bebendo cerveja no boteco do Bill. Ele me contou que a saúde de Ésper piorara muito.
& 9472; Anorexia? & 9472; arrisquei.
& 9472; Não. Ficou pirada com a morte do Paco. Você se lembra daquele meu coelhinho javanês? Pois é. Paco morreu envenenado com agrotóxicos e Ésper sepultou o bichinho no jardim. No entanto, algumas horas depois, Paco ressuscitou, tentou buscar nossa ajuda, mas acabou morrendo de novo, bem no cantinho da porta do alpendre!
Lamentei a morte do bichinho, despedi-me de Ocimar e dei no pé. Aleluia, aleluia. Espero que ele não leia esse texto.