= Problema das reservas indígenas é mais de ausência do Estado onde ele se faz mais necessário =
A polêmica da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, no extremo norte do país, em Roraima, na fronteira com Venezuela e Guiana, reavivada pelo general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, em seminário sobre o tema `Brasil, ameaças à sua soberania`, no Clube Militar, está no ar há mais de três décadas.
O debate de fundo não é sintoma de “visão racista e intolerância cultural”, como afirmou o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira. Ou que a política indígena é “lamentável” e “caótica”, como disparou o general. Ou, ainda, que a formação da reserva foi uma “bela obra jurídica e política”, a idéia do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, em cuja gestão se deu a homologação da Raposa Serra do Sol pelo presidente Lula, em 2005.
O que três décadas de desacordo e desarmonia atestam é a completa incapacidade de as forças políticas fazerem cumprir a Constituição como patrimônio de todos os brasileiros. A pretexto de se promover o bem o que mais se tem promovido é a desagregação nacional, numa cena em que dramática é a ausência do Estado — que excede em poder em Brasília e é fraco como um cordeirinho onde sua presença se faz mais necessária, como os territórios indígenas, as áreas rurais de assentamento agrário e as zonas degradadas dos centros urbanos.
Nestas dominam o tráfico e milícias. Naquelas, grupos políticos travestidos de movimentos sociais, como o MST, e cresce uma tal de Ligas dos Camponeses Pobres, para quem o governo Lula é do FMI, PCdoB e PSTU fazem o “jogo dos traidores” e Chávez é “marionete de burgueses”. Deus do céu! Em terras indígenas, ONGs ambientalistas, muitas do exterior, circulam à vontade.
Comum a tais grupos opacos é a captura dos órgãos públicos afins, como o Incra pelo MST, a Funai pelas ONGs e a polícia pelo crime.
Os problemas da Raposa Serra do Sol não deveriam durar um minuto nos gabinetes dos governantes, se prevalecesse o bom senso e atos governamentais não fossem tomados de costas para o Congresso e a sociedade. Sua área, de 1,678 milhão de hectares, equivale à soma de Portugal e Bélgica. Tamanha extensão foi decidida por um grupo de antropólogos da Funai em 1977 para atender não mais que 8 mil a 17 mil índios, nem isso se sabe bem, de quatro grupos étnicos.
Utopia do índio nu
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É muita terra para pouca gente. O laudo antropológico foi buscar a ancestralidade da presença indígena e considerou a extensão tida como necessária para os hábitos de caça e pesca, isso quando o que pleiteiam líderes indígenas são meios para se manter com autonomia e acessar as facilidades da sociedade de consumo. É utopia o índio selvagem, nu, dormindo em rede. Mas não é isso o busílis.
Políticos, sociedade civil de Roraima e as Forças Armadas pedem menos de 10% da área demarcada, excluindo fazendas e uma faixa de 15km de fronteira, aí incluída uma vila. Disputa-se pouco para o circo armado. E nem é rever, mas corrigir os erros de demarcação como propôs a Comissão Especial criada pela Câmara em 2004. É isso o que cabe agora o Supremo Tribunal Federal dirimir.
Está mal de cabeça
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Formada por 13 deputados federais e seis consultores técnicos da Câmara, o relatório final dessa Comissão é o que melhor havia para subsidiar as discussões sobre a Raposa do Serra do Sol. O governo a ignorou. Houve a preocupação de excluir deputados de Roraima da Comissão. A relatoria foi entregue a um deputado insuspeito para a causa indígena: Lindberg Farias, hoje prefeito de Nova Iguaçu pelo PT, ex-presidente da UNE, e ex-militante do PCdoB e do PSTU.
O que disse Farias em seu relatório. Que “apenas 7,2% das terras de Roraima estão disponíveis para exploração econômica, segundo dados da Embrapa”. “O arroz produzido alimenta uma população de 2 milhões de pessoas” no Norte. “A área cultivada representa só 0,6% da reserva”. Se o governo lutar por tais 0,6%, está mal de cabeça.
Quem faz terrorismo
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Os dados de Farias dão uma pista de quem faz terrorismo em torno da reserva da Raposa Serra do Sol, cuja área não é contestada, mas sua extensão, e a ausência de discussão das preliminares do grupo de antropólogos que propôs sua demarcação, aceita de peito aberto pelo governo FHC em 1998. O ministro da Justiça da época, Nelson Jobim, hoje ministro da Defesa de Lula (sempre os mesmos), cometeu o que foi interpretado como um deslize técnico: aceitou o laudo, mas mandou refazer a demarcação para excluir fazendas e cidades.
O ministro só podia recusar ou aceitar o laudo em sua íntegra. O seu sucessor, hoje senador Renan Calheiros, baixou outra portaria, cujos termos foram homologados por Lula e o STF mandou suspender a sua aplicação até que julgue recurso do governo de Roraima.
Na meia-luz desse debate há também a resolução das Nações Unidas, assinada pelo governo Lula em setembro do ano passado, que trata do direito dos povos indígenas à sua autodeterminação. A resolução afirma que os povos indígenas podem criar instituições políticas, sociais, econômicas e jurídicas próprias, além de vetar operações militares em seus territórios. A declaração não é um marco legal obrigatório, mas abre caminho para um texto mais forte, este sim compulsório aos países membros da ONU: a Convenção Internacional para os Povos Indígenas. Lula também não sabe de nada disso?