Por falar em SINGULARIDADE *
É preciso, como diz Lya Luft (2004, p.23) “escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.”
Trata-se de um acontecimento, lá pelos idos de 1982, em que a imprensa decidiu ignorar a publicação de um termo("singularidade") criado por Felix Guattari [ pesquisa de livros], achando-o muito "sofisticado" para o povo.
Várias coisas interessantes saltam aos olhos, dentro de tudo isso: o papel da imprensa, a maneira pela qual a imprensa enxerga seus leitores, qual deve ser o leitor ‘padrão’ que acessa as informações… Em jogo, a própria constituição de um espaço de liberdade e, enfim, de criação de "singularidades":
A Folha de São Paulo convidou Guattari para uma mesa-redonda, pedindo-lhe que propusesse um tema.
Ele sugeriu "Cultura de massa e singularidade".
No entanto, o título anunciado foi "Cultura de massa e individualidade".
O termo "singularidade", segundo disseram, parecia ao jornal demasiadamente sofisticado, inacessível a seu leitor - exatamente, o consumidor de cultura de massa.
Esse fato é, no mínimo, uma coincidência reveladora, sobretudo se o pensarmos nos termos das próprias idéias de Guattari.
Ele concebe a subjetividade como produção, e considera que uma das principais características dessa produção nas sociedades "capitalísticas" seria, precisamente, a tendência a bloquear processos de singularização e instaurar processos de individualização.
Os homens, reduzidos à condição de suporte de valor, assistem, atônitos, ao desmanchamento de seus modos de vida. Passam então a se organizar segundo padrões universais, que os serializam e os individualizam.
Estvaia-se o caráter processual (para não dizer vital) de suas existências: pouco a pouco, eles vão se insensibilizando.
A experiência deixa de funcionar como referência para a criação de modos de organização do cotidiano: interrompem-se os processos de singularização.
É, portanto, num só movimento que nascem os indivíduos e morrem os potenciais de singularização.
Tudo isso constitui uma imensa fábrica de subjetividade, que funciona como indústria de base de nossas sociedades.
É exatamente nessa indústria que a mídia, tal como existe hoje em dia, com sua cultura de massa, teria um papel de destaque.
Podemos, agora, voltar à Folha.
Ao substituir o termo "singularidade" por "individualidade", o jornal, curiosamente, encenou o próprio tema do debate: cultura de massa e singularização não podem aparecer numa mesma frase; elas são, na realidade, incompatíveis.
A imprensa, enquanto produtora de cultura de massa, alimenta-se de fluxos de singularidade para produzir, dia a dia, individualidades serializadas.
Democraticamente, ela "amassa" os processos de vida social, em sua riqueza e diferenciação e, com isso, produz, a cada fornada, indivíduos iguais e processos empobrecidos.
Mas não fica só aí a coincidência. Completando sua mise-en-scène, o jornal justificou a troca dos termos argumentando que a palavra "singularidade" seria uma sofisticação inacessível a seu leitor.
De fato, singularizar é luxo nos tempos que correm! Ainda mais no mundo das páginas diárias, fabricado por essa máquina cuja função é exatamente inversa: produzir indivíduos deslocáveis ao sabor do mercado e, para isso, precisando interceptar seu acesso aos processos de singularização.
Isso sim, sem dúvida, adapta-se perfeitamente aos tais "tempos que correm"… [Guattari, F.; ROLNIK, S. Micropolíticas - Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1986 - pesquisa de livros]
* fonte:http://catatau.blogsome.com/2006/10/27/mass-media-e-singularidade/
postado por Heleida Nobrega |