Ao vasculhar registros financeiros do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Tribunal de Contas da União (TCU) encontrou uma pista capaz de comprovar suspeita com alto teor explosivo: as despesas de transporte e alimentação dos integrantes do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) que invadiram e depredaram o Congresso Nacional em junho do ano passado provavelmente foram pagas com dinheiro repassado pelo governo Lula. Mais especificamente, por intermédio do convênio nº 531854, celebrado entre o Incra e a Associação Nacional de Apoio à Reforma Agrária (Anara), espécie de braço financeiro do MLST, meses antes da baderna no parlamento.
Ainda no ano passado, pouco tempo depois da invasão ao Congresso, o TCU foi provocado pelo senador Álvaro Dias (PSDB-PR) e pelo deputado Augusto Carvalho (PPS-DF). A pedido deles, iniciou uma varredura em repasses de dinheiro da União para a Anara — R$ 5,5 milhões ao todo. Dos cinco convênios entre o Incra e a ONG, justamente no maior deles, envolvendo R$ 2,2 milhões, os auditores acharam “irregularidades nas celebrações e prestações de contas”. O Ministério Público junto ao TCU representou contra os sem-terra e determinou a conversão da auditoria em Tomada de Contas Especial, a recomendação mais grave após a fase preliminar de investigação. O processo gerado a partir daí está na mesa do ministro Aroldo Cedraz.
O convênio problemático foi assinado no dia 9 de dezembro de 2005. A descrição do propósito do dinheiro é feita de forma peculiar: “(O convênio) Tem por objeto a reestruturação produtiva, social, cultural e ambiental dos assentamentos beneficiados com a elaboração de um plano de reestruturação; execução de 11 planos de recuperação; realização de 36 cursos de formação, 144 oficinas, 36 encontros nos assentamentos, 21 encontros regionais, 1 encontro nacional”.
A última parcela depositada pelo Incra na conta bancária da Anara, no valor de R$ 224.244,72, data de 1º de fevereiro do ano seguinte, a quatro meses da invasão ao Congresso. Antes dela, a ONG já havia recebido pouco mais de R$ 2 milhões nos 53 dias anteriores. Passado o prazo regulamentar, entretanto, a direção da Anara não quis ou não conseguiu provar ter gasto um centavo sequer na “reestruturação produtiva, social, cultural e ambiental dos assentamentos beneficiados”. A suspeita é de que parte da grana, ou pouco mais de R$ 89 mil, tenha acabado custeando o deslocamento e a alimentação dos 525 militantes do MLST que, reunidos em Brasília, tocaram o terror no Congresso.
Personagem
Assim como a baderna de 6 de junho, o MLST é cria do engenheiro pernambucano Bruno Maranhão, 66 anos. Membro de uma das famílias mais conservadoras entre os clãs de usineiros do estado, ele milita em partidos de esquerda desde a década de 1960. Diz ter participado da luta armada contra a ditadura, exilou-se no Chile e na França e, de volta ao Brasil depois da anistia, fundou o PT de Pernambuco.
Empresário
Por causa da má repercussão da invasão do MLST ao Congresso no ano passado, Maranhão perdeu o cargo de secretário nacional de Movimentos Populares do PT. E, com isso, a vaga na comissão executiva nacional do partido. Mas ainda integra o diretório nacional, maior instância burocrática da sigla.
A vida de Bruno Maranhão é uma constante contradição com sua ação política. Embora se faça acompanhar de trabalhadores rurais onde quer que vá, ele tem um apartamento no bairro recifense de Boa Viagem, onde mora a classe alta da cidade, detém metade das cotas de uma empresa — a Imprima Comércio e Distribuição Ltda —, e o Detran local tem registro de que a ele pertence um prateado utilitário esportivo Xterra, fabricado pela Nissan, cujo valor de mercado gira em torno de R$ 75 mil.
A usina da família, Estreliana, jaz falida em Gameleira, município canavieiro da Zona da Mata pernambucana. Suas terras jamais foram invadidas pelo MLST, que, no entanto, ergueu acampamento na Fazenda Itaíba, próxima à cidade de Arcoverde (PE), pertencente a Fernando Maranhão, parente distante do líder do movimento. Depois da invasão, a Itaíba foi desapropriada pelo Incra.
Para comentar a auditoria do TCU, o Correio tentou contatar o dirigente do MLST em três telefones registrados em nome dele e da família, mas não obteve resposta.
Memória: Um dia para se esquecer
No meio da tarde de 6 de junho do ano passado, uma terça-feira, o Congresso Nacional transformou-se em palco do mais grave espetáculo de selvageria política desde a redemocratização. Um grupo de 525 integrantes do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) invadiu e depredou o prédio da Câmara. Sem sequer dizerem ao certo por que protestavam, os manifestantes destruíram boa quantidade de equipamentos públicos e deixaram 28 pessoas feridas, uma delas, o então chefe da segurança, Normando Fernandes, em estado grave, graças ao afundamento do crânio causado por uma paulada.
A descrição dos acontecimentos daquele dia até hoje parece chocante. Ao forçarem a entrada no Anexo 2 da Câmara, os militantes jogaram pedaços de pau e garrafas de água em direção ao hall de entrada. Iracundos, eles viraram um carro, estacionado ali perto. Pedaços de pedras, tirados das calçadas, destruíram a porta de vidro do lugar. Pessoas sangravam com os estilhaços.
Depois de entrarem no prédio, já no Salão Verde, um manifestante armou-se com uma barra de ferro e atingiu uma pilastra. Outro militante subiu nos ombros do monumento “O Anjo”, de Alfredo Ceschiatti, e empunhou uma bandeira do movimento. Com medo, os seguranças do Senado fecharam as portas que ligam as duas Casas.
Alguns deputados tentaram resolver a situação levando o líder do MLST, o petista Bruno Maranhão, até o então presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Aldo se negou a negociar e ameaçou prender todos os invasores. Maranhão, então, ordenou a retirada. Uma vez fora do Congresso, mais de duas horas depois do início da confusão, os manifestantes foram identificados e presos pela Polícia Militar.