Quem conheceu e se recordar da ambiência do Jardim da Cordoaria em meados dos anos-cinquenta, lembra-se decerto do popularíssimo propagandista Machado. Chegava, abria a sua maleta plena de saquetas coloridas com milagroso pózinho ou pequenos frascos com curativa banha-de-cobra, logo se fazendo rodear de dezenas de curiosos, cativados pelo seu exuberante dom de palavra.
Após teatral exibição com um pano vermelho e um ovo que fazia espectacularmente desaparecer para mais curiosos atrair ainda, iniciava, servindo-se de uma garrafa cheia de água e um copo, a prova mais que provada de que o pó fazia bem a tudo-tudo quanto se pudesse imaginar e não custava cem, nem cinquenta, sequer vinte ou dez. Cada saquetazinha custava apenas cinco-escudos e quem comprasse uma levava duas. Meu pai lá comprava então as duas saquetas e, quando regressávamos a casa, logo que se lhe deparasse sítio azado, deitáva-as fora.
Outrossim, quem também se recordar do fadista humorístico portuense Neca Rafael, ouviu decerto através da rádio ou em algum espectáculo «Uma casa importante», uma composição que abordava um estendal de produtos para diversificadíssimos fins, inclusive pomada para os calos.
No caso do Neca Rafael, que vendia cantigas, de cada uma das quais tinha de ter escrito um exemplar carimbado pela PIDE, não havia problema algum, o que já não sucedia com o Machado, obrigado a fugir da polícia com a maleta meia-aberta e as saquetas do miraculoso pó ou os frasquinhos da banha-de-cobra a espalharem-se pelo chão.
Porque me ocorre pois memorizar o propagandista Machado e o humorista Neca Rafael? Porque sinto que o que na vida dos humanos muda é apenas a ilusão que mais e mais se vai refinando, ou seja: o embrulho muda de forma e de cor, mas o conteúdo permanece sempre na mesma.
Prossigo.
Apesar da estranha crise com que o país se debate há-meia dúzia de anos continuar a manter-se sob a perspectiva de cada vez mais agravar-se sob a esperança do alívio, não falta quem se apresente a delinear soluções nas mais diversas vertentes. Por exemplo, vi e ouvi no programa «Sociedade Civil», que passa em dupla edição na RTP2, um sociólogo afirmar que está em marcha um plano que visa reimplantar o comércio tradicional nas principais cidades. Esta, entrou-me pelos ouvidos e não saiu por nenhum deles.
De imediato, interrogativo de espanto, cogitei com o meu fecho de correr: - Mas, ó caramba, como irão proceder os iluminados mentores da ideia se o tecido comercial apto e vivo está em extremo ponto de extinção? Ora então não iremos assistir a mais uma ridícula farsa de entusiástico abotoamento e, ao mesmo tempo, a uma espécie de brincadeira ao folclore com uma desfolhada feita à base de espigas e folhelho de plástico? O que quererá de facto dizer comércio tradicional em 2007? Daí a pouco, assim que pensei no potentado das superfícies comerciais, fui à janela, sacudi a cabeça, abri os ouvidos e atirei com a atoarda-socializante para as borboletas que já voam felizes a acariciar as plantas, e estas, sim, infalíveis em tradição, embora à rasca com a atmosfera poluída. Caramba, quem vai deixar de estacionar o carro tranquilamente, de pegar no carrinho e meter os miúdos dentro a bater palminhas, passear pelas áleas onde há de tudo e escolher à vontade o que quer, fruir um passeio agradável e voltar para casa em semi-festa familiar com as compras?.. Diacho, irá este «renovado comércio tradicional» vender fiado para chamar a clientela?...
Numa outra e nítida observação, abordando o pormenor de quem gosta e vê jogos de futebol pela televisão, decerto já repararam que os relatores, os comentadores e os treinadores despedidos, não cessam de proclamar que «agora, para o Benfica ganhar o jogo, deveria fazer-se isto, aquilo, tirar este e meter aquele».. Eu, se fosse treinador-empregado, para não deixar passar um só de tão «importantes» saberes e conselhos, não dispensaria um auscultador permanentemente preso na orelha. Está-se mesmo a ver o que eu faria se fosse presidente do Benfica, pois está? Ah, e se eu fosse primeiro-ministro? Claro, perderia lá eu a experiente erudição daqueles que televisivamente me diriam o que é preciso fazer para levar o país à elegância, comendo-se o menos possível com satisfação e por aí fruindo um salutar vigor corporal. É evidente que se fosse solicitado para produzir um programa na TV, já tinha ideia, título e tudo: «Faça assim, cozido, assado e frito».
- Apre, Torre da Guia, basta. Então o que é isto? Atreve-se a criticar tudo e todos sem apresentar uma única solução?!...
- Ai apresento, sim, e apresento-a imediatamente. estejam quietinhos, deixem-se de bandeirinhas e cartazes, deixem-se de marchas lentas e slogans que já nada significam, não exuberem perdas de tempo e trabalhem com entusiasmo. Meditem no papel daqueles que inopinadamente ficam de boca aberta à entrada das fábricas sem emprego e endividados. É de resto esse o sacrifício que se pede aos cidadães sensatos, aqueles que não se alicerçam em finorices e conluios ridículos, habilidades que apenas acabam por prejudicar, na actual decorrência, o colectivo operário e aqueles que pretendem ganhar sua vida a trabalhar. A enxurrada está ganhando terreno e, se assim continuar, a saturação de o «tapa num lado e rebenta por outro» cuidará de abrir o dique todo.
É pessismismo demasiado? Dá para ter dúvida, pois então não dá? Mas é verdade explícita, verdade que confrange e preocupa quem não for indiferente à objectiva observação. Verdade que obriga cada um de nós a olhar-se urgentemente em seu espelho íntimo. Não há hipótese alguma de fazer fluir a economia «à laise» enquanto os empresários temerem a prévia reinvindicação tácita do operariado. Está a surgir cada vez mais impante um surpreendente fenómeno: são os patrões que fazem greve definitiva sem data marcada. Ainda poucos deram por isso, mas a revelação factual vai surgindo passo a passo. É de resto essa a crise, a crise do trabalho precário que, tendo algo de formiga obreira, num ápice se transforma em marabunta e provoca a crise-de-tudo.
Como a evidência pragmática todos os dias vem demonstrando, as cartilhas duras do salazarismo, do comunismo e do socialismo acabaram, faliram por inépcia humanista, não são de todo plausíveis na concertação do mundo global, embora haja milhares de assolapados que, em nome de ideologias que sequer em mínimo praticam, estupidamente estão dentro das antigas trincheiras a sustentar uma partidocracia onde só uma mínima percentagem colhe privilegiadas e lídimas benesses. Muitos deles vão morrer no seu posto como se a guerra jamais tivesse fim.
PS = Aqui para o Fórum JN, que é um lauto festival de paradoxismo lúdico, a crise não faz diferença alguma. O que nós deveras queremos (desculpem-me alguns e entendam a abragência) - e parece gozarmos intensamente com isso - é dar com as teclas uns nos outros, ora bate em maiúscula, ora bate em minúscula, e siga o processo que assim é que é lindo entre galos a fazerem de galinhas para melhor atrair os pintainhos à ponta do bico. Todavia, independentemente dos azedumes, viva o Fórum, porque através dele até nos esquecemos da crise real.
António Torre da Guia |