por Raymundo Negrão Torres (*) em 05 de março de 2006
Resumo: Em meados dos anos 80 a bomba de retardo da dívida externa dos países do Terceiro Mundo tirava o sono dos banqueiros internacionais e ninguém poderia imaginar que fosse possível fazer daquele amargo limão uma agradável limonada.
O anúncio pelo Secretário do Tesouro Joaquim Levy da compra dos nossos últimos “Brady bonds”, fez ressuscitar a história de nossa “impagável” dívida externa sobre a qual o PT e seus aliados pediam há tempos uma auditoria, pois não a queriam ver paga “com o sangue dos brasileiros”. Como o “governo militar” foi – como de hábito - mal situado por alguns analistas, vale a pena uma vista d´olhos sobre o assunto.
Em 1973, para uma dívida externa de pouco mais de 12 bilhões de dólares, tínhamos 6 bilhões de reservas. Com a crise do petróleo, em apenas cinco anos, acumulamos 50 bilhões de dólares de dívidas. Quando o Brasil estava prestes a absorver o 1º choque, sobreveio o 2º, que fez o petróleo triplicar de preço e passar a representar 47% do valor do que comprávamos lá fora. Na realidade, nossa dívida externa foi – como dizia Roberto Campos – uma “petrodívida”, pois, em plena arrancada para a "decolagem do desenvolvimento”, fomos atropelados por aquele primeiro choque. Parece, assim, muito instrutivo rever o que foi feito para enfrentar aquela situação dramática e que pôs em xeque o "milagre econômico brasileiro". A opção que se punha para o Governo Geisel era reduzir o investimento ou reduzir o consumo. A escolha foi não cortar nem o consumo, nem os investimentos, recorrendo, para estes últimos, ao endividamento externo. Assim foram contratados e feitos os pólos petroquímicos, o programa siderúrgico, Itaipu, Tucuruí, e iniciados a Ferrovia do Aço e o programa nuclear para a produção de energia elétrica. Os objetivos eram conflitantes e os resultados previsíveis: uma inflação alta e o agravamento da crise no balanço de pagamentos. Nesse quadro difícil, avultaram como causas dos desequilíbrios: o excesso de gastos do Governo, três anos de frustrações nas safras agrícolas e uma grande desordem salarial - principalmente nas estatais - tudo isso tendo como pano de fundo a elevação dos preços do petróleo importado, de que nos tornáramos extremamente dependentes.
Mas não foi só isso. Para aumentar nosso constrangimento, os credores, no intuito de ajustarem suas próprias economias à crise do petróleo, elevaram abusivamente os juros internacionais de tal forma, que o serviço da nossa dívida que, em 1973, era de 2,6 bilhões de dólares, passou a ser 4 vezes maior em 1979. Pagamos, naquela época, até 20% de juros! Ao mesmo tempo, o ajuste à recessão pelas economias dos países ricos fazia-se à custa do aviltamento do preço das "commodities", fonte principal de nossas receitas de exportação, o que nos custou, em sete anos, perdas de receitas externas de mais de 40 bilhões de dólares!
Quando, em meados dos anos 80, a bomba de retardo da dívida externa dos países do Terceiro Mundo tirava o sono dos banqueiros internacionais, ninguém poderia imaginar que fosse possível fazer daqueles amargos limões uma agradável, lucrativa e até doce limonada. E coisas espantosas - que uns poucos anos antes seriam consideradas meras e delirantes fantasias - aconteceram e a dívida dos países da América Latina transformou-se em fonte de inesperados e gordos lucros para bancos e firmas de investimentos. O que, no começo, parecia negócio incerto de aventureiros e "picaretas", realizado com características semelhantes às das escusas e arriscadas transações de "flight and hot money", em pouco tempo passou a interessar aos grandes banqueiros que, a princípio, muito cautelosos, apenas trocavam entre si os papéis representativos das dívidas de que eram credores. Depois, veio o interesse das multinacionais pela compra de parte dos débitos dos países devedores, com atraentes descontos; mais tarde, esses créditos foram usados na conversão da dívida, mediante a compra de ações de estatais privatizadas. E, a partir daí, os negócios não pararam de crescer.
Mas o Mercado da Dívida só nasceu, realmente, depois que o presidente do poderoso Citicorp, John Reed, surpreendeu a comunidade financeira internacional mandando lançar no “vermelho” as reservas correspondentes aos empréstimos de seu banco a países do Terceiro Mundo, numa clara admissão de que tais dívidas, provavelmente, jamais seriam pagas. O choque foi tão grande que muitos bancos apressaram-se a fazer o mesmo, dando baixa em seus créditos pelos preços que pudessem obter. Isto, como não podia deixar de ser, assanhou os especuladores e fez surgir um florescente mercado da dívida que, em dois anos, dobrou o volume de seus negócios, chegando, no ano de 1988, à respeitável cifra de 100 bilhões de dólares. O negócio tornou-se tão bom e os preços subiram tão espetacularmente, que até um índice para o novo mercado apareceu - o índice do mercado da dívida dos países menos desenvolvidos (Salomon Brother s less developed countries (LDC) index). E, apenas em um ano, o índice do preço dos títulos representativos das dívidas dos países da América Latina subiu 24,5%. Esse resultado mostrava que a compra das dívidas desses países passou a ser considerada um risco que valia a pena correr.
Estas boas perspectivas tornaram-se melhores ainda com o anúncio, em março de 1989, do chamado Plano Brady que acenou, pela primeira vez, com a possibilidade de uma redução efetiva das dívidas dos países que, de fato, corrigissem e reorganizassem suas economias, segundo o figurino do Fundo Monetário Internacional (FMI). O México foi o primeiro país a beneficiar-se do Plano Brady, convertendo 34 bilhões de dólares de sua dívida nos chamados "Brady bonds", garantidos pelo Tesouro americano. Depois, foi a Venezuela que garantiu a consolidação de 20 bilhões de sua dívida. Logo depois, tivemos o acordo preliminar conseguido pelo Brasil, na transformação de seu débito de 6 bilhões de dólares de juros não pagos, em bônus, pagáveis no prazo de 10 anos. Em nosso caso, houve a manobra que deixou enfurecidos os credores, pois, ao mesmo tempo em que nos recusávamos a pagar juros vencidos, íamos, sorrateiramente, ao mercado aberto comprar, com o dinheiro do calote, títulos de nossa dívida, ao preço de pechincha de 25 centavos por dólar!
Tudo isto parecia dar carradas de razão ao então ministro Delfim Neto, quando sentenciava: - "Dívida externa, não se paga, rola-se!"
As estratégias montadas, no início dos anos 80, para tentar reverter a grave situação e fazer o país voltar a crescer tinham entre seus objetivos a superação do problema do balanço de pagamentos e da dívida externa, pois, pior do que as “cartas de intenções” não honradas do Delfim, fora o rompimento com o FMI de JK e que depois Sarney repetiria com os mesmos efeitos devastadores sobre a nossa credibilidade externa, só restabelecida graças ao trabalho eficiente de nosso negociador de então, o depois ministro Pedro Malan.
(*) General-de-Divisão Reformado do Exército Brasileiro, foi instrutor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército; exerceu, como oficial superior, quase todas as funções de Estado-Maior, especialmente as ligadas às áreas de Informações e Operações. Após passar para a reserva, em 87, dedicou-se à arte de escrever, tendo seu primeiro livro publicado, uma auto-biografia - "Meninos, eu também vi!" - em 1989.
É colaborador do jornal "Gazeta do Povo" de Curitiba, membro do Centro de Letras do Paraná, Direitor Cultural do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e Sócio correspondente do Instituto de Geografia e História Militar do Rio de Janeiro. Ocupa a cadeira nº 15 da Academia de História Militar e Terrestre do Brasil (Resende - RJ) e recentemene passou a ocupar a cadeira nº 10 da Academia Paranaense de Letras. Autor de várias obras, destaca-se "O fascínio dos Anos de Chumbo ", publicado em 2004.