Quando eu a conheci ainda era bem pequena, sorridente, vinha sempre até minha porta acompanhada pelos irmãos maiores e menores, uma infinidade de crianças, os adultos ficavam espalhados pela vizinhança. Eram todos os costumeiros fregueses da nossa ajuda.
Desde que mudei para esta casa, quando o bairro estava começando, haviam poucas construções no nosso quarteirão. Na continuação da nossa rua, mais abaixo, os terrenos eram abrigos de casebres. Hoje, o bairro é bem construído, e está muito maior. Os pobres que viviam por aqui foram alojados em um local mais afastado, em construções simples pela prefeitura.
Mas, muitos deles fazem a caminhada para procurar pelas nossas sobras de comida, alguma fruta, leite, e roupas usadas.
Andréa sempre sorridente aparecia, dizendo logo seu nome, perguntando antes: “lembra-se de mim? Sou Andréa”. Um dia encontrei-a bem vestidinha. Perguntei por onde andava, o que fazia. Ela respondeu sorrindo que havia aprendido a fazer crochê, uma senhora a ensinara. Ela fazia bicos de crochê em panos de prato e ganhava alguma coisa. Ofereci-lhe linhas, pois eu tinha várias para crochê. Ela passou pela minha casa e levou alguns novelos com ela, toda satisfeita.
Muito tempo passou e Andréa não voltou. Eu pensava nela com carinho, imaginando: tomara tenha conseguido continuar esse trabalho. Era uma maneira da menina deixar de pedir, descobrindo um modo digno de viver.
Esse é um problema sério neste país. Difícil ajudar pessoas como estas, as indicações que damos de casas que socorrem ensinando trabalhos, eles não vão. Certa vez, chamei uma mocinha para trabalhar comigo, recebendo o almoço e o equivalente a uma faxineira para fazer uma limpeza externa, calçadas, etc. A mocinha “enrolou” o dia todo, recebeu o combinado e nunca mais voltou.
Já uma amiga, grávida de oito meses, foi atender à porta, uma costumeira pedinte, querendo comida para ela e seus “moleques”. Como a dona da casa estava sem ajudante, ofereceu-lhe o almoço e pediu para passar-lhe a ferro algumas roupas, que seria paga pelo serviço. A resposta foi ríspida: “estou pedindo ajuda e não trabalho”. Então, disse a outra, pode ir e não volte mais a pedir aqui. Você quer ajuda, mas não sabe ajudar ninguém, nem mesmo quem lhe recebe com atenção.
O costume de receber sem trabalhar a viciou. Nem reconhecida foi pelo que já recebeu..
Andréa voltou uns dois anos ou mais depois. Sorriso largo como sempre, mas quase irreconhecível. Seus olhos perderam o brilho, sua magreza mal deixava ver de quem se tratava. Seu corpo esguio, pequeno, ficou muito menor, uma magreza de assustar.
Ofereci-lhe algo, e pedi que voltasse ainda aquela semana, iria dar-lhe uma bolsa de alimentos. Perguntei-lhe a idade. Disse ter 17 anos, e achava que já era “de maior”. Não. Ela deve ter mais de vinte anos!
Sorriu novamente e ficou de voltar, mas ainda não veio!
Não precisamos conhecer muitas coisas para ver que a sua vidinha estava comprometida seriamente. Devia estar namorando há muito tempo, essa é a vida desse pessoal!
Depois que ela saiu, chocada pensei: quando ela teria tido uma vida? O que teria acontecido para não continuar com seu trabalho que lhe permitia vestir dignamente, calçar-se de sandália, rosto corado, feliz por saber fazer crochê....
Uma de suas irmãs, que era mais forte do que ela, sempre aparecia, levava roupas para suas crianças, umas cinco, e estava grávida de outra. A última vez que a vi, mal chegou junto ao portão, parecia gripada. Tuberculosa, disse-me, e era HIV positivo. Pediu-me leite para as crianças e remédios.
Agora, aparece-me Andréa, desfigurada. Seus poucos cabelos estavam esticados, mas corte reto. Elas são negras, mas tem os traços delicados. Andréa, olhos encovados, voz rouca, cortou-me o coração. Não é difícil imaginar qual é o seu mal.
A pobreza não lhe permitiu a prevenção. Sabemos que são marginalizados pela própria vida. Difícil arranjar um emprego decente, moram todos juntos, são uma família numerosa, uma sociedade desconhecida, mas imaginada por nós, onde todos “trabalham” para sobreviver. Não podemos censurar a mendicância quando não lhes oferecemos uma oportunidade justa. É um mundo à parte, onde as crianças nascem e não chegam a conhecer uma vida digna. Mesmo os pequeninos que mal sabem falar, sabem pedir, sabem insistir, têm fome e querem guloseimas.
É uma cena que até as crianças da casa conhecem. Correm a pedir, “vamos dar frutas, elas devem estar com fome.” Ou “posso dar essas balas?” "Vou dar uma roupa minha para eles.”
É um quadro estarrecedor. Enquanto isso, na televisão o noticiário traz a vergonha que empobrece moralmente, materialmente e fisicamente o país, alheios que uma grande parte da humanidade teimam em permanecer sobre a Terra, apesar de todo descaso, impiedoso e imoral desrespeito ao ser humano.
A pobreza é a conseqüência dos abusos. Ela é gerada pela ambição desmedida, que passa como um trator sobre esses pobres indigentes impiedosamente, sem se dar conta de que atrás desse descaso, esconde-se um propósito de exterminá-los de vez, indiferentes e inconscientes, esquecidos de que há uma lei maior que rege todo o universo, e essa lei é implacável porque é de causa e efeito.
Só me resta lamentar pela vida de Andréa, uma criança que envelheceu, sorrindo apesar das inquietudes da vida. Seu otimismo não conseguiu livrá-la de sua vida curta, marcada pelo mal do século.