Mais uma vez, a sonhada transposição das águas do rio São Francisco é postergada, dessa vez em virtude da greve de fome do bispo de Barra/BA. Enquanto isso, mais e maiores empreendimentos são criados contando com a utilização do generoso “rio da integração nacional”. A persistirem as tendências atuais, dentro de mais alguns anos os estados do Nordeste Setentrional terão de se contentar apenas com uma torneira de meia polegada.
Devo dizer, de início, que nunca concordei com o que chamam de “transposição” do rio São Francisco. “Transposição” significa tirar o curso d’água – ou sua maior parte – de sua posição natural e levá-lo para outra. Não é disso que os estudiosos do assunto tratam, mesmo porque tal trabalho implicaria indiscutivelmente uma tremenda catástrofe sob os pontos de vista ecológico, político e econômico. Bem melhor fariam os defensores da idéia se falassem apenas em “captação das águas do São Francisco”. Assim, não assustariam as populações ribeirinhas nem despertariam sua imediata e feroz reação.
Na década de 90, quando comandei o 1º Grupamento de Engenharia de Construção (João Pessoa/PB), fiz questão de ir à sede do DNOCS, em Fortaleza, para tomar conhecimento do projeto da grande obra, que diziam ser “faraônica”. Lá, fiquei sabendo que não havia apenas um, mas vários projetos e que a última versão custara 10 milhões de dólares. Ora, tal circunstância é de se esperar num país em que obras desse porte são tratadas quase sempre com interesse político-eleitoral. Se um projeto é elaborado e não é executado de imediato, o ambiente sócio-econômico se altera com o tempo e, evidentemente, após alguns anos tudo necessita ser refeito. A importância paga pelo estudo, entretanto, pareceu-me exagerada. E fiquei imaginando quantos projetos já teriam sido pagos ao preço de US$10 milhões... E é importante lembrar que o projeto de hoje não é o mesmo que vi em 1995.
Quanto à classificação de empreendimento “faraônico”, quero dizer que discordo totalmente dessa adjetivação. Um país que já construiu Itaipu – e tão bem – não pode considerar faraônica uma obra de uns poucos bilhões de dólares. Pensar dessa forma é pensar pequeno demais. A verdade, que ninguém quer dizer, é que a obra nunca saiu do papel por razões políticas. Ou será que já saiu?
Quem visita o vale do São Francisco, quem conhece as usinas que geram a energia elétrica que alimenta o Nordeste, quem já viu as monumentais obras de irrigação na margem pernambucana, quem já constatou o valor econômico de sua navegação e de sua fauna sabe muito bem que aquele potencial está prestes a se esgotar. Essa é a verdade. Hoje não é mais possível retirar um grande volume de água para abastecer as bacias hidrográficas da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. Os cearenses sabem disso e já se estruturaram para resolver seus problemas com os recursos que a natureza lhes deu. Lá, não existe a paixão com que vejo o tema ser tratado na Paraíba. Lá, eles não estão parados, esperando pela água que não sabem se vem.
Os estados que são banhados pelo rio têm se empenhado – com justa razão – no aproveitamento de seu potencial. Além da judiciosa exploração de sua capacidade de geração de energia elétrica – motivo de orgulho da engenharia brasileira – enchem nossos olhos as culturas de soja surgidas a partir da cidade baiana de Barreiras e as exitosas fruticulturas do sertão pernambucano, entre Petrolina e Petrolândia. Nossos aplausos para essa capacidade empresarial. É evidente, todavia, que está na hora de realizar um balanço de tudo o que foi feito e pensar seriamente na preservação ecológica do manancial, a fim de evitar prejuízos às demais atividades, principalmente as que afetam os estados de Alagoas e Sergipe. Nesse sentido, muitos estudos já foram realizados e diversas obras já foram iniciadas com vistas à revitalização do rio.
Não é o caso, todavia, de retardar ainda mais o projeto de captação de águas para os estados do Nordeste Setentrional, projeto esse que já foi extremamente prejudicado pela demora na execução, o que, como foi dito, exigiu numerosas reformulações, sempre acompanhadas de redução da vazão a aduzir. O projeto atual – cujo aspecto técnico não convém aqui discutir – foi elaborado no governo anterior, pelo preço de R$40 milhões e, além de prever o abastecimento de municípios pernambucanos, inclusive Recife, estabelece que serão transportados, em regime contínuo, 26 metros cúbicos de água por segundo para os estados da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará, o que, diga-se de passagem, permitirá apenas o abastecimento para consumo humano. É importante frisar que não estamos falando em irrigação.
Para que o leitor possa fazer comparações, adianto que a vazão do São Francisco no local onde se pretende fazer a captação é da ordem de 2.100 metros cúbicos por segundo. Acresça-se, a tudo o que foi dito, que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) foi devidamente aprovado pelos órgãos competentes. Em outras palavras, não há mais o que se estudar.
Assim sendo, a minha geração, que construiu Itaipu, a Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, a usina de Tucuruí e tantas outras obras compatíveis com o tamanho do país, não compreende um Brasil que, por incompetência, incúria ou ideologia, não consegue sequer fazer a manutenção do patrimônio que recebeu e que se engasga com um trabalho do porte dessa malsinada captação de águas, orçada em 4,5 bilhões de reais, ou seja, menos de 2 bilhões de dólares.
Os de minha geração anseiam por ver um Governo capaz de conduzir seu planejamento estratégico com determinação, apesar das greves de fome. Depois de quase dois séculos de debates, não há mais o que debater. A hora é de fazer. Afinal, o rio da integração nacional precisa integrar ao país o Nordeste Setentrional... antes que seja tarde demais.