"Vamos agora ganhar o referendo do desarmamento", declarou o ministro Márcio Thomaz Bastos no início de julho, deflagrando uma operação de propaganda política de massas que se baseia na manipulação da linguagem. A associação entre o referendo e a noção de "desarmamento", junto com a inversão lógica pela qual a palavra "sim", carregada de conotações positivas, identifica o voto na proibição, formam a plataforma persuasiva engendrada por um governo que despreza o esclarecimento dos cidadãos.
O referendo não é sobre o "desarmamento", pois os bandidos não renunciarão às armas, qualquer que seja a decisão da maioria. O referendo é sobre o direito de vender e comprar, legalmente, armas de fogo. A campanha do "sim" (ou seja, do não) atenta contra a liberdade e a igualdade, os dois pilares históricos da democracia.
O argumento verossímil de que a proibição reduzirá as vítimas de acidentes domésticos e de tentativas de reação armada a assaltos é um tiro no princípio da liberdade. O que se propõe é que o Estado tutele os cidadãos, impedindo-os de cometer atos imprudentes. Mas, numa sociedade livre, cada um é responsável por suas decisões privadas, desde que elas não ameacem a segurança dos outros. A campanha do "sim" organiza-se sobre o conceito do Estado tutelar, enraizado na tradição patrimonial brasileira e expresso em incontáveis discursos presidenciais.
O argumento inverossímil de que a proibição reduzirá as vítimas de conflitos interpessoais apóia-se na fraude de interpretação de estatísticas. Acadêmicos que ensinam a seus alunos que correlação não significa causação parecem não se envergonhar de, na campanha do referendo, interpretar como relação causal uma (fraca) correlação entre recolhimento de armas e diminuição de crimes.
A redução de homicídios registrada na última década no Brasil pode ter inúmeras causas, entre elas as mudanças na dinâmica demográfica que resultam no envelhecimento da população. Essa é, ao menos, a causa geral mais aceita para a redução de crimes em diversos países. De qualquer modo, a proposição de que o indivíduo que atira no desafeto numa briga de bar não comprará arma no mercado negro é um fútil exercício especulativo. O certo é que a proibição ampliará o mercado negro de armas e reduzirá o controle do Estado sobre a difusão da propriedade de revólveres e pistolas.
Na forma proposta, a proibição da venda de armas não atingirá as empresas de segurança privada. Isso significa que os "homens bons", ou seja, fazendeiros, grandes empresários, líderes políticos e famosos advogados continuarão a se armar legalmente enquanto a plebe está condenada a renunciar às armas ou a optar pela contravenção. O "desarmamento" atinge apenas os cidadãos honestos de poucas posses, proibindo ao trabalhador, ao motorista de táxi ou ao posseiro o recurso, prudente ou não, à autodefesa armada. A nova legislação pela qual se empenha o ministro da Justiça é um tiro no princípio da igualdade.
As pesquisas de opinião revelaram sólida maioria alinhada com o "sim". Elas refletem o sucesso da estratégia de manipulação de massas e a natural repugnância provocada por "argumentos" de brucutus armados como os Bolsonaros da vida. Mas também refletem a fragilidade dos princípios da liberdade e da igualdade entre nós.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras na coluna Opinião.
@ - magnoli@ajato.com.br
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Referendo: Vitória do NÃO é vitória da liberdade; é a derrota do crime e de Lula & cia.
por Paulo Moura, cientista político
O debate em torno da proibição ou não da comercialização de armas e munições gira em torno de dois argumentos centrais. Um deles diz respeito à liberdade de escolha dos cidadãos. O outro argumento, inseparável do primeiro, diz respeito ao direito de legítima autodefesa propriamente dito, isto é, ao fato de que, dada a incompetência do Estado para garantir a segurança, não se pode negar ao cidadão de bem, o direito de defender a si mesmo, sua família e seu patrimônio, nos limites da Lei, de eventuais agressões criminosas.
As pesquisas de opinião publicadas até antes do início da propaganda das frentes pró e contra a proibição do comércio de armas e munições chegaram a indicar que cerca de 81% dos entrevistados se manifestava a favor da posição do governo e da Rede Globo em prol do Sim. Confesso que estava pessimista diante de tamanha superioridade, ainda que acreditando que a força dos argumentos em disputa aberta no horário gratuito na mídia pudesse equilibrar a balança junto à opinião pública.
Curiosamente, não tenho visto novas pesquisas serem publicadas. Nos sites de jornalismo independente na internet, no entanto, circulam informações dando conta de que a campanha do Sim está com problemas, se vendo forçada a mudar de estratégia diante das dificuldades provocadas pela força dos argumentos esgrimidos pelos defensores do Não. Segundo informações dessas mesmas fontes, levantamentos de opinião já apontariam uma diferença de apenas 16 pontos percentuais em favor do Sim.
Na prática, considerando a estrutura polarizada dessa disputa, se essa informação é verdadeira, a diferença real entre as duas posições é de oito pontos percentuais, visto que, a migração de uma posição pró Sim para a posição pró Não, implica da redução efetiva de dois votos na diferença que separa uma e outra opção, tal como ocorre em eleições em dois turnos. Excetuam-se os casos em que há migração para a anulação ou abstenção, que, intuo, tendem a prejudicar mais o Sim do que o Não nesse cenário, visto que a tendência preponderante é deserção dos defensores do Sim, que antes do início do horário gratuito na mídia estavam sendo maciçamente influenciados apenas pela posição, então monopolista, da aliança Globo/governo.
Se esta informação é procedente e a migração da opinião pública em direção ao Não está se processando nesse ritmo e velocidade, isso significa que os defensores do Não acertaram o foco estratégico da guerra de argumentos e os defensores do Sim erraram. Um referendo não é exatamente uma campanha eleitoral, mas, me parece difícil corrigir um erro estratégico e reverter um tombo dessas proporções em tão curto espaço de tempo. A política é imprevisível e sempre sujeita a surpresas, mas, em regra, em campanhas eleitorais pelo menos, quando se erra o foco, o posicionamento e o discurso, resta contar com a sorte e os erros dos adversários, o que raramente ocorre.
Outro indicador de desespero da turma do Sim é a descarada desinformação e a mal disfarçada tentativa de manipular os desinformados, que transborda de suas propagandas, em vários aspectos além desse que já os levou a sofrer uma punição pela Justiça. Quem desconhece a Lei e ouve o programa do Sim está sendo maldosamente desinformado sobre questões como direito à compra e posse legal de munições e armas na eventual vitória do Sim.
Mas, mais do que esses bons presságios, há um aspecto que me surpreende no crescimento do Não. Mesmo sendo pessimista, no início dessa briga, com relação às perspectivas de vitória do direito à liberdade e à legítima defesa, sempre achei que o argumento mais forte em defesa do Não se sustentaria no sentimento de insegurança da população, frente à incompetência do Estado em garantir a segurança e a ordem públicas. Sempre achei que o argumento que se ampara no direito à liberdade de escolha dos cidadãos não tivesse apelo popular, devido ao seu caráter ideológico - oposto à cultura autoritária e estatista, hegemônica em nossa sociedade – e, portanto, por mim erradamente percebido com sendo de difícil assimilação pelas maiorias populares necessárias à vitória numa consulta plebiscitária.
A julgar pelas informações que vêm sendo divulgadas nos sites de jornalismo independente, no entanto, é justamente o argumento de liberdade de cada um decidir qual a melhor forma de se defender, que tem funcionado como principal motor da mudança de posição da opinião pública em direção ao voto pró Não. Obviamente, não seria correto menosprezar o peso do sentimento de insegurança da população como argumento agregado a favor do Não, e muito menos, minimizar a associação que a campanha do Não faz, atribuindo ao governo do PT a responsabilidade pela insegurança pública, nesse momento em que a imagem dos petistas está manchada pelos escândalos de corrupção. Afinal, desarmar o cidadão honesto, com o exemplo que nos dão “autoridades” como essas que nos governam, é uma temeridade.
Até hoje não entendi direito quais os interesses da Rede Globo nessa história. A única explicação convincente que recebi circula na internet num e-mail não-assinado, que, por essa razão, não vou reproduzir. Mas que o governo Lula usa o referendo para se livrar de responsabilidades sobre a insegurança pública e para tentar escapar de explicar-se na eleição de 2006, não resta dúvida.
Se o Não vencer, o tiro terá saído pela culatra (hehehe!). O que o governo e a Globo estão conseguindo é garantir a introdução, na pauta da campanha presidencial de 2006, do tema da insegurança pública, num ambiente absolutamente desfavorável ao governismo, que já deve explicações sobre corrupção.
Da forma com o debate público está encaminhado, a virtual vitória do Não tenderá a ser:
a) a vitória da liberdade dos indivíduos contra o autoritarismo do Estado;
b) uma vitória dos cidadãos de bem contra o crime;
c) uma derrota do governo Lula, do PT e da Rede Globo, imposta pela opinião pública, competentemente bem informada pelos defensores do Não.
Vote 1 e confirme!
Publicado em 12/10/2005
http://www.diegocasagrande.com.br
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Adeus às armas?
O Estado de São Paulo – 13/10/05
Gilberto de Mello Kujawski
Sentenciou André Gide que é com os bons sentimentos que se faz a má literatura. Outro tanto caberia dizer da política. Bons sentimentos, boas intenções fazem a má política e a má economia. O inferno está calçado de boas intenções. Nada contra os bons sentimentos e as boas intenções, que o coração deste colunista não é frio nem empedernido. A questão é que os bons sentimentos e as boas intenções pertencem ao domínio da vida privada, e não podem ser aplicados para resolver os problemas da ordem pública. Uma pessoa morrendo de fome perto de nós, por absoluta falta de recursos, configura um drama lancinante que só resolvemos dando imediatamente de comer ao faminto. Aqui basta fornecer o peixe.
Agora, milhões de pessoas atormentadas pela fome em todo o País, mergulhadas na indigência total, representam um problema de outra grandeza, ao mesmo tempo social, político, econômico e cultural, que não se resolve com o apelo aos bons sentimentos dos que têm mais em favor dos que nada têm, um problema que só se equaciona adequadamente com racionalização e método, mediante uma programação estratégica que não pode ser simples nem imediatista. Questão de escala. A escala do coração é sempre importante e essencial, mas só é eficaz quando projetada na perspectiva da razão, que estabelece entre as coisas a justa conexão.
Aqui não basta dar o peixe, é preciso ensinar a pescar.
A proposta do desarmamento geral e irrestrito em todo o território nacional é fruto da mesma mentalidade que gerou o Fome Zero e a malfadada lei das cotas raciais nas escolas. O mesmo bom-mocismo, idêntica pieguice disfarçada de humanitarismo, a mesma banalização no trato das coisas humanas. A banalização tomou conta do mundo em todos os setores. Essa falta de nível no equacionamento dos problemas que afligem as nações se explica pela banalização, pela plebeização atroz que amesquinha e nivela por baixo todos os assunto humanos em nossos dias. A idéia do desarmamento ilustra bem toda a pavorosa mediocridade que vai na proposta do referendo de 23 deste mês. A arma de fogo é vista como uma excrescência, um artefato malfazejo e indesejável, que deveria ser banido para sempre do convívio social. Ora, isso é apequenar miseravelmente a questão.
Arma é cultura. O culto das armas pulsa na história da formação de todos os grandes povos, refletido, por exemplo, na Ilíada, de Homero, celebrando os feitos exponenciais da Grécia arcaica; na Eneida, de Virgílio, cantando a fundação e a expansão de Roma; ou em Os Lusíadas, de Camões, exaltando a epopéia da civilização portuguesa na Idade Média, prolongada na viagem pioneira de Vasco da Gama: As armas e os barões assinalados... A disciplina, toda e qualquer disciplina, nasce das armas. As armas formam o varão, endurecem seu caráter para o sacrifício até da vida pelas grandes causas coletivas. Na Grécia, sem a tríplice proeza militar de Maratona, Salamina e Platéia, contra a avalanche asiática da invasão persa que ameaçava tragar a Hélade, não haveria lugar em Atenas para os ensinamentos de Sócrates, Platão e Aristóteles.
Aguça-se o fio do pensamento, afiando-se o corte da espada.
A justificativa principal sustentada pelos adeptos do desarmamento civil é a necessidade de evitar o sacrifício de vidas inocentes, vitimadas diariamente por balas perdidas, disparos involuntários, brigas de trânsito ou de vizinhança, imperícia dos atiradores amadores, agressões passionais e crimes de impulso de maneira geral. A razão é respeitável, mas não é suficiente para retirar a arma de fogo das mãos do cidadão. Balas perdidas, disparos involuntários, atritos violentos de trânsito ou de vizinhança, agressões passionais e crimes de impulso com resultados fatais constituem ocorrências a serem capituladas entre os chamados infortúnios, adversidades da sorte que ninguém pode evitar, análogas aos acidentes domésticos, ou automobilísticos, ou aéreos, às catástrofes atmosféricas, terremotos, maremotos, erupções vulcânicas, desastres, em suma (a etimologia da palavra desastre se liga à astrologia: desastre, dis + astro, má estrela ; desastre é o que vem da oposição dos astros).
O vício essencial da lei a ser referendada ou não dia 23, seu defeito insuperável de origem está na miopia jurídica de querer extirpar o uso para evitar o abuso. Não tem sentido nem cabimento a lei que para prevenir o abuso suprime o uso. Summum jus, summa injuria , excesso de justiça, grande injustiça. As leis que desprezam o uso para eliminar o abuso têm todas a mesma sorte: são leis que não pegam, não entram em vigência, a exemplo da famosa lei seca nos Estados Unidos, que só gerou resultados contraproducentes. Será esse o destino da Lei do Desarmamento, que não resistirá à pressão do contrabando e da posse clandestina de armas, algo tão incontrolável quanto a difusão, a aquisição e o consumo de drogas.
Num clima como o de hoje, em que se discute até a eficácia da repressão às drogas, como pensar em reprimir a posse de armas de fogo? Por acaso o surto repentino de violência depende das armas de fogo para ferir e matar? A violência encontra seus instrumentos, que podem ser uma faca, uma pedra, um porrete, um caco de garrafa.
Desarmar a população civil quando a polícia está desaparelhada e o crime organizado se apresenta armado até os dentes não significa nos entregar nas mãos do bandido? E que dizer da agitação social no campo? Os habitantes das regiões mais desertas do imenso território brasileiro terão condições de cumprir a Lei do Desarmamento? Quem virá socorrer o cidadão indefeso nas barrancas deste país imenso, no interior do sertão, no fundo da mata, sem polícia nem vizinhos por perto? Acaso poderá esperar salvação na pessoa do deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, com aquela imponente bigodeira que já provou sua força servindo de limpa-trilhos no inquérito sobre o assassinato do prefeito Celso Daniel??
Gilberto de Mello Kujawski publicou A Identidade Nacional e Outros Ensaios (Funpec).
E-mail: gmkuj@terra.com.br
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TSE suspende mais trechos do programa do Sim
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) suspendeu hoje, dia 12 de outubro, mais dois trechos da propaganda gratuita do sim. O ministro José Gerardo Grossi declarou “equivocada” a informação de que “o Estatuto do Desarmamento garante o direito de posse de arma a residentes nas áreas isoladas”, como vinha sendo divulgado pela propaganda vote 2.
Outra suspensão do TSE, também divulgada hoje, impede a veiculação do trecho em que a Frente Brasil Sem Armas afirma que a Frente do NÃO chega ao cúmulo de desrespeitar vítimas de tiros dizendo que essas vítimas são exceções. Para o ministro José Gerardo, a propaganda veiculada "descamba para a ofensa; deixa de enaltecer as idéias". O ministro José Gerardo Grossi cita em seu despacho que as frases "...nos diferencia deles...", "...para nós..." usadas pela Frente do sim leva o debate a um nível pessoal.
Seguem os trechos do programa do sim.
1) Trecho impugnado (considerado inverídico):
Frente do SIM: “Proibir o comércio de armas, além de evitar milhares de mortes ou conflitos pessoas, vai ajudar a desarmar os bandidos. Mas toda a regra tem exceção. O Estatuto do Desarmamento garante o direito de posse de arma a pessoas que tenham necessidade real, como os residentes nas áreas isoladas. A proibição aumenta o controle das armas. Defenda o seu direito à vida”.
Decisão do Ministro Gerardo Grossi (liminar): "Da transcrição feita, à uma primeira visada, soa-me, quando nada, equivocada, a assertiva de que o Estatuto do Desarmamento garante o direito de posse de arma a pessoas residentes nas áreas isoladas. Neste exame preliminar não divisei no Estatuto esta permissão veiculada na propaganda. Por isso, defiro a liminar pedida e suspendo a veiculação da propaganda até julgamento da representação".
2) Trecho impugnado (considerado ofensivo):
"O programa do NÃO insiste em fazer confusão com informações sérias apresentadas na TV SIM. Ontem chegaram ao cúmulo de desrespeitar vítimas de tiros. Eles disseram que essas vítimas são apenas exceções.(repórter, na propaganda do NÃO) ...Que casos tristes como os que foram mostrados são exceções. (repetição de voz e imagem) ...são exceções. Aí está o que nos diferencia deles. Para nós, a possibilidade de salvar uma única vida é motivo suficiente para continuar a luta pelo controle de armas”
Decisão do Ministro Gerardo Grossi (liminar): "Neste exame preliminar, parece-me que a propaganda assim veiculada descamba para a ofensa; deixa de enaltecer as idéias que sustentam a Frente Representada para trazer o debate a um nível pessoal: ... nos diferencia deles... , ... para nós... , chegaram a desrespeitar... . Tendo em conta o que dispõe no art. 11, da Resolução n. 22.032, do TSE, suspendo a veiculação da propaganda impugnada até o o julgamento final da Representação".