Como era de se esperar, a mídia brasileira só contou metade do caso Tom De Lay. Ronnie Earle, o promotor do condado texano de Travis que acusa o líder da maioria republicana de aceitar contribuições ilegais de campanha, não é só um militante democrata, aliás bastante inescrupuloso: é um compulsivo perseguidor de inimigos políticos (dentro ou fora do seu partido) e um blefador notório. Recentemente, ele indiciou nesse mesmo processo oito grandes corporações, entre as quais a Sears e a Cracker Barrel (dona da cadeia de restaurantes onde se come a comida caipira mais deliciosa da Virginia), afirmando poder provar "um plano dos republicanos para usar as contribuições das grandes empresas como meio de controlar a democracia representativa no Texas". Quando as companhias protestaram, Earle mais que depressa se ofereceu para retirar as acusações... em troca de polpudas doações a ONGs amigas dele. Cumpriu a promessa. Só da Sears os apadrinhados do promotor levaram um milhão de dólares. Nos anos 80, ele indiciou num processo por suborno o procurador-geral Jim Mattox, inimigo da sua aliada Ann Richards, mas não conseguiu provar nada contra ele. Em 1994, armou um fuzuê dos diabos contra a senadora Kay Bailey Hutchison, mas, por falta de provas, foi obrigado a retirar as acusações antes de o caso ir a julgamento. Por fim, ele próprio levou uma multa por omitir-se de entregar contas de campanha.
Sem dispor dessas informações, o leitor não pode entender por que o deputado De Lay, em vez de ficar na defensiva ou de se fazer de coitadinho como bom salafrário acuado, saiu logo com quatro pedras na mão contra o promotor, chamando-o de "vigarista" e acusando-o de fraude deliberada: "É tudo fingimento, e Earle sabe disso."
Como essa reação oferece um contraste demasiado flagrante com a imagem de corrupto surpreendido com as calças na mão, que a mídia nacional quis pintar para induzir o público a um enganoso paralelismo entre o PT e o Partido Republicano (nada consola mais o brasileiro esmigalhado por um rinoceronte do que saber que algum americano foi arranhado por um gatinho), a solução editorial encontrada foi suprimir a parte mais pesada da resposta. As palavras de De Lay foram reduzidas às alegações usuais de inocência e retaliação eleitoral, fazendo o feroz deputado parecer encolhido ante a gritaria da líder democrata na Câmara, Nancy Pelosi, que já ia acusando de corrupção o Partido Republicano inteiro. Na verdade a reação geral dos republicanos foi a do deputado texano Henry Bonilla: "É mais uma encenação de indiciamento. Vamos ver quanto tempo leva para o Earle voltar atrás."
Mas isso não quer dizer que estejam tranqüilos: um processo juridicamente inócuo pode trazer dano político efetivo. Quando De Lay diz: "Earle sabe disso", é porque está seguro de que o processo não vai dar em nada, do ponto de vista legal. Mas, tal como fez com a Sears, o promotor não está apostando numa condenação: quer apenas tirar proveito do mero indiciamento. A maior prova disso é que não acusou De Lay de corrupção eleitoral propriamente dita, mas de "conspiração" para esse fim. Na técnica processual americana, essa acusação é a mais fácil de produzir indiciamento, mas a mais difícil de provar, portanto também de transformar em condenação (não há aqui quem ignore isso, portanto a impressão de "caso liquidado" que muitos jornalistas tentam transmitir é enganação consciente). A escolha dessa estratégia esquiva, boa para impressionar no começo mas de resultado final problemático, é bastante reveladora das motivações de Ronnie Earle. De todos os líderes parlamentares republicanos das últimas décadas, De Lay é o que menos deu moleza aos adversários, que por isso o apelidaram de "Martelo" (Hammer). Ele quase certamente vai ser inocentado no fim, mas até lá ficará afastado de suas funções de líder na Câmara, livrando os democratas, ao menos provisoriamente, do maior pesadelo parlamentar que tiveram nos últimos tempos. Ronnie Earle não está só fazendo onda, mas também não planeja seriamente condenar o adversário: quer é desligá-lo da tomada até o ano que vem, e isto ele praticamente já conseguiu. Na luta parlamentar, a minoria democrata não tem tido outra arma à sua disposição exceto o bom e velho filibuster: ganhar tempo na tribuna com discursos intermináveis para obstar por decurso de prazo uma votação virtualmente perdida. Earle usou contra De Lay uma espécie de filibuster processual. É infalível. A única chance do acusado, agora, é o tribunal aceitar seu pedido de que o caso vá a julgamento ainda este ano – pedido estranho para um réu culpado, não é mesmo?