O problema da Defesa Nacional tem sido visto sobretudo como assunto de segurança militar. De fato, as Forças Armadas são o principal instrumento da defesa de cada país. Mas não é apenas delas que depende a defesa de uma
nação.
Por essa razão, quero concentrar minha apresentação sobre outros nove
vetores atuais de nossa insegurança, embora iniciando com uma consideração
inicial sobre o aspecto militar.
1. Vetor Militar? a primeira decisão sobre a defesa de um país é a
opção entre dispor ou não de um quadro de Forças Armadas. Há raros países que optaram por não ter sua Defesa Nacional baseada em Forças Armadas
próprias, como é o caso da Costa Rica.
A Defesa Nacional fica dependendo de acordos internacionais que assegurem as fronteiras contra ameaças, e a segurança interna com forças policiais. Essa alternativa é rara, e própria de países pequenos.
Não pode ser o caso do Brasil. Com 7.400 km de litoral, tendo no mar uma das mais importantes fontes de riqueza, especialmente 8,8% da produção e 90% das reservas brasileiras conhecidas de petróleo, e com o quarto maior
espaço aéreo de todo o mundo; fronteiras com dez países; ocupando quase toda a extensão do Atlântico Sul; a maior reserva florestal e hídrica do planeta, os dois recursos mais importantes para o futuro; contendo em seu
território a quase totalidade da Amazônia, área que será a mais cobiçada do planeta no futuro, superada atualmente apenas pelas reservas de petróleo, é óbvio que a defesa do Brasil precisa de um forte sistema militar.
Mas a impressão é de que o Brasil ainda não fez a opção de ter Forças Armadas. O tratamento dado às três armas, no que se refere à dimensão de
pessoal e equipamentos, em quantidade, qualidade e modernidade, não corresponde às necessidades de um país com as dimensões e o potencial do
Brasil.
A Defesa Nacional exige uma clara opção brasileira pela construção de Forças Armadas fortes e modernas. Mas isso não bastará para garanti-la. A falta de opção por Forças Armadas bem armadas é apenas um dos vetores que
ameaçam a Defesa Nacional. Pelo menos outros nove vetores são sinais de risco à nossa segurança.
2. Vetor cultural? está em marcha no mundo um processo de internacionalização cultural, que transcenderá as nações. Esse processo de
espalhamento das culturas nacionais sobre as demais é um enriquecimento da humanidade.
Mas na forma em que está ocorrendo, a internacionalização cultural provoca
duas deformações: a destruição de culturas nacionais e a imposição sobre todo o mundo da cultura de uma única nação e suas semelhantes ? a nação européia-norte-americana.
Com essa cultura, chegam hoje valores internacionais que abalam valores
nacionais. A população de nosso país começa a perder suas raízes, a pensar sem apego às suas heranças específicas; as lideranças políticas começam a evitar e até a ridicularizar a explicitação do nacionalismo, como se este
fosse um conceito antiquado.
Alguns países já adotaram a moeda norte-americana, colocando nas suas cédulas as imagens de líderes que nada dizem respeito à sua história. Outros, de forma mais aceita, unem suas histórias à história vizinha e constroem moedas internacionais. Esse é apenas um exemplo.
A imposição cultural tende a diluir cada país em uma espécie de norte-americanização, uma americoglobalização? com os mesmos padrões de
consumo, as mesmas preferências estéticas? que, mais do que ameaçar a Defesa Nacional, a tornaria obsoleta, desnecessária.
Sem medo do enriquecimento da convivência cultural internacional, a Defesa Nacional exige o fortalecimento da cultura nacional, tanto quanto das Forças Armadas. De nada vai adiantar ter Forças Armadas fortes para defender uma nação se o povo pensar como se fosse estrangeiro.
A ocupação subjetiva do espírito nacional é tão ameaçadora à segurança nacional quanto uma ocupação objetiva territorial. Com a diferença de que esta última é visível, reversível, ao passo que a outra é invisível, permanente.
A proteção da nação não deve nem pode ser feita pelo obscurantismo do isolamento contra as culturas internacionais. A cultura precisa ser ao
mesmo tempo aberta e protegida: o caminho é a educação básica.
3. Vetor educação? não há uma ciência suficientemente desenvolvida se não houver uma boa educação básica. O Brasil está cada vez menos seguro no mundo, por causa da baixa educação do seu povo.
Cada vez que deixamos uma pessoa analfabeta, perdemos um potencial fundamental da construção do principal recurso do futuro: a ciência e a
tecnologia.
Não teremos uma ciência e tecnologia plenamente desenvolvida enquanto jogarmos fora boa parte do nosso potencial intelectual porque não demos
escolas a ele. Sem uma boa educação não teremos um país soberano.
No mundo de hoje, um povo sem educação é um povo indefeso. Como ter um sistema nacional de defesa em um país como o Brasil, onde 52% das crianças
chegam aos dez anos de idade sem saber ler, apenas um terço terminam o ensino médio, e no máximo 10% deles concluem um ensino médio de
qualidade?
Com um quadro desses, o Brasil é obviamente um país indefeso, qualquer que seja a qualidade de suas Forças Armadas. O mais grave é que escondemos esse problema comemorando nossos avanços, que são menores do que os avanços de outros países.
Concorremos conosco e estamos ficando para trás. No atual ritmo de evolução do Brasil e de outros países, a educação de nosso povo está, na
média, atrás não só da Argentina, Chile, Uruguai, como já é tradição, mas também do México e, em breve, da Venezuela e da Colômbia.
A construção de uma educação básica forte, que consolide nossos valores culturais desde a primeira infância até o ensino superior, é o caminho para a construção da Defesa Nacional.
4. Vetor ciência e tecnologia? o Brasil não está dando a atenção que deveria, do ponto de vista da segurança nacional, à criação de uma base
científica e tecnológica com a competência e com a dinâmica que o mundo moderno demanda. Estamos ficando para trás.
Hoje, evoluímos na ciência e na tecnologia de uma maneira mais lenta do que todos os demais países de porte médio, equivalentes ao Brasil.
Estamos ficando atrás de países que investiram na educação básica, e a partir daí investem pesadamente na área de ciência e tecnologia. Tudo isso está relacionado à segurança nacional, trata-se de defender o País.
5. Vetor apartação? não é possível ter um país soberano onde parte da população é excluída. No Brasil de hoje, 70 milhões são excluídos do
mínimo essencial, e sentem-se e são tratados como habitantes de um outro país, diferente daquela parcela rica.
O Brasil é um país não apenas com desigualdade social, mas com um corte social, uma apartação A exclusão social impede o país de desenvolver
plenamente seu potencial de defesa, e mesmo de justificar a defesa. Não havia como defender a África do Sul quando sua população negra se sentia
estrangeira.
Que país soberano é possível construir com 70 milhões de excluídos? Imagine um país em guerra com 70 milhões de excluídos pobres que não
conseguem comer o suficiente, que não têm o menor grau de educação.
O quadro de pobreza do Brasil é uma limitação à garantia da nossa Defesa e da nossa soberania As melhores e mais competentes Forças Armadas não vão
conseguir garantir a segurança de um país que tem 70 milhões de pobres no limite da miséria.
A luta pela erradicação da pobreza no Brasil é uma condição necessária para a superação do quadro de profunda deficiência da nossa Defesa
Nacional, no mínimo tão importante quanto equipar as Forças Armadas.
A solução dessa apartação, com o acesso de todos os brasileiros a bens e serviços essenciais, é uma condição fundamental para a garantia da defesa
e da soberania das nações.
Isso é possível, não por meio do crescimento econômico, mas de políticas públicas que permitam a superação do quadro de apartação da população que vive na pobreza.
6. Vetor pobreza? além de ter uma parcela extremamente pobre, excluída, apartada, o que inviabiliza a nação e impede sua defesa consistente é a pobreza média da sociedade brasileira.
Um país com os recursos naturais, humanos e financeiros do Brasil não tem jstificativa para estar em 86º lugar na escala mundial de renda per
capita.
A retomada do crescimento econômico é uma condição fundamental para a Defesa Nacional, não apenas porque decorrerá da adoção dessa medida o
fortalecimento das Forças Armadas e a realização dos programas sociais, mas também porque é uma condição necessária para a construção da
infra-estrutura, sem a qual a defesa fica impedida.
7. Vetor desigualdade? além da apartação e da pobreza, a desigualdade entre as camadas da população brasileira também é um vetor que
desestabiliza a segurança nacional.
Em nome da Defesa Nacional, o Brasil precisa de um projeto para, em alguns anos, acabar com a desigualdade que existe hoje. Igualmente grave é a
desigualdade regional.
É inaceitável que existam cidades brasileiras com R$ 1.300 de renda mensal per capita e outras com apenas R$ 56.
8. Vetor cidades? as grandes cidades do Brasil têm se transformado em verdadeiros campos de batalha. Não é necessário ter um grau muito grande
de informação para perceber que temos milícias armadas atuando nos grandes centros.
Não há como reduzir o tamanho dessas cidades mandando de volta os descendentes dos que vieram do campo. E infelizmente ainda não temos
clareza do que fazer para transformar as dez maiores cidades brasileiras em locais que promovam e não que ameacem a Defesa Nacional.
9. Vetor reservas naturais? costumamos tratar o meio ambiente como um problema de militância dos "verdes". No entanto, não podemos deixar de
considerar a importância de recursos naturais estratégicos como a água que bebemos ou o oxigênio que respiramos.
Temos um problema sério na utilização de nossos recursos naturais e não nos preocupamos com nossas reservas para a Defesa Nacional. Ainda menos no que se refere a recursos esgotáveis, como é o caso do petróleo.
Do ponto de vista econômico, é um fato cmemorável a auto-suficiência do petróleo, mas no atual ritmo de consumo de nossas reservas, representa uma ameaça à nossa defesa, se considerarmos o risco do esgotamento dentro de poucas décadas, se mantido o mesmo nível de exploração.
O Brasil não está cuidando desses recursos dentro de uma estratégia de longo prazo. Assim, estamos criando uma ameaça à soberania nacional.
10. Vetor corrupção? há um processo de corrupção generalizada no Brasil e isso ameaça nossa segurança. Mas existem dois tipos de corrupção: aquela do comportamento de quem se apropria do dinheiro público, a corrupção nas prioridades das políticas públicas, pelo uso equivocado do dinheiro para atender a interesses sem função social.
Fazer uma obra desnecessária, mesmo que não haja roubo, é tão corrupto quanto se apropriar do dinheiro daquela obra. Fazer uma ponte para
beneficiar uma parcela privilegiada da população, deixando de fazer uma escola é corrupção; é corrupção da prioridade da política, embora não seja corrupção do comportamento do político.
A defesa nacional exige Forças Armadas competentes, e também um programa amplo, consistente, que enfrente os vetores atuais da nossa insegurança.
(*) Cristovam Buarque é senador pelo PT do Distrito Federal