Manoel Olegário da Silva tinha o sono “pesado” e gostoso. Logo que terminava o jantar, conversava um pouco com os filhos e seguia pro quarto do casal, chamando a dedicada Maria das Graças. Certamente que, primeiro, iriam rezar aos pés do oratório, onde a imagem do negro São Benedito, herança recebida da Vovó Donana, resplandecia com seu singelo hábito marrom, entre outros santos da fiel devoção. A desesperada mulher insistia: Mané, tem gente aí! Tão mexendo...
Apesar de muito cansado após o dia de estafante trabalho, como pedreiro na construção da firma Bruma S.A., o pobre homem abriu os olhos e ouviu então mais nitidamente o cochicho apavorado da companheira: “Mané, tão mexendo no quarto das meninas”.
A casa era pequena: dois quartos, uma sala de visitas, o banheiro e, no fundo, uma pequena área coberta que servia para muita coisa, inclusive para estender roupa lavada nos dias de chuva. No quintal, algumas galinhas e pés de laranja, limão, jabuticaba, mangueira... É claro que nunca faltavam, também, o capim cidreira, quebra-pedra e boldo. Mas a grande riqueza de Manoel Olegário eram as lindas filhas, morenas, brejeiras e sensuais nos seus treze e quinze anos de formosura. Eram assediadas pelos rapazes do bairro na escola, nas festas, na Igreja. Outra, menor, de dois aninhos, completava a costumeira alegria da família.
Manoel procurou em cima do guarda roupa o seu velho “HO”, um 38 niquelado, que ganhou do Capitão Brito, um vizinho e companheiro de todas as horas. Foi aí que se lembrou que, no mês anterior, tinha dado sua arma para a tal campanha do desarmamento, intensamente pregada na propaganda da rede Globo pelo pessoal do “mensalão” do governo. E ainda nem recebeu os “cem” prometidos. Que arrependimento! Afinal, com aquele revólver, certamente que bastaria um tiro para o alto e um grito de advertência, que os bandidos sairiam correndo. Aliás, em quase todas as casas do bairro já aconteceram fatos assim.
Em áreas pobres não existe policiamento eficaz, nem cerca elétrica; nem circuito interno de TV; nem segurança privada. Os ricos não precisam de armas de fogo, pois têm suas próprias defesas. Por que impedir o mais pobre e a classe média de se defender?
Desarmado, mas sempre corajoso como qualquer homem de honra que, na defesa da pátria e da família “enfrenta a morte e não teme a sorte...”, o velho pedreiro enfrentou os dois patifes que, dentro da sua própria casa, no quarto ao lado, estupravam suas filhas queridas, ambas amarradas, com panos e esparadrapos tapando suas bocas, além das facas afiadas e reluzentes que as intimidavam e submetiam.
Homem de cinqüenta e sete anos, franzino, porém digno e másculo, jamais poderia aceitar tamanha afronta. Não foi fabricado nem parido como aqueles que pregam uma tal “PAZ”, sem respeito nem vergonha, desarmando os homens honestos e defendendo os “direitos humanos” dos bandidos e endiabrados. Não! Manoel Olegário sabia que iria morrer e, mesmo assim, partiu como faria qualquer macho de nobreza e caráter, para defender suas amadas filhas. Caso se acovardasse, não suportaria viver, depois, com a lembrança daquela cena infame. Ali, não era o caso de saber se havia ou não vantagem para reagir; se era ou não importante e racional chamar a Polícia ou a cambada do Viva Rio e outros cretinos para ajudar. A decisão era questão de honra. E questão de honra não comporta a frescura dos eunucos nem a ingenuidade dos simplórios ignorantes e intelectualoides.
Mané, lutando, recebeu uma, duas, três facadas... todas mortais. O sangue do negro brasileiro lavou o quarto, talvez se misturando com o sangue saído das filhas violentadas. A menor engatinhou-se até o cadáver do paizinho querido, passou a mãozinha na poça de sangue no chão e mostrou para a enlouquecida mãe: “Papá... Papá...”.
O revólver de Olegário que, por muitas vezes, sem que ele mesmo soubesse, dissuadiu aqueles vagabundos de entrarem em sua casa para tentar aquela barbaridade anteriormente, não estava mais em cima do guarda-roupa. A simples presunção da existência de uma arma de fogo, numa casa, já impede quase sempre o bandido de invadi-la. Os mais inteligentes sabem disso. Mas, os policiais arbitrários ou corruptos juntam-se aos ingênuos e cretinoides, para uma absurda campanha de desarmar os homens dignos, que até poderiam ajudar no policiamento.
Na frente da casa de Manoel Olegário havia uma faixa do Viva Rio: ‘SOU DA PAZ. NESTA CASA NÃO TEM ARMAS DE FOGO