Recebi, sem muito entusiasmo, a notícia da reposição remuneratória dos militares. Reposição remuneratória é um disfarce utilizado para denominar a esmola com que o governo pretende tapar a boca dos militares e, assim, tentar evitar demonstrações de inconformismo ou indisciplina no próximo dia 25 de Agosto (Dia do Soldado). Para que se tenha uma idéia de como o assunto foi tratado e para que se possa avaliar a efetiva participação do Sr. Ministro da Defesa e dos três comandantes (?) militares, conto uma estorinha em três capítulos. O primeiro: li, no site oficial do Exército Brasileiro, no dia 03 de agosto, que o presidente da república (assim mesmo com letras minúsculas, já que computadores não contêm letras ínfimas para descrever um e outra) decidiria na noite daquele dia o percentual de reposição. O segundo: ontem, sem que nenhuma notícia tivesse sido publicada a respeito, liguei para um oficial-general em função de comando (coitado!) e de grande valor profissional - e ao qual dedico uma sincera estima e merecido respeito - para saber o que havia de concreto na divulgação do site oficial do Exército Brasileiro; ele me disse que não sabia de nada e que, há já algum tempo, não consultava o tal site. O terceiro: hoje, recebo um e-mail, com o pomposo destinatário de excelentíssimo senhor , dando-me conta de que o Sr. Ministro da Defesa informa que “o Presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, sensível às perdas ocorridas ao longo dos anos na remuneração da família militar... determinou que se majorasse a remuneração da família militar em 13% para vigorar a partir de 1º de outubro deste ano e em mais 10% para vigorar a partir de 1º de agosto do próximo ano de 2006”.
E mais “que esta decisão representa um considerável esforço para atender às justas
aspirações das Forças Armadas , ainda que com enorme sacrifício orçamentário”.
Considerando-se que havia uma promessa de reajuste de 23%, a partir de março do corrente 2005, é fácil calcular em quanto foram logrados, em suas “justas aspirações”, os militares. Quero crer que, tanto quanto não sabia das bandalheiras arquitetadas em seu palácio governamental, segundo denúncias do Dep Fed Jefferson, o presidente ético também não sabia da promessa feita pelo ministro da defesa demitido (insisto nas minúsculas), no ano passado. Tampouco mostrou-se tão preocupado com o considerável esforço orçamentário ao sancionar leis de outros generosos aumentos concedidos, inclusive com retroatividade de muitos meses, a outros servidores da Nação.
Lembrei-me de São Lucas (Cap 16 – 19:21) : “Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo, e que todos os dias se banqueteava e se regalava. Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que estava à porta do rico. Ele avidamente desejava matar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico. Até os cães iam lamber-lhe as chagas...” Não pude deixar de associar tal passagem de paciência e conformismo com a imagem dos centuriões que se postaram, tantas vezes, em angustiada espera nas ante-salas, para receber um aceno daquele que se embrulha em roupões de algodão egípcio, deleita-se com vinhos caros e charutos importados e afaga até mesmo infratores da lei, com seus bonés e estandartes vermelhos, mas não se dignava a ouvir ou responder aos apelos para aumentar a quantidade de sal com que remuneraria seus legionários. Quando o conformismo e a paciência são exagerados ou não provocados pela lepra, parece-me que se confundem com a covardia. É preciso que, em algum momento, haja uma reação dos centuriões, nem que seja a de levantar-se da porta do rico, para curar suas chagas, provocadas pelas reiteradas manifestações de desapreço e repetidas mentiras. Elas os colocam muito mal diante dos que deles dependem para defesa de seus legítimos direitos. Que se encham de brio e saiam do pé da mesa do poderoso, antes que os cães venham para escorraça-los, já que, saudáveis, eles não têm feridas para serem lambidas.
Não sei se é verdade, mas contaram-me que o presidente de uma república sul-americana chamou o comandante de sua Marinha de Guerra, para informar-lhe que a Marinha Mercante seria privatizada e sairia de seu controle. De pronto, o almirante reagiu e foi demitido. Nomeado outro para o cargo, dele o presidente ouviu que também não concordaria com a privatização. Substituindo-o, imediatamente, por um terceiro, o presidente ouviu do novo escolhido que ele ia descer até um tenente para assumir o cargo, mas não haveria quem aceitasse a perda desejada do controle. Teria sido, então, reintegrado o que primeiro se opusera ao enfraquecimento de sua Força. Se é real, imagino o brilho de orgulho no olhar de todos os seus comandados quando o viam passar e em quanto se valorizou o desempenho profissional da corporação. Desnecessário comentar o tanto que cresceu o prestígio da Força e o respeito dos governantes por ela. Homens assim são líderes. Os outros, só comandantes...
Seria muito imaginar que isso pudesse ocorrer no Brasil? Ou estaremos condenados, ainda por muito tempo, a conviver com os lázaros e suas migalhas. Se assim for, que Deus nos guarde.