Em artigo recém-publicado no “Wall Street Journal”, Mary Anastasia O’Grady alerta que a China está preenchendo o vazio deixado na América Latina pela política do Departamento de Estado. Herança mórbida de Bill Clinton que George W. Bush largou inalterada para se concentrar nos problemas do Oriente Médio, essa política consiste de: (1) apoio às intromissões do FMI na política econômica local, as quais colocam os americanos numa posição antipática sem lhes trazer benefício nenhum; (2) “combate às drogas” por meio de uma estratégia suicida que só beneficia as Farc e os cocaleros; (3) ajuda maciça a ONGs esquerdistas empenhadas em fazer a caveira dos militares; (4) ingênua complacência ante valentões tipo Hugo Chávez.
Desde o início esse cardápio parecia mesmo planejado para favorecer a ascensão do esquerdismo e abrir as portas da AL às ambições chinesas. Nada mais natural, já que a esquerda aí ama Bill Clinton de paixão e o governo da China o ajudou com dinheiro em campanhas eleitorais. Mas, se a arraigada boa-fé dos eleitores americanos os impediu de atinar com a lógica perversa por trás do esquema, hoje as conseqüências da aplicação dele são tão vistosas quanto a onda continental de antiamericanismo que as manifesta e as dissimula. (Sobretudo dissimula: pois quem poderia suspeitar que a esquerda triunfante deve seus louros ao governo americano, justamente no momento em que mais esbraveja contra ele da boca para fora?)
A sra. O’Grady observa que aqueles quatro pontos não correspondem em nada às convicções do atual presidente -- o qual, com certeza, há de suprimi-los tão logo um segundo mandato lhe dê forças para isso.
A ascensão das esquerdas na América Latina é um epifenômeno: uma aparência superficial gerada por um fato mais discreto e mais profundo, originado nos EUA. Suprimido o fato, a aparência se desfará por si própria, como uma bolha de sabão. E os que apostaram nela ficarão, uma vez mais, com cara de tacho.
Daí o sentimento de urgência apocalíptica, a agitação obscena da torcida latino-americana pró-Kerry. Agitação inútil: o candidato democrata se enrola cada vez mais em tentativas de manchar a reputação de Bush, que retornam sobre a sua pessoa com força multiplicada. Foi ele quem, ao fazer-se de herói de guerra e depreciar o adversário como soldado relapso, chamou para fora do armário o esquadrão de esqueletos que agora, com uniformes da Marinha, vêm assombrá-lo em pesadelos. Foi ele quem, apelando ao expediente sujo das imputações criminais, se expôs ao risco de investigações que ameaçam trazer à luz a sua participação num complô de homicídio. Resultado: segundo a Gallup e a Zogby, que sabem mais do que a mídia brasileira, ele tem 42 por cento das intenções de voto, contra os 55 por cento de Bush. O problema da candidatura Kerry é John Kerry.
É preciso alguém estar mesmo muito desesperado, para chegar a apostar tudo num clone geneticamente defeituoso de Bill Clinton.
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Com “Das Casernas à Redação — A Era de Turbulências”, publicado esta semana pela Editora UniverCidade, Paulo Mercadante nos dá mais uma prova de seu talento para apreender a unidade de sentido por trás de acontecimentos heterogêneos. É, antes de tudo, a história de um grande jornal —- este mesmo jornal em que tenho a honra de escrever —-, contada com foco nos três personagens que lhe deram vida: Irineu, Roberto e Rogério Marinho. Mas O GLOBO não aparece aí apenas como empresa jornalística, e sim como expressão de um movimento político decisivo, o tenentismo, desde suas origens no começo do século XX até seu declínio na era Geisel. Não creio que algum dia a trajetória de uma publicação brasileira tenha sido delineada sobre um fundo histórico tão vasto, nem com uma visão tão aguda das ligações entre jornalismo, política e cultura.
Sempre fico sem jeito para elogiar Paulo Mercadante, porque temo que a minha admiração ilimitada pareça devoção boboca. Mas como poderia a amizade que lhe tenho amortecer minha inteligência crítica, se tudo o que leio dele revigora essa inteligência mais do que qualquer outro produto da farmacopéia cultural brasileira?