Numa semana, duas ameaças: uma agência para controlar a produção cultural e um conselho para fiscalizar o jornalismo. A idéia da agência, que diante dos protestos foi recolhida ao estaleiro, nasceu na Casa Civil. No caso do jornalismo, a Federação Nacional dos Jornalistas propôs a criação de um conselho para a profissão, mas a exposição de motivos do ministro Ricardo Berzoini deixa clara a intenção controladora. Diz o ministro que não há hoje instituição para “fiscalizar e punir as condutas inadequadas dos jornalistas”.
O ministro está errado. O que nos pune, caso tenhamos condutas inadequadas, é o conjunto das leis brasileiras, o Judiciário brasileiro. Sobre o nosso trabalho, recai ainda o peso de uma lei do período ditatorial: a Lei de Imprensa.
No projeto para a criação da Ancinav — agência que controlará cinema, televisão, TV paga, rádio e outras empresas que atuam em audiovisual — o governo nem disfarça sua inclinação autoritária.
Artigo primeiro: “Compete à União organizar a exploração das atividades cinematográficas e audiovisuais. Parágrafo único: a organização inclui o planejamento, a regulação, a administração e a fiscalização das atividades cinematográficas e audiovisuais.” Esse início é revelador. O governo deve regular e fiscalizar. Isso está correto. Mas as tarefas de planejar e administrar cabem às empresas. Tudo neste governo é assim. Ele não se contenta em exercer as funções que estão destinadas ao Estado. Na cultura, como na economia, o mesmo DNA do autoritarismo, da centralização excessiva, de regras pouco claras, das perigosas ambigüidades aparece em cada iniciativa.
Há frases no texto que parecem singelas, como a do artigo oitavo: “A liberdade será a regra.” Parece estar confirmando as garantias constitucionais da república democrática que o Brasil escolheu ser, mas aí vem o fim da frase: “constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do setor público.” Leia-se ao inverso e se verá o tamanho da ameaça: estão autorizadas, portanto, as proibições, restrições e interferências.
O artigo todo é abusivo. No terceiro parágrafo, diz que “O proveito coletivo gerado pelo condicionamento (da intervenção estatal) deverá ser proporcional à privação que ele impuser.” Ou seja, é possível sacrificar a liberdade se isso for, na interpretação do governo, de proveito coletivo? Liberdade não tem porém. Liberdade não se condiciona a nenhum outro objetivo. Isso aprendemos; dolorosamente.
A Ancinav, Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, como foi proposta, terá o direito de interpretar as leis, decidir em casos omissos — e suas decisões são irrecorríveis. Admite apenas o recurso ao conselho diretor da própria Ancinav. Vai também “articular os vários elos da cadeia produtiva da indústria cinematográfica e audiovisual brasileira”, vai “fomentar” alguns produtos estrangeiros, expedir certificados, vai apreciar “os comportamentos suscetíveis de configurar violação das normais legais aplicáveis à exploração de atividades cinematográficas e audiovisuais, inclusive a produção, programação, distribuição, exibição, veiculação”. E é ela também que decidirá sobre os casos de defesa da concorrência, função da Secretaria de Direito Econômico e do Cade. A lista das atribuições é tão interminável quanto inconstitucional.
E quem exercerá esse poder todo? Cinco pessoas. Ou melhor, três pessoas, porque o conselho diretor terá cinco diretores, mas decidirá por maioria simples. Esse triunvirato terá o direito de, no caso em que a divulgação “colocar em risco a segurança do país, violar segredo protegido ou a intimidade de alguém”, fazer reuniões secretas e manter seus registros em sigilo. A Ancinav terá também o direito de requerer qualquer informação “técnica, operacional, econômico-financeira e contábil” de qualquer empresa que atue no mercado.
E quem está submetido a ela? Todos os que se enquadrarem nesta estranha definição: “Conteúdo audiovisual é o produto da fixação ou transmissão de imagens, com ou sem som, que tenha a finalidade de criar a impressão de movimento, independentemente dos processos de captação, da tecnologia empregada, do suporte utilizado inicial ou posteriormente para fixá-las ou transmiti-las, ou dos meios utilizados para sua veiculação, reprodução, transmissão ou difusão.”
A poderosa Ancinav também tributa. Ela aumentou a taxação que recai sobre o setor por meio da “contribuição para o desenvolvimento da indústria cinematográfica e audiovisual brasileira” e dá uma lista enorme de fatos geradores sobre os quais recairá a taxa, a “Condecine”.
O pior momento da peça está nos artigos 42 e 43. No primeiro, diz que ela vai exigir das prestadoras de serviços no setor: “respeito aos valores éticos, sociais e morais da família”, sem dizer que tipo de manual de costumes vai consultar. No 43, ela se outorga o direito de dispor sobre “a responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação”. Triste é ver o imenso Gilberto Gil aceitar um texto que ele não redigiu e que, em tantas notas, desafina com sua biografia.
Tudo no projeto lembra uma outra época, um outro mundo, cujos muros já desabaram há 15 anos, um mundo em que o poder central planificador decidia, julgava, condenava, organizava e administrava por obscuros e subjetivos conceitos, e transformava os produtores culturais em peças da máquina de propaganda estatal. O governo recolheu o texto e diz que vai refazê-lo. O melhor destino para este texto é o lixo.