O tempo conferia a Anja um corpo de moça, jeitosa, apesar da miséria. Isso despertava nos garotos de rua um crescente desejo. A vida deles era isenta de restrições morais, ficando sempre no final das contas cada um por si, como reza a tal lei de muricy.
Não raras vezes eles se atiravam desafiadores e licenciosos, atiçados pela libido que começava a se descontrolar, com a chegada da adolescência. Agora os meninos andavam mais com outros meninos, enquanto as meninas se distanciavam, em um grupo à parte, preferindo a companhia das putas mais velhas, como a querer aprender com a observação das mestras do sexo nas ruas de Salvador.
Os dias de verão eram quentes e preguiçosos, mas a alegria daqueles meninos e meninas estava no banho que tomavam nas velhas fontes da cidade, que ninguém, senão os desvalidos, mendigos e marginais, freqüentavam. Uma delas fica na velha Ladeira do Hospital, atrás do convento da Misericórdia, onde funcionara por muito tempo a Santa Casa, o mais velho hospital da cidade.
Naquele lugar escondido, debruçado sobre a cidade baixa, e aberto para a Baía de Todos os Santos, eles se banhavam, e nessas ocasiões começavam os jogos sensuais em que uma ânsia exibicionista tomava conta dos meninos e também das meninas. Anja se via constantemente assediada pelos meninos que sempre que podiam tocavam-lhe as partes íntimas, mormente os peitinhos de menina-moça que começavam a despontar audaciosos, apontando para uma vida liberal e promíscua. Mas a menina não se sentia à vontade diante daquelas investidas, e sempre brigava, às vezes atacava seus assediadores com porretes ou pedras, e se valia da proteção das meninas mais velhas, mas estas estavam mais interessadas em se atirar ao sexo, do que fugir dele.
À noite ela ficava atenta aos movimentos ao redor, quando meninos e meninas mais velhos mantinham relações sexuais sob placas de papelão, no abrigo improvisado embaixo do viaduto. Outros meninos se masturbavam bem perto dela, acompanhando a movimentação dos mais velhos, e muitas vezes se iniciavam uns com os outros, abusando dos menores, que começavam a desenvolver atitudes violentas, como reação aos estupros sofridos.
Anja não escaparia deste destino, pois uma noite, quando estava sozinha, sem a companhia da velha Bartira, foi dominada por três outros garotos que a violentaram e a espancaram.
A coitada, seminua, vagou pelas ruas, sangrando muito, até chegar ao boteco do Torca, que penalizado a socorreu.
Já era tarde, e Bartira, que sempre passava pelo boteco, ainda não tinha dado as caras, o que começou a preocupar Anja, até que o velho portuga se dispôs a ir procura-la nas ruas próximas, pois podia estar caída em alguma sarjeta, bêbada como sempre.
Não tardaram a encontra-la numa ladeira que ficava ao lado do cine Pax, um cinema que pertencia à Ordem Terceira de São Francisco e que era ponto de encontro para prostitutas e homossexuais, uma vez que sua programação era quase que exclusivamente de filmes pornográficos.
Deitada sobre os paralelepípedos que calçavam a via, maltrapilha e com uma garrafa de pinga vazia, evidentemente, jazia a pobre criatura. Nenhum transeunte se dispusera a ajudar, limitando-se a olhar e passar ao largo, balançando as cabeças reprovadoramente.
Anja correu em direção à coitada e ajoelhando-se junto à sua cabeça, procurava ver se ela estava bem, mas logo percebeu que algo não estava certo. Seus olhos súplices se dirigiram para Torquato, como a pedir que ajudasse aquela criatura que se fizera de sua mãe, bem ou mal, foi a única pessoa que teve para ela um sentimento maternal, que foi a força que a fez carregar sua cruz, até com um certo destemor, num ambiente por demais violento e desumano.
O velho português se abaixou e procurou pelos sinais vitais de Bartira, mas ela estava gelada, dura como pau, morta.
- Não mais o que fazer aqui, menina, ela já está morta faz um tempão.
Anja não queria abandona-la, chorou muito, procurando aconchega-la em seu colo, mas de nada adiantava aquilo, Bartira já se fora.
Uma confusão começara ali perto, na Baixa dos Sapateiros, quando a polícia perseguia dois assaltantes, disparando tiros pra todo lado. Torca agarrou a menina pelo braço e levou-a consigo, arrastando-a e a si mesmo, ladeira acima, para escapar do tiroteio.
- Onde vocês ficavam, menina, você e Bartira?
- Nós dormíamos embaixo do viaduto da Praça da Sé? Porque?
- Veja bem, você já foi até estuprada, só porque a Bartira não estava lá pra te defender. Agora com ela morta, a coisa vai ficar preta pra ti. Queres uma guarida no meu boteco? Você pode trabalhar pra mim, não tenho dinheiro pra te pagar, mas posso te garantir comida e teto. O que achas?
Anja não tinha muito o que dizer, sabia que precisava de ajuda, e não pensou duas vezes. Seguiu com Torca, pra morar em seu boteco.