Dois episódios recentes, separados por três dias, expõem didaticamente as contradições entre o que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz, com o comportado coro dos seus ministros, secretários, líderes e cupinchas, e o que faz ou não faz o governo, entorpecido pelo inchaço administrativo.
No estilo habitual da eloqüência, enfeitado por metáforas da facilidade torrencial dos seus improvisos, Lula fala de um país e de um governo que só existem na sua fértil imaginação. E mistura a realidade com a fantasia na mesma toada, indiferente aos tropicões na incoerência.
Invertendo a ordem, vamos ao segundo deles: no discurso pronunciado em Salvador, na inauguração do Programa Farmácia Popular do Brasil, que saiu do papel depois de um ano e meio de um terço do mandato, o presidente jurou, por todos os santos e orixás, que não se orienta por critérios políticos na escolha das cidades agraciadas pela generosidade federal. Embalado pelas próprias palavras, foi em frente, para explicar a inauguração de farmácias em São Paulo, Goiânia, Rio de Janeiro e Salvador: O critério da escolha foi muito simples: prefeitos que se comprometeram a participar do processo da Farmácia Popular .
O cipoal da imprecisão embaraça-se nos números: das 17 farmácias inauguradas no país, São Paulo, da prefeita petista Marta Suplicy, emplacou 10, mais da metade, e a sobra foi rateada entre Salvador, mimoseada com cinco, e o Rio de Janeiro e Goiânia consoladas com uma botica para cada uma.
A parcialidade do rateio se patenteia, sem os véus da fantasia, no que o presidente classificou de simples coincidência de duas das capitais serem administradas por prefeitos do PT e duas por eleitos na legenda do PFL, como é o caso de Salvador.
A coincidência claudica quando se presta atenção nos detalhes da paisagem ao longo das trilhas. Em São Paulo, a prefeita Marta Suplicy, candidata a reeleição maltratada pelas pesquisas, com altos índices de rejeição, esperneia para justificar o agrado do presidente do seu partido, alegando que o governo federal apenas manda os remédios para as prateleiras das farmácias em prédios reformados às custas da prefeitura, que derrama suor para o pagamento dos aluguéis.
Parece que ficou tudo claro. Não é bem assim. Na capital baiana desponta na pesquisas o candidato petista, deputado federal Nélson Pelegrino, presente à festa e abraçado pelo presidente no palanque, o grande beneficiado com a festiva inauguração do estabelecimento, segundo denúncia do PFL. O senador Antônio Carlos Magalhães, chefe pefelista do Estado, soprou forte no trombone na sua imediata reação, declarando que faltou educação política ao presidente Lula ao não convidá-lo, nem ao governador Paulo Souto, para um ato de coloração partidária. Cobrou a contrapartida da ajuda que vem dando ao governo em votação difíceis no Senado.
Mas, na reunião do Ministério de sexta-feira, dia 4, o desacordo entre o que o presidente diz e o que governo não faz expõe-se no limite do constrangimento do pito que passou aos seus ministros e secretários, com exceções explícitas. Aparentemente coberto de razão, citando números apresentados pelo ministro do Planejamento, Guido Mantega, deixou a maioria em maus lençóis ao destacar que, até maio, estavam disponíveis para investimentos R$ 9,4 bilhões, dos quais apenas R$ 3 bilhões foram empenhados e R$ 400 milhões liberados.
Repita-se: apenas R$ 400 milhões efetivamente gastos em obras do governo em um terço do seu mandato. O mais exaltado dos oposicionistas, no extremo do seu exagero, não produziria crítica com tal contundência à paralisia administrativa do governo.
Precisa e exata na denúncia, a reação presidencial se perde nos descaminhos do disparate que contrapõe o reconhecimento dos erros aos corretivos que a gravidade do quadro reclama.
Bom de discurso, hesitante na ação, Lula é um deslumbrado com o seu desempenho na tribuna, curte o prazer dos improvisos; conforma-se à leitura dos catataus elaborados pela sua assessoria. O exercício do governo é uma divertida sucessão de reuniões, do modelo da sua vitoriosa experiência de líder sindical, de devoto do assembleísmo, em que sua lábia de comunicador comandava multidões nas portas das fábricas. E que agora conquista a simpatia na promoção ao tope da liderança no plano internacional.
A massacrante rotina burocrática não se ajusta ao seu temperamento. Para driblá-la, recorre aos estratagemas, trocando sempre que pode os tediosos despachos individuais com os 35 ministros e secretários pelo despacho coletivo das reuniões ministeriais.
Claro, são situações diferentes. O quadro que traçou na última reunião-monstro esbarra num beco sem saída: ou as verbas não aplicadas pelos que vivem a choramingar pelos cantos a falta de recurso para a realização dos seus mirabolantes planos só existem no papel ou estamos diante de pública censura à incompetência e à mandriice dos ministros que engessaram o governo.
Em qualquer das hipóteses, o remédio único é a varredura ministerial para a sumária dispensa dos incompetentes e preguiçosos