Em "A Respiração das Vértebras", primeiro livro do poeta João Rasteiro, finalizava-se com um pequeno passo de um outro texto, publicado na 1º série da revista "Oficina de Poesia", a cujo Conselho de Redação o autor pertence. A "collage" foi identificada apenas por alguns, mas é o espírito que subjaz à utilização dessa técnica, bem como o contexto em que o trabalho se desenhou, que me importa aqui referir. Falo do diálogo que uma pequena comunidade poética vem a desenvolver há já cerca de 10 anos.João Rasteiro
integra essa comunidade, criada no âmbito de um curso livre de Escrita Criativa(Oficina de Poesia)
título que passou à revista,oferecido pela Univer-
sidade de Coimbra e dirigido por mim própria. A
"sagrada" - autor/ia-autor/idade - constitui-se como uma espécie de núcleo temático do debate, num
curso em que o individualismo "inspirado" e "geni-
al" é não só questionável mas, quase sempre,também
dispensável.
A consciência de que usamos como material as palavras da tribo e a certeza de que o nosso tra-balho poético - que entendemos como trabalho de re-invenção - só faz sentido no seio da comunida-
de mais vasta, leva-nos a afirmar, com Robert Dun-
can, entre outros,que todos somos derivativos. O poema surge, assim, "ditado" pelas vozes que en-
chem a nossa experiência pessoal: as vozes da his-
tória e da cultura da tribo em que nos incluímos, as vozes de toda a evoluçao do universo em cujo
movimento participamos, as vozes de toda a tradi-
ção literária de que fazemos parte(mesmo pelas vo-
zes que aí rejeitamos) - mas também pelas vozes que fazem a insignificância(tão significativa) do
nosso quotidiano,em que, para alguns de nós, exis-
tem as vozes de outros poetas com quem nos encon-
tramos, semanalmente, para trabalhar em conjunto(e
isso pode traduzir-se,por exemplo,em poemas escri-
tos a várias mãos,em "collage" em variações sobre-
poemas de outros, etc).
O final de "A Respiração das Vértebras" surge
assim também, de certo modo, no início deste novo
livro de João Rasteiro: "No Centro do Arco" começa
com duas epígrafes e uma delas é de Robert Duncan,
tal como era de Robert Duncan aquele título do
poema final no livro anterior,"A Grande Deusa",por
mim,já antes,apropriado.Digamos que, no nosso diá-
logo semanal,certas obsessões se vão tornando cen-
trais e que vejo, neste trabalho de Rasteiro, uma
espécie de resposta às minhas próprias obsessões,
que partilhei(para o bem e para o ma) ao longo de vários anos de estudo sobre o trabalho de um dos
maiores poetas norte-americanos da segunda metade
do século XX.Numa imagem de círculos concêntricos,
a obra de Duncan é central,decerto inaugurando no-
vos centros de movimento que, de forma complexa,se
alargam, inter-agindo - com o italiano Salvatore Quasimodo, por exemplo, a quem pertence a segunda
epígrafe a este livro.
As duas epígrafes remetem-nos,de imediato, pa-
ra a unicidade entre a vida e a morte. No centro,
entre as extremidades desse arco - e os ecos de
"Bending the Bow" de Robert Duncan surgem bem cla-
ros - se colocará a voz do poeta deste livro, já
duas vezes premiado na Itália de Quasimodo, com os
poemas: "Enquanto o silêncio durar"(31),"Menção
Honrosa", Concurso Internacional "Poesie Sulle Pi-
astrelle",Zacem 2001;"A Dança das Mães"(41),Segna-
lazione di Merito",Concurso Internazionale "Publio
Virgilio Marone", da Accademia Internazionale "Il
Convivio", Castiglione de Sicilia,Itália,2003.
No centro de um arco situado no coração da ter-
ra,o corpo se erguerá em direcção à luz(da vida)e,
nesse acto de encontro criador, amorosamente, irá
criar a sua própria morte - a sua própria e repen-
tina "noite",diz Quasimodo: dois raios de uma mes-
ma luz, numa única promessa que é passado,presente
e futuro.
Também como Duncan -e os românticos, em geral-
João Rasteiro escolhe a metáfora da árvore como corpo representativo, devolvendo-nos, desde logo,
a uma concepção de escrita que se pretende orgâni-
ca e física. A primeira secção do livro,"Tronco",
procura a visível concretude do acto/corpo/poema.
Logo no seu primeiro texto,deparamos com o divino
hálito inspirador feito agora respiração humana,
bafo nos dedos que agem sobre a palavra - acto nas
linhas do arco. A escrita surge como acto de amor e vida, no tempo único entre caos e ordem, entre trevas e luz, trabalho realizado numa espécie de
vigília que passa, do assombro, à "lucidez do cor-
po". Essa é a "nitidez" do processo, uma nitidez -
uma forma/poema/corpo do poeta - "em constante mu-
tação", como os dedos do autor/criador. A presença
do corpo, a presença da pura materialidade que é a
forma, surge como única e total presença do sagra-
do.
De resto,todo o vocabulário escolhido por Ras-
teiro se encontra eivado de uma profunda religio-
sidade,produzindo-se um efeito ritualístico, em que
a voz do poeta nos capta, de forma encantatória,como
uma voz de sacerdote,a voz daquele que encena o ritual.
O tom conclusivo dos textos apresenta-se como uma espé-
cie de catarse: uma espécie de momento de aprendizagem,
de momento de iluminação, que se encena uma e outra vez.
Por outro lado, este carácter repetitivo parece traduzir
também o carácter físico do acto criador, num registo
metafórico que nos traz, além da sensualidade, a própria
sexualidade como princípio sagrado, presente em toda a
natureza: no "sémen dos frutos"(19);no tronco que "avança
decidido para o útero do fogo"(20), mergulhando na terra
que "é fêmea"(21), no "desenho branco no odor da fêmea"(22),
em "lume de cerejas de carícia em carícia"(24). Esta "embri-
aguez do verbo vegetal"(25) lembra-nos rituais dionisíacos e
também o grande poeta do sagrado do amor e da embriaguez,Rumi
(veja-se, poe exemplo, o poema "Horizonte imediato"(22).Con-
tudo, em Rasteiro, mais do que com a celebração deste amor e
desta embriaguez, confrontamo-nos com um processo penoso de
crescimento(que é também o da escrita), em que a perda dos
sonhos e a procura da lucidez possível se vão desenhando em
agonia difícil - por entre a manutenção dos opostos, mais do
que por entre antíteses - e onde o poeta aprende "difícil(...)
a arte do silêncio"(25). Trata-se de uma arte que se faz em
luta - e o carácter agónico presente na metáfora do arco e da
flecha assume aqui a sua verdadeira dimensão.
No poema "Círculo"(23), o poeta fala-nos da imensa crueldade
deste movimento, desta luta, em que a abertura para uma nova ima-
gem parece irromper violentamente dos membros, num espécie de par-
to que, como sabemos, para criar, destrói: "parte" a imagem/corpo
de onde nasce, como se dois arcos(de vida, mas também de morte)se
acoplassem para formar um só círculo.O início das duas primeiras
estrofes faz-se pela negativa, bem marcada pela pausa:"Ninguém";
"Nada".Porém, a terceira estrofe inicia-se na plenitude: "Extensa".
A morte paira e, perante essa sombra, o trabalho alquímico sobre
as palavras manifesta-se no objectivo, sempre inatingível, de di-
zer toda a dimensão do real. A consciência da sombra leva ao dese-
jo, às "palavras em fogo", mas o acto pela vida revela-se como um
"suicídio calculado", no conhecimento de que toda a criação trans-
porta a sua própria destruição. No último poema de "Tronco", "O so-
pro da língua"(28), o poema/corpo/tronco surge-nos como "arco do
sopro/do som" e, nele, todas as forças da natureza - a linguagem
incluída - se encontram, "a pulsação das sílabas sobre os pulsos
abertos", para se reconhecerem como matéria desse mesmo corpo(numa
irmandade que evoca S.Francisco), celebrando-se "num só corpo esten-
dido/para uma silenciosa festa de irmãos".
Este silêncio é identificado como a raíz, sendo "Raízes", preci-
samente, o título da segunda secção da obra.É no silêncio que o poeta
mergulha, como amante, dele extraindo alimento.Em "Círculo Total"(32)
se fala dessa procura de alimento,numa espécie de pré-história do poe-
ma e do humano,em que o poeta se faz caçador,mas também nómada e pere-
grino - seguindo o trilho e o caminho da palavra, como sustento infi-
nito. Este regresso ao arcaico,à raíz da civilização,mantém-se ao lon-
go de toda esta segunda parte da obra. Nela encontramos o percurso hu-
mano:caçador(32),guerreiro(33),ferreiro e alquimista(33-34),trabalhan-
do os metais na demanda da luz."Na lucidez do círculo"(35)parece desco-
brir-se a escrita, "um espaço onde se lêem linhas", que é "um espaço
mutilado", onde encontramos, de novo, "o bafo do animal vacilante",a
respiração humana - do selvagem/poeta que, na palavra, procura o fim do
movimento: um sonho/sopro que termina calcinado pela própria luz/fogo
que tanto deseja como absoluto. Esta parece ser a lucidez do círculo.
A água e a pedra acalmam este fogo, logo no poema que se segue,
assim, de novo, se reconhecendo a unicidade divina e absoluta do tempo,
do corpo e do sonho. Neste "lugar legível"(36),que adiante surgirá como
"transpiração da terra", o poeta se alimenta(37). Quase poderíamos dizer
que esta secção do livro é também sobre o cultivo,a(gri)cultura da pala-
vra, que é também a terra e o corpo da amada. Nesta palavra/terra/amada,
o poeta penetra, fazendo-se raíz, para daí se erguer como árvore. Daí, a
necessidade do sulco do arado:a necessidade das linhas da escrita do poe-
ma.Há que macular o corpo da terra/linguagem/amada para poder sobreviver:
esse é o pecado inevitável e a queda feliz - "e depois sentir-me capaz de
caminhar no incêndio/enfeitado nas tranças da serpente"(40), diz o poeta.
A imagem final desta segunda secção do livro deixa-nos,então,os dedos do
poeta a soltar a flecha, uma flecha feita "borboletas" que, em vez de voa-
rem para o alto, voam em direcção à terra, assim a fecundando.
Todo o trabalho de Rasteiro sobre a imagética nos faz pensar em meta-
morfose.Não se trata de sobreposição de contextos,mas de uma passagem sin-
táctica, extremamente subtil e veloz, que nos transporta de metáfora em
metáfora, através de uma multiplicidade de contextos.Lidando com um léxico
de enorme simplicidade, quase sem recurso a abstrações, o poeta consegue,
assim,um trabalho em que a complexidade se traduz num excesso quase barroco,
de onde emergem momentos de iluminação que, circularmente, se repetem.
Em "Folhagem", última secção do livro,as imagens de aves e de voo domi-
nam. Entre as duas extremidades do arco, entre a vida e a morte, só o acto
é libertador. Em última instância, só o movimento das folhas importa, só a
flecha solta para uma qualquer direcção.No desejo, sempre a mesma ilusão - a
ficção credível, que nos sustenta a vida, diria Wallace Stevens: a sua Supre-
ma Ficção sendo a poesia.Rasteiro chama-lhe "a ilusão maior"(45), para onde
há o infinito "retorno"(46).Esse é o "rito inesgotável"(49),em que a redenção
se torna possível.Algo de arcaico, "teia dos velhos deuses", chama-lhe o poe-
ta, para cobrir uma "ignorância originária".Sobre esse rito, sempre a mesma
morte pairará mas, na consciência da lâmina, a vida continua a fazer-se:"as
florestas respiram na planície do corpo".
O voo da árvore/poema/poeta é vertical(53), sempre em direcção à luz e à
terra, sempre no centro do arco; o ciclo sempre a repetir-se na folhagem que
"regressa eternamente/e forma pares imprevisíveis"(53) - e forma novas asso-
ciações, e forma novas metáforas, poderíamos dizer.
O último poema de No Centro do Arco deixa-nos a dificuldade do caminho,
"Sob o azul"(55), e uma árvore alquímica, imperfeitamente criada, na ilusão
da permanência que é a permanência dos metais: em vez de ouro e luz, esta ár-
vore é "bronze aceso como luz" e "ferro" que,porque criação humana, será "ful-
minante" para o seu criador. No entanto, esta árvore revela-se também como o
novo hálito deste criador, "as suas mãos ávidas de boca" - a suprema ilusâo da
criação humana, sob o azul, no centro do arco. Esse é o lugar/tempo único que
o poeta João Rasteiro conhece como seu. Essa a sua reconhecida ilusão, o seu
único absoluto, a sua única promessa.
GRAÇA CAPINHA
(Prof.Dra. na Faculdade de Letras,
da Universidade de Coimbra)
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