Imagine que um sujeito completamente desconhecido tomasse dinheiro emprestado a outro desconhecido dando em garantia o seu patrimônio e a sua renda, leitor. É evidente para qualquer pessoa sensata que esse negócio violaria preceitos morais universalmente aceitos, como o mandamento "não roubarás". Logo, por se tratar de ato escandalosamente injusto, constitui prática vedada pela lei civil e prevista como crime na lei penal. Certo? Errado. Talvez o leitor se surpreenda, mas esse tipo de transação imoral e fraudulenta ocorre rotineiramente, como se fosse a coisa mais natural do mundo. É isso mesmo; todos os dias um grupo de indivíduos toma dinheiro emprestado a juros prometendo pagar com os bens que confiscará da maioria dos cidadãos do país sem que ninguém se escandalize. Como isso é possível?
Estou falando, evidentemente, do Estado e do endividamento estatal, a famosa "dívida pública", que não é outra coisa senão o ato intrinsecamente imoral descrito acima, que, se praticado por particulares, resultaria em indignação geral. A ausência dessa justa indignação quando o mesmo ato imoral é executado, em escala, aliás, gigantesca, por indivíduos investidos dos poderes estatais se deve a razões ideológicas. Após séculos de incessante propaganda estatista, as pessoas se habituaram a encarar como legítimas condutas que normalmente entenderiam como desonestas e indecentes, desde que embrulhadas na conversa mole da "promoção do bem comum e da justiça social", por exemplo. E a inércia dos hábitos é uma tremenda força social.
No âmbito da economia pura, o endividamento estatal (assim como a inflação) é uma forma marota de driblar as limitações constitucionais e legais ao poder de tributar para sangrar o patrimônio dos particulares. As conseqüências são sempre economicamente desastrosas. Quando o Estado entra no mercado de empréstimos, a poupança que ele atrai deixa de ser investida na ampliação da estrutura de capital do país para ser desperdiçada pelos agentes estatais em despesas correntes com sua clientela (funcionários públicos, fornecedores, pensionistas e outros) ou em "investimentos públicos" que de investimento só têm o nome. Investimento, isto é, a aplicação de recursos economizados do consumo atual em bens de produção que resultarão em maior consumo futuro, é uma categoria econômica que só faz sentido na ordem das relações voluntárias de mercado. "Investimento público" é um conceito contraditório em seus termos e, na prática, é apenas consumo estatal, dissipação criminosa de poupança. Outra conseqüência perversa é a politização das taxas de juros, que deixa de refletir as preferências de poupadores e investidores para ser fixada arbitrariamente pelo governo. Essa interferência é extremamente prejudicial para a alocação de recursos e termina por deflagrar as expansões artificiais seguidas de contrações recessivas que caracterizam os ciclos econômicos.
A dívida estatal é também um fardo para as gerações futuras, que não apenas não colherão os frutos da parcimônia e do trabalho duro da geração presente, malbaratados no consumo estatal, como também terão que entregar os frutos de seu próprio trabalho e poupança para o Estado pagar as dívidas passadas. A dívida estatal é uma espada de Dâmocles permanentemente suspensa sobre o pescoço da sociedade, pois existe sempre a tentação de repudiá-la, de dar o calote. Quando o calote acontece os efeitos são a destruição do crédito, o pânico financeiro e o caos social.
Que eu saiba, a única ocasião em que se discutiu seriamente sobre o endividamento estatal do ponto vista moral, em todas as épocas e lugares, foi nos Estados Unidos, logo após a independência. A corrente liderada por Thomas Jefferson se opunha ao endividamento "público" por entender injusto onerar as futuras gerações em benefício da atual, enquanto Alexander Hamilton e seus seguidores advogavam a conveniência da dívida para o Estado. Por algum tempo as idéias de Jefferson predominaram e a dívida estatal americana permaneceu baixa e sempre se procurava resgatá-la e extingui-la.
Com a mudança da atmosfera intelectual que se seguiu à ascensão do pensamento socialista, contudo, o endividamento estatal não só passou a ser tido como conveniente, como também ganhou justificação ética na obra de Keynes e sua escola. Para os keynesianos, a dívida estatal (e também a inflação) é um importante instrumento "anticíclico" na promoção do "pleno emprego" pela qual o Estado benevolente substitui os particulares egoístas na tarefa de manter o "investimento agregado" no ponto em que a "demanda efetiva" gera a absorção de toda a força de trabalho disponível. Esses sofismas, como não poderia deixar de ser, acabaram libertando os políticos de todos os escrúpulos e o resultado foi a explosão e a eternização do endividamento estatal em proporções ciclópicas em todo o planeta. O governo dos Estados Unidos, com seu passivo de seis trilhões de dólares, é hoje o maior devedor do mundo. A economia mundial pode a qualquer momento ser soterrada por essa montanha de dívidas.
No Brasil a situação não é diferente. A limitação do financiamento inflacionário do Estado desde 1994, sem que sequer se cogitasse da redução dos gastos estatais, causou a escalada da carga tributária e da "dívida soberana". Na imprensa e nas universidades, embora se fale no assunto, abusa-se do jargão em análises sobre o "alongamento do perfil" e a "proporção dívida/PIB". Mas a questão em si mesma do direito do Estado de se endividar nunca é discutida. Uma exceção aparente deu-se na campanha da CNBB contra o pagamento da dívida externa. Acontece que os bispos e padres dessa entidade não falam em nome de Cristo e do Papa, e sim de Karl Marx e de Fidel Castro. A crítica desse pseudocatolicismo, portanto, não impugna o endividamento estatal como inerentemente imoral por implicar em confisco de propriedade privada e violação da liberdade individual. Até porque os clérigos socialistas não reconhecem categorias como propriedade privada e liberdade individual, nem mesmo a existência de indivíduos autônomos e de uma Moral absoluta. Eles pensam em termos de classes: classe capitalista exploradora e classe trabalhadora explorada. E no Estado como ente divinizado e onipotente, instrumento da vontade geral e da justiça social. O problema, então, não é o poder estatal de contrair dívidas avalizadas pelo patrimônio alheio, já que para a CNBB toda propriedade é coletiva (logo estatal), e sim o fato de que a "dívida pública" atual teria sido contraída em benefício da classe exploradora capitalista à custa da classe explorada. Trata -se, pois, de uma falsa crítica sob o enfoque de uma falsa moral.
É necessária uma crítica genuína e radical do privilégio iníquo do Estado de se endividar à custa de quem trabalha, assim como de muitos outros privilégios e da própria instituição estatal em si mesma. A alternativa é a progressiva estatização de toda a cultura e o sufocamento da própria civilização. Isto já aconteceu antes.