Liberdade e virtude: drogas não podem ser liberadas
Ubiratan Jorge Iorio (*)
Mídia Sem Máscara, 19/02/2004
I - PARTE
I. INTRODUÇÃO
A economia é apenas um dos elementos do complexo sistema que abrange o campo das atividades humanas. De fato, este último é formado pela integração de três grandes macro-sistemas: o econômico, o político e o ético-moral-cultural. Como diz textualmente João Paulo II, na encíclica Centesimus Annus, de 1991: “se ela (a economia) for absolutizada, se a produção e o consumo das coisas acabar por ocupar o centro da vida social, tornando-se o único valor verdadeiro da sociedade, não subordinado a nenhum outro, a causa (do envenenamento das sociedades) terá de ser procurada não tanto no próprio sistema econômico, quanto no fato de que todo o sistema sócio-cultural, ignorando a dimensão ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção dos bens e dos serviços” .
É importante chamarmos a atenção para o fato, às vezes pouco percebido, de que os atos econômicos praticados no mundo real podem ser morais e imorais, enquanto a teoria econômica, entendida como um conjunto de conhecimentos teóricos, é amoral. Atos econômicos são escolhas e, portanto, dependem de uma série de condicionantes. Diante da escolha entre, digamos, presentear um amigo no Natal com um livro sobre a vida de um santo ou um livro pornográfico, a ciência econômica não tem nada a dizer. No entanto, sabemos que, pelo aprendizado dos princípios morais, podemos dotar nossa escolha de um sentido mais profundo. Somos livres, no sentido exterior, para escolher entre um e outro presente, mas o que importa é sermos livres interiormente para fazermos a mesma escolha e dotá-la de um significado mais profundo.
Na pessoa humana, há dois tipos de liberdade. O primeiro é uma liberdade que se vê ou exterior, em que dizemos ser alguém livre quando pode fazer o que sua vontade desejar, sem empecilhos, quando pode ir e vir, quando pode opinar, torcer por um determinado clube de futebol, etc. A imensa maioria das pessoas define isto simplesmente como liberdade, por serem estas as partes que se vêem. Mas a outra liberdade, a que não se vê ou interior, é mais importante, sob o ponto de vista moral.
A liberdade interior é a liberdade da nossa consciência, pois os impedimentos que enfrenta não estão fora, mas dentro. Uma pessoa é livre interiormente quando pode guiar-se pela luz da sua consciência, sem obstáculos interiores que a impeçam de agir dessa forma. Os obstáculos interiores da liberdade são a ignorância e a fraqueza, pois aquele que não sabe o que tem que fazer só tem a liberdade de errar, nunca a de acertar e aquele que é fraco termina deixando que a desarrumação dos seus sentimentos ou o medo do que “vão dizer” lhe roubem a liberdade, embora muitas vezes não seja nem capaz de perceber isso.
Tanto a ignorância quanto a fraqueza apagam a voz da consciência, deixando-a às escuras. De fato, não pode decidir bem quem não tem conhecimento ou base para decidir, o que explica porque as consciências deformadas ou com pouca formação moral sejam incapazes de acertar, bem como de dar demonstrações de liberdade. Por sua vez, quem mostra uma fraqueza, tal como uma paixão desordenada pelos jogos de azar, não consegue decidir bem sobre o que deve fazer cada dia, porque essa paixão tomará a maior parte do seu tempo, assim como quem é preguiçoso não consegue enfrentar as suas obrigações, deixa-as passar, engana-se a si mesmo e esquece-as, ou quem se deixa influenciar pelo que os outros poderão vir a dizer de seus atos torna-se incapaz de qualquer ação que possa ser criticada, mesmo que essa ação seja moralmente correta. Nenhuma dessas pessoas é realmente livre, pois nenhuma delas possui a liberdade de agir bem, apenas a de agir mal.
Portanto, para alcançar a liberdade interior, é preciso vencer a ignorância e as manifestações de fraqueza, para que a consciência funcione bem, para que descubra a verdade e seja capaz de estabelecer uma ordem entre os direitos e os deveres.
“Liberdade Situada”
Os ensinamentos morais consistem em preceitos negativos, do tipo “não faças isto e aquilo” e em recomendações positivas, como “amarás a Deus sobre todas as coisas e ao teu próximo como a ti mesmo”. Os negativos constituem-se no princípio mínimo da moral, mas os positivos não podem ser cumpridos de uma só vez, são mais objetivos, projetos para toda a vida. Por isso, a moral não se resume apenas a respeitar uma série de proibições, que são o seu limite mínimo, mas também não pode exigir que codifiquemos tudo o que é bom e tudo o que é mau, pois, para isso, temos a nossa consciência. A moral apenas nos indica algo como um portão, que separa o que está fora e o que está dentro. Cada pessoa humana está situada no mundo ou, como na célebre expressão do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, “eu sou eu e minhas circunstâncias”. São essas circunstâncias que integram nossa moral e situam a nossa liberdade.
Mas nossa liberdade não é absoluta, pois, quando chegamos a este mundo, já o encontramos, com suas leis, coisas, pessoas e tudo o mais; apenas viemos ocupar nosso lugar entre elas. Assim, nossa liberdade é condicionada por tudo o que existia antes de nós ou, como o Juan Luís Lorda, citando Zubiri, afirma, é uma liberdade situada. Estamos limitados por nossa natureza, por nossas habilidades ou talentos, inteligência, inclinações e debilidades, estamos condicionados por nossas origens étnicas e geográficas, por nosso ambiente de trabalho e pelas pessoas com quem convivemos. Segue que não podemos construir a vida à margem de todos esses condicionantes: eles são o que são e como são e pronto.
Por isso, é uma utopia pensar em uma liberdade sem restrições, pois não há ninguém que possa desfrutar dessa condição; todos têm condicionantes à sua liberdade, uns mais, outros menos e devemos encarar essas limitações como as regras do jogo da vida.
Os Talentos
Cada um de nós recebe uma dada quantidade de talentos, de inteligência e de habilidades e tem a vida inteira para negociar com esses dons, a fim de prestar deles conta, um dia, a quem no-los entregou. Desses talentos todos, o maior, sem dúvida, é nossa própria vida, um tempo finito e curto perante a eternidade, em que se desenvolve o nosso ser sobre a terra, juntamente com todos os demais talentos e com a fortuna.
Assim, passamos toda a nossa vida fazendo escolhas e é preciso fazê-las no momento oportuno, porque o tempo voa. Essas escolhas são de natureza moral, econômica e política e podem ser boas ou más: Hitler exterminou milhões de judeus, Sabin salvou milhões de crianças da paralisia infantil, Debussy compôs de maneira genial, Lênin matou ou mandou matar milhares de pessoas, Madre Teresa dedicou sua vida aos pobres, Enrico Caruso cantou esplendidamente, Mussolini arrastou a Itália, berço da civilização, para o precipício, Adenauer soergueu a Alemanha, Fidel Castro manda fuzilar quem discorda de suas idéias ditatoriais... Na economia, as escolhas visam a maior eficiência; no terreno moral, devem estar voltadas para a boa administração dos talentos recebidos do Criador.
II. LIBERDADE E VIRTUDE
Em nossos tempos, é comum encontrarmos pessoas que defendam ou a liberdade ou a virtude, pois esses dois importantes atributos costumam ser apresentados como antitéticos, a existência de um inviabilizando a presença do outro. Como conseqüência dessa visão equivocada, são comuns aquelas argumentações tentando mostrar que, já que se trataria de atributos conflitantes, seria impossível buscar a maximização de ambos, o que significa que se deveria eleger um deles (ou a liberdade ou a virtude) para promover e, por conseqüência, restringir o outro. Os defensores do socialismo, por exemplo, acreditam que, restringindo a liberdade e montando-se uma pesada estrutura política, cultural e econômica baseada na centralização das escolhas, a virtude estará sendo estimulada. Entretanto, devemos tentar compreender o que querem dizer os socialistas e intervencionistas em geral quando usam as expressões liberdade e virtude.
Os diferentes conceitos de liberdade e virtude
Quando um socialista, mesmo movido pelas melhores intenções, refere-se à virtude, está, na verdade, definindo o seu conceito peculiar de virtude, derivado da idéia de igualdade absoluta na chegada, ou igualdade de resultados. Para ele, virtude é sinônimo daquilo que denomina de “justiça distributiva”. Da mesma forma, quando fala em liberdade, está (mesmo que muitos socialistas não o saibam) inteiramente submerso no conceito de liberdade positiva (ou “liberdade para”), isto é, está aceitando a tese de que os cidadãos devem ser livres para fazer apenas aquilo que lhes for permitido fazer (permitido pelo governo, obviamente). Assim, para um socialista – e para a maioria dos que se autodenominam social-democratas – o tipo de governo ideal é aquele que, mediante comandos e ordens (que Hayek chamava de thesis) interfere permanentemente na economia (taxis, para o economista austríaco), com o objetivo de repartir o bolo da riqueza nacional em partes preferencialmente iguais.
Já um liberal da tradição da Economia Personalista, quando se refere à liberdade, está falando de “liberdade de”, ou liberdade negativa, em que os indivíduos, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, devem ser livres para realizarem suas escolhas em uma economia caracterizada pela dinâmica do processo de mercado (cosmos, segundo Hayek), limitando-se o Estado a garantir os direitos individuais básicos, por intermédio de normas de justa conduta (nomos), definidas com base nos usos, costumes e tradições e fundamentadas nos valores éticos e morais aceitos pela maioria das pessoas como virtudes.
Para a tradição liberal e, em especial, para a da Economia Personalista, cada indivíduo, por definição, é um universo e deve ser livre para escolher os seus próprios objetivos, desde que suas escolhas não venham a prejudicar os direitos de terceiros. Por sua vez, em suas três encíclicas sociais, João Paulo II faz questão de enfatizar aquilo que chama de princípio de determinação da dignidade da pessoa humana. O homem foi criado para fazer o bem, mas apresenta uma inclinação (explicada pela doutrina do pecado original) para o mal, por isso precisa seguir padrões éticos aceitos pela sociedade, o que requer leis. Assim, após os estágios iniciais de nossa civilização, em que viviam isoladamente, os homens passaram a viver em sociedades, o que, dado o paradoxo definido pelas inclinações para o bem e para o mal, fez surgir a necessidade de normas gerais de justa conduta. Como estas não poderiam ser definidas por nenhuma parte interessada, surgiu o Estado, colocado acima dos interesses individuais, mas com o propósito de zelar permanentemente para que esses interesses, amparados em valores morais sólidos, fossem respeitados. Portanto, a lei – sua necessidade – é anterior à criação do Estado. E a definição do que vêm a ser valores morais sólidos não deve nunca ser atributo do sistema político, isto é, do Estado, nem do sistema econômico, ou seja, da Economia Personalista, mas sim do sistema ético-moral-cultural que, na tradição cristã, deve corresponder aos valores do Evangelho.
Não pode haver virtude onde não há liberdade
Imaginemos que um suposto governo instituísse algo como um “imposto solidariedade”, que retiraria uma parte da riqueza dos mais ricos para distribuí-la aos mais pobres (tal como em uma conhecida proposta, formulada há poucos anos, do Partido dos Trabalhadores). A própria idéia já mostra que seus autores definem virtude (solidariedade, no caso) à sua maneira. Onde estaria a virtude, se a boa ação (distribuir riqueza para os necessitados) não foi voluntária, mas antes compulsória? É mais do que evidente que não haveria virtude, não haveria solidariedade, o que existiria seria uma forma de extorsão praticada pelo Estado que, a partir de uma definição de virtude que não corresponde à tradição cristã, suprimiria a liberdade de escolha dos cidadãos, obrigando-os a destinar parte da riqueza que geraram para fins definidos pelos burocratas. Por outro lado, se alguém, livre e espontaneamente, distribui parte de seus bens para os mais necessitados, ou se um grupo de ajuda a pessoas carentes, ou um movimento pastoral da Igreja destina parte de recursos voluntariamente arrecadados para ajudar os pobres, temos aí um claro exemplo de solidariedade, que é uma virtude consagrada pela tradição judaico-cristã e não pelo Estado ou pelos pretensos intelectuais e “teólogos” que vicejam abundantemente nos partidos de esquerda.
Portanto, para que determinada ação humana possa ser classificada como de solidariedade, ou enquadrada no conceito de virtude, ela precisa, antes de qualquer outra consideração, ser voluntária. Esta é, aliás, como vimos, a definição de ação do economista austríaco Ludwig von Mises: qualquer ato voluntário, praticado na expectativa de se passar de um estado menos satisfatório para um estado mais satisfatório. Assim, se alguém resolve destinar, voluntariamente, dez por cento de sua riqueza para os pobres, pois isso o deixará mais satisfeito com sua consciência do que se não o fizer, sua atitude é, claramente, de solidariedade, é virtuosa e deve ser estimulada pelas instituições. Já se essa mesma pessoa for obrigada pelo Estado a destinar os mesmos dez por cento de sua riqueza para os necessitados, mesmo que isto não o deixe contrariado, não há aí qualquer indício de solidariedade nem de virtude, nem por parte dela nem por parte do Estado: o que há, claramente, é um vício, que é o de se tentar fazer “solidariedade” à força e, ainda por cima, com o dinheiro dos contribuintes.
Como observou com bastante clareza um dos mais proeminentes autores da Economia Personalista, o Pe. Robert Sirico, animais não podem ter comportamentos virtuosos, simplesmente porque lhes falta a faculdade da razão consciente. Apenas a capacidade de reflexão e ação proposital que os humanos possuem é que pode habilitá-los a agir virtuosamente. E o oposto é verdadeiro: ninguém pode ser acusado de agir viciosamente se não tiver capacidade de reflexão moral para efetivar as suas ações. E, ainda: “Se agir com consciência moral significa praticar alguma virtude ou vício, então deve-se pressupor a livre escolha. Liberdade, portanto, está intimamente ligada à natureza da pessoa humana, uma vez que a livre escolha depende da razão humana. Qualquer pessoa que falhe ao empregar sua capacidade de raciocinar doada por Deus está agindo abaixo de seu potencial humano.”
Portanto, não pode haver virtude onde não houver liberdade de escolha, onde não existir o direito de se fazer escolhas de natureza moral. A liberdade é condição necessária para a virtude.
(*) Ubiratan Jorge Iorio é economista formado pela UFRJ e doutor em Economia pela FGV e é atualmente diretor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. É autor, entre outros, do livro "Economia e Liberdade: a Escola Austríaca e a Economia Brasileira".