Alguns leitores — poucos, mas enfezados — acharam ruim o que escrevi sobre a necessidade de cultivar primeiro o idioma, a religião e a alta cultura para só depois esperar razoavelmente um futuro de progresso e prosperidade. Viram nisso prova do meu elitismo cruel e desumano, do meu aristocrático desprezo pela sorte dos pobres e desvalidos. Contra a minha doutrina, citaram uma abundância de frases sapientes, desde o escolástico primum vivere, deinde philosophari até o grossíssimo Bertolt Brecht: “Primeiro o meu estômago, depois a vossa moral.” Muitas coisas podem ser respondidas a essas objeções. Desde logo, se é verdade que a luta pelo sustento vem antes e a educação depois —- para raciocinar como os missivistas —- será preciso que os pais, em vez de mandar suas crianças à escola para que um dia venham a receber salários melhores que os deles, lhes recusem toda educação até que comprovem altos ganhos mediante a exibição do correspondente contracheque.
Pode-se observar também que, ao contrário da educação tecno-científica e profissional, sempre onerosa, os itens que apontei como prioritários são os de aquisição mais barata que se pode imaginar. Há um livro que os resume de uma vez, e que foi a base da educação de muitos grandes homens: a Bíblia. Quem a leia, por exemplo, na tradução do Pe. Antônio Pereira de Figueiredo, terá, juntos, a religião, os fundamentos da cultura ocidental e o idioma português num de seus momentos de maior esplendor. O meu caro Evando dos Santos, o pedreiro-educador que após espalhar bibliotecas pelo Brasil está enviando livros até para as crianças de Angola, aprendeu a ler na Bíblia, já homem feito, e —- creiam-me —- não teria se saído nada melhor se entregasse sua formação aos cuidados do Ministério da Educação, dispendiosíssima excrescência burocrática que deveria ser amputada sem perdão.
Eu próprio, meus amigos, só aprendi alguma coisa na vida porque me ocorreu a feliz idéia de virar as costas ao establishment educacional brasileiro e seguir por conta própria o programa de Mortimer J. Adler (“How to Read a Book”, hoje circulando em tradução de Luciano Trigo pela UniverCidade Editora), a auto-educação pela leitura analítica dos clássicos, que pude perfazer à base de um livro por mês, durante sete anos, com gasto bem inferior ao que faria numa dessas usinas de jumentalização em massa que o Estado chama “escolas”.
Mas, afinal, para que argumentar, se o próprio livro que recomendei já traz a resposta cabal a todas as objeções que me chegaram? Está em João, no trecho em que Jesus visita a casa de Lázaro: “Tomando Maria uma libra de bálsamo de nardo puro, de grande preço, ungiu os pés de Jesus e enxugou-os com os seus cabelos. A casa encheu-se do perfume do bálsamo. Mas Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, aquele que o havia de trair, disse: ‘Por que não se vendeu este bálsamo por trezentos denários e não se deu aos pobres?’” (12:3-5). O perfume representa os estados espirituais mais elevados, que a alma alcança por meio da prece e da meditação mística; pelo uso da língua e da alta cultura como instrumentos da religião. O simbolismo dos cabelos e dos pés é auto-evidente: no ponto mais alto da ascensão, a criatura toca a parte inferior do mundo divino que desce em seu socorro sob a forma da misericórdia. O ser humano existe somente para buscar esse encontro, a “única coisa necessária”, à qual tudo se segue por acréscimo. Nenhum povo jamais foi idiota o bastante para furtar-se a essa lei, achando que se enchesse primeiro os bolsos de dinheiro o Espírito Santo lhe seria dado por acréscimo. Nenhum povo? Bem, quase nenhum. Sei de pelo menos um que acredita exatamente nisso. Não direi qual, mas chamarei a atenção para uma lição extra contida nesse versículo: nos informa, para além de qualquer dúvida razoável, quem foi o legítimo inventor da Teologia da Libertação. Judas foi o primeiro a subjugar os fins espirituais às exigências do “social”, e teve muitos sucessores. Um deles está agora mesmo, no Palácio do Planalto, enchendo de minhocas a cabeça presidencial.
OLAVO DE CARVALHO é Filósofo, Escritor e Jornalista
Publicado em 24 de janeiro de 2004 http://oglobo.globo.com/jornal/colunas/olavo.asp