não sabe com quem fala, como disse ZPA a respeito de seu u-zine. Como todos nesse sáite.
Mais uma vez, não me espanto dos ataques ao sáite: eles são fruto de irritantes mal-entendidos. Nós, não-assinantes, quando tentamos publicar nossos textos, somos inicialmente informados que "esse texto já foi publicado".
Mauro Decca pediu-me para editar alguns textos, mas eu não tenho como alterar os textos colocados sob o nome de "Juninho".
Surpreendo-me mais como o fato da esposa de Clésio gostar do Torre de Portus Calle do que
do fato do Usina sofrer ataques. Há algum tempo
João dos Santos queixou-se de ter feito a assinatura e ter ficado uma semana a esperar sua efetivação. Sendo assim, como podemos confiar nesta assinatura, que além de tudo não nos foi informada corretamente, pegando a todos de surpresa?
Sem mais para o momento, envio abaixo um importante texto de César Benjamin sobre as novas medidas do governo Lula.
_________________________________________________
Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira
Laboratório de Políticas Públicas da UERJ e Fundação Rosa Luxemburgo
Página na internet: www.outrobrasil.net
Economia e Política Econômica
César Benjamin (com Rômulo Tavares Ribeiro)
Data do fechamento: 12 de janeiro de 2004
Tema do mês: Autonomia legal para o Banco Central: uma tragédia anunciada.
1. Em economia, três idéias marcaram o discurso do governo Lula ao longo
de 2003: (a) a adoção de uma política econômica continuísta, no início
da nova gestão, decorria da existência de uma situação de descontrole
conjuntural, logo apelidada de herança maldita; (b) essa política,
meramente tática, prepararia as condições para uma virada posterior na
direção das mudanças coerentes com a história do PT e reclamadas pela
população brasileira; (c) passado um ano de governo, comemora-se agora o
êxito das escolhas feitas: o descontrole teria dado lugar a uma fase de
tranqüilidade que antecede a retomada do crescimento em 2004.
Infelizmente, são falsas todas essas linhas de argumentação, e a virada,
que agora se anuncia, aponta para um aprofundamento do modelo
neoliberal, com o anúncio de uma medida de que trataremos em detalhes na
análise deste mês: a concessão de autonomia legal ao Banco Central.
Vamos por partes, começando pela herança maldita, uma expressão
misteriosa, cheia de metafísica, que se difundiu entre militantes e
simpatizantes do PT muito mais por produzir conforto psicológico do que
por esclarecer os processos reais.
2. Apesar de todas as inconsistências e fragilidades da economia
brasileira denunciadas há muitos anos pela oposição , em dezembro de
2002, quando Lula se preparava para assumir, não havia nenhum
descontrole macroeconômico, nem do ponto de vista das contas externas
nem da trajetória prevista para a inflação, os dois indicadores mais
sensíveis e mais citados pelos que sustentam essa idéia. Leda Paulani,
da Universidade de São Paulo, demonstrou isso, com simplicidade e
competência, no artigo Brasil delivery publicado no livro A economia
política da mudança, organizado por João Antônio de Paula (Belo
Horizonte, Editora Autêntica, 2003). Vale a pena revisitar seus argumentos.
Quanto ao risco de inadimplência externa, Paulani mostrou que em
dezembro de 2002 [último mês do governo de Fernando Henrique], do ponto
de vista das condições necessárias para honrar os compromissos externos,
a situação estava equacionada. (...) A balança comercial vinha
apresentando resultados absolutamente impressionantes, superando em
cerca de 50% as previsões feitas pelo próprio governo. Do ponto de vista
da performance futura das contas externas, em dezembro de 2002 as
expectativas eram muito melhores do que as existentes, por exemplo, um
ano antes. (...) Considerando conjuntamente, de um lado, o comportamento
do nível de reservas e, de outro, as boas perspectivas da balança
comercial já claramente perceptíveis no final de 2002, e considerando-se
além disso que já havia sido assinado o acordo com o FMI, o que
permitiria enfrentar qualquer tempestade inesperada, fica muito pouco
plausível a versão oficial de que as drásticas medidas monetárias e
fiscais tomadas no início da gestão Lula teriam sido necessárias porque
o Brasil estava quebrado.
No front das contas externas, em vez de uma herança maldita, Lula na
verdade recebeu um dote, nas palavras de João Sayad, pois o ajuste da
taxa de câmbio e o salto no saldo comercial foram feitos ainda na gestão
de Fernando Henrique.
Na seqüência de seu artigo, Leda Paulani também desmontou a argumentação
governista sobre o risco de descontrole inflacionário: Como defender
tão implausível diagnóstico [o de que havia pressões inflacionárias por
excesso de demanda] com a economia estagnada e o desemprego batendo
recordes atrás de recordes? De onde poderia estar vindo tamanha pressão
por reajustes de preços [em dezembro de 2002], de modo a comprometer a
estabilidade monetária do país? (...) Não existia nenhum indicador de
que o processo inflacionário estivesse fora de controle. Evidentemente a
elevação súbita [em meados de 2002] de um dos preços mais importantes da
economia [a taxa de câmbio] teria conseqüências do ponto de vista do
comportamento dos índices de preço, mas era perfeitamente possível saber
a extensão do estrago. Ele estava limitado a uma reconfiguração da
estrutura de preços relativos. (...) Não existia, por absoluta falta de
oxigênio na economia, nenhuma possibilidade de essa reconfiguração de
preços transmutar-se num descontrole monetário e/ou desencadear
mecanismos informais de indexação que ressuscitassem a inflação
inercial. (...) O IPCA do IBGE, por exemplo, que chega a apresentar um
crescimento de 3,02% em novembro de 2002, cai para 2,1% em dezembro
desse ano e 2,2% em janeiro de 2003, reduzindo-se sustentadamente a
partir de então para atingir 0,22% em maio.
Assim, Paulani mostra que o repique inflacionário, causado pela
desvalorização cambial, já estava perdendo força em dezembro de 2002.
Lula assumiu o governo com uma inflação ainda baixa e em queda.
3. Avaliemos agora a segunda idéia do raciocínio governista, a de que o
descontrole em fins de 2002 deu lugar à tranqüilidade em fins de
2003. Selecionamos um amplo conjunto de indicadores relevantes, de modo
a comparar a situação brasileira nesses dois momentos. Vamos a eles.
(a) Taxa de inflação em doze meses (IPCA): dezembro de 2002, 12,5%;
dezembro de 2003, 9,5%.
(b) Taxa de crescimento do PIB em doze meses: dezembro de 2002, 1,5%;
dezembro de 2003, 0,1% (estimado).
(c) Taxa de juros (Selic): dezembro de 2002, 22,8%; dezembro de 2003, 16,3%.
(d) Taxa de desemprego aberto (IBGE): dezembro de 2002, 10,5%; dezembro
de 2003, 12,8%.
(e) Renda média dos trabalhadores: dezembro de 2002, R$ 940,00; dezembro
de 2003, R$ 820,00 (queda de cerca de 15%).
(f) Juros pagos pelo setor público como proporção do PIB: ano de 2002,
8,09%; ano de 2003, 9,77%.
(g) Déficit nominal do setor público como proporção do PIB: ano de 2002,
3,08%; ano de 2003, 4,71%.
(h) Dívida líquida do setor público: dezembro de 2002, R$ 881,1 bilhões;
novembro de 2003, R$ 905,3 bilhões.
(i) Relação dívida / PIB: dezembro de 2002, 56,5%; dezembro de 2003, 57,2%.
(j) Saldo comercial: dezembro de 2002, US$ 13,4 bilhões; dezembro de
2003, US$ 24,0 bilhões.
(l) Conta corrente do balanço de pagamentos (resultado em doze meses
como percentual do PIB): dezembro de 2002, - 1,7%; dezembro de 2003, + 0,4%.
(m) Reservas internacionais líquidas: dezembro de 2002, US$ 16,4
bilhões; dezembro de 2003, US$ 17,3 bilhões.
(n) Avaliação de risco-país (J.P. Morgan): dezembro de 2002, 1.446
pontos; dezembro de 2003, 468 pontos.
Os número falam por si. Alguns indicadores melhoram (principalmente
aqueles mais relevantes para as operações do capital financeiro), outros
pioram (principalmente aqueles que mostram a situação da economia real e
as condições de vida da população), no contexto de uma situação
qualitativamente semelhante. A maior parte das variações ocorre na
margem. Aparecem variações positivas significativas apenas no saldo
comercial e na avaliação de risco-país. No primeiro caso, deve-se levar
em conta que o saldo realizado em 2003 foi em larga medida preparado em
2002, pois os contratos e as decisões de produzir antecedem em pelo
menos seis a nove meses o embarque; além disso, parte desse saldo
decorre da profunda recessão causada pelo governo Lula em 2003
(crescimento de 0,1% do PIB), que empurrou para fora parte da produção
nacional, sem mercado no próprio país, e inibiu as importações.
Quanto à espetacular queda do risco Brasil, amplamente divulgada pelos
meios de comunicação, ela foi obtida em um contexto internacional de
queda generalizada das avaliações de risco em todos os países por causa
do excesso de liquidez no mercado financeiro internacional. Nada teve a
ver com uma situação específica daqui. A posição relativa do Brasil no
ranking das aplicações de risco permaneceu praticamente inalterada:
passamos da quarta para a quinta posição entre os países considerados
mais arriscados (ultrapassamos apenas a Nigéria). É bom lembrar, aliás,
que esse indicador mede apenas o grau de confiança do sistema financeiro
internacional na vontade e na capacidade de um país pagar suas dívidas.
Nada tem a ver com o bem-estar, presente ou futuro, da população do
próprio país.
4. Os indicadores mostram que não havia descontrole macroeconômico no
final de 2002 e não há tranqüilidade no final de 2003. Estamos na mesma
pasmaceira. Por que, então, autoridades, analistas e meios de
comunicação projetam uma situação qualitativamente nova para 2004, com
uma retomada sustentada do crescimento? Além de compreensíveis
necessidades de marketing, diante de uma sociedade que começa a
cansar-se, não vemos nenhuma razão. É certo que depois de um período de
baixo desempenho acumula-se capacidade ociosa e torna-se fácil obter
algum crescimento na margem, mesmo sem investimentos novos
significativos. Prossegue-se assim a trajetória que os economistas
chamam de stop and go, que admite soluços de crescimento mas conduz a
resultados medíocres no médio e longo prazos. Sob esse ponto de vista,
2004 pode de fato apresentar alguma melhora, até mesmo por efeito
estatístico, pois a base de comparação (o ano de 2003) será
especialmente deprimida. Três fatores, porém, pesam em sentido contrário.
O primeiro: em 2003, com a contração dos investimentos do governo e a
queda na renda das famílias, o crescimento das exportações foi o
principal componente de demanda autônoma na economia brasileira,
permitindo manter o crescimento do PIB em torno de zero em um contexto
de forte contração da produção voltada para o mercado interno. Não se
espera a repetição das mesmas taxas de crescimento das exportações em
2004, admitindo-se, ao contrário, uma queda no saldo comercial.
O segundo: a pequena recuperação observada no final de 2003 deveu-se, em
parte, à recomposição de mecanismos de crédito ao consumo privado, pela
entrada em vigor de medidas de incentivo a setores específicos (como
eletrodomésticos e automóveis), a facilitação do refinanciamento de
dívidas e o crédito amparado em desconto em folha, todos claramente de
fôlego curto, insuficientes para produzir uma retomada sustentada da
demanda.
O terceiro fator negativo a ser ponderado é o reconhecimento, por parte
do PT, de que a política econômica adotada em 2003 não era de fato uma
esperteza tática, destinada a driblar dificuldades herdadas. Ao
contrário. Tanto as declarações das autoridades econômicas como as ações
objetivas afirmam a continuidade. Assim, a economia brasileira
permanecerá em 2004 convivendo com o viés fortemente contracionista,
expresso por exemplo na manutenção de elevadíssimos superávits primários
e na aprovação de um Orçamento da União o primeiro elaborado pela
equipe de Lula ainda mais apertado que o anterior. Os gastos com juros
e amortizações da dívida pública federal custarão ao Tesouro R$ 182
bilhões em 2004, engolindo 29,5% do Orçamento. Separadas as
transferências obrigatórias a estados e municípios, a reserva de
contingência e os recursos destinados ao superávit primário (cujo piso
foi aumentado de R$ 65 bilhões para R$ 71,5 bilhões), sobram R$ 230
bilhões para gastos em custeio e investimento, contra R$ 250 bilhões no
Orçamento anterior.
A desproporção dos gastos com serviços de dívidas, em relação aos demais
gastos do Estado, é muito chocante. Um mês de juros e amortizações
corresponde ao dispêndio anual com atenção hospitalar e ambulatorial no
âmbito de todo o Sistema Único de Saúde. Dez dias correspondem a todos
os recursos alocados no Programa Bolsa Família, que unificou as ações
sociais do governo. Uma semana supera os gastos anuais previstos com o
Programa Brasil Escolarizado. Um dia cobre com sobras todo o gasto
previsto para a construção de habitações populares. Uma hora supera a
dotação anual para conservação de monumentos históricos. Finalmente, um
minuto de juros e amortização das dívidas corresponde à alocação anual
sim, anual de recursos com a política de direitos humanos. É assim o
primeiro Orçamento preparado pelo governo do PT.
5. Entre as diversas manifestações de que a adesão do PT ao
neoliberalismo é doutrinária, e não circunstancial, destaca-se a
promessa de que o governo encaminhará em 2004 ao Congresso o projeto que
prevê a concessão de autonomia legal ao Banco Central (BC). Em carta ao
FMI, datada de 21 de novembro de 2003, o ministro Antônio Palocci afirma
que o governo continua empenhado em que seja aprovada uma lei para dar
autonomia ao Banco Central, assim que haja espaço na agenda do Congresso.
Esta é a mais importante reivindicação estratégica do setor financeiro,
e não foi aceita nem mesmo pelos dois Fernandos o Collor e o Henrique
responsáveis pela implantação do neoliberalismo no Brasil. Se levada
adiante por Lula, será o ápice da operação-desmonte do Estado nacional,
abrindo uma situação política qualitativamente nova no país, pois
dificilmente se pode imaginar que a necessária retomada de controle
sobre o BC possa ser feita fora de um contexto de ruptura institucional.
A gravidade do passo que o governo atual pretende dar fez com que o
autor deste texto [César Benjamin] publicasse um artigo sobre o tema
antes mesmo da posse do presidente Lula, quando surgiram as primeiras
notícias sobre essa possível concessão (Tomara que dê tudo certo, em
Caros Amigos de novembro de 2002). Vale a pena revisitar alguns trechos
desse artigo, mesmo um pouco longos, para em seguida retomar outros
aspectos da questão, tal como está colocada hoje.
6. O artigo, resumidamente, dizia o seguinte: Passada a ressaca das
comemorações, faço aos dirigentes do PT um apelo para que não cometam um
erro fatal. Refiro-me às notícias de que eles concordariam, ou até mesmo
patrocinariam, uma alteração constitucional que abriria caminho para uma
regulamentação parcial e casuística do artigo 192 da Constituição. O
objetivo explícito dessa manobra seria permitir a edição de uma lei
complementar que concederia autonomia legal ao Banco Central. A crer no
que sai na imprensa, dirigentes do peso de José Dirceu, Guido Mantega e
Antônio Palocci vêm se posicionando a favor da medida, considerada por
este último como uma sinalização importante para o mercado [financeiro]
da seriedade com que o PT pretende conduzir a economia.
Entre todos os erros que podem vir a ser cometidos nessa fase de
transição, este é, de longe, o mais importante, por seu alcance e por
seu caráter irreversível. Precisa ser evitado, nem que seja por simples
prudência, para ampliar o debate e amadurecer melhor a questão. Conceder
autonomia legal ao Banco Central de forma açodada, em vez de seriedade,
será uma demonstração de incompetência e fraqueza.
A linha de argumentação dos que defendem essa medida é a seguinte: o
Banco Central deve trabalhar com metas de inflação definidas com
participação do governo, mas suas decisões operacionais devem ser
preservadas de qualquer interferência política indevida; por isso, seus
dirigentes passariam a receber um mandato de quatro anos, sancionado
pelo Senado, tornando-se independentes do próprio presidente da
República. O argumento, à primeira vista, é apenas simplório. Pois
poderia ser usado para defender autonomia legal para todos os órgãos
governamentais. Afinal, qual deles não deve ter metas? Qual não deve ser
preservado de interferências indevidas? A educação, a saúde, a
previdência, o Incra, o BNDES, as empresas de energia e as demais em
qual desses setores a politicagem deve ser tolerada? Em nenhum, é claro.
Logo, a mesma lógica deveria conduzir à proposta de que, depois de
definidas as metas setoriais, todos os ministérios, órgãos e empresas
públicas fossem declarados entes autônomos, por força de lei, restando
ao presidente recolher-se a uma casa de praia, para não mais interferir
na racionalidade (supostamente) técnica que a partir de então presidiria
as decisões dos gestores...
Isso não é sério. Por trás do caráter aparentemente simplório da
proposta, nela só há esperteza. É o Banco Central quem estabelece as
regras de operação do sistema financeiro, gerencia as dívidas interna e
externa, cuida das reservas internacionais, fixa a taxa de juros, conduz
a política de câmbio, permite a remessa de recursos para o exterior e
emite (ou deixa de emitir) dinheiro, entre outras atribuições. Tudo isso
define quais serão as taxas de crescimento esperado da economia, o nível
do emprego, o montante dos gastos públicos e o volume de crédito
disponível para o setor produtivo real. Ou seja, o Banco Central executa
o núcleo duro da política econômica. Talvez por isso, todos os
presidentes brasileiros, incluindo Fernando Henrique, recusaram-se a
aceitar esse tipo de autonomia que agora se pretende estabelecer.
O PT tem todas as condições legais, políticas e morais para não
ceder. Não custa lembrar que foi a bancada federal do PT quem tentou
regulamentar o artigo 192, apresentando na época adequada um bom projeto
de lei que, entre outras coisas, pretendia submeter as decisões do Banco
Central (considerado independente demais!) a uma avaliação periódica por
parte de instâncias representativas da sociedade. Exatamente o oposto do
que se defende agora. O projeto está parado na Câmara há onze anos,
barrado pela maioria conservadora. Por que aceitar que se faça agora, em
sentido oposto à posição histórica do PT, uma regulamentação que os
conservadores vêm se recusando a fazer há catorze anos, desde a
promulgação da Constituição de 1988?
O que está em jogo não é pouco. Em primeiro lugar, como disse acima,
está a capacidade controlar a operação do sistema financeiro. Bancos são
empresas especiais, que por definição não podem honrar seus compromissos
em nenhum momento específico. Pois, em uma ponta, recebem depósitos que,
em tese, seus clientes podem sacar a qualquer momento; na outra ponta,
usam esses depósitos para conceder créditos, que só podem ser cobrados
depois de cumpridos os prazos contratuais. Assim, os bancos estão sempre
em desequilíbrio. Interessa à sociedade que eles corram esse risco, pois
as operações de crédito são essenciais ao desenvolvimento econômico. Por
outro lado, também interessa à sociedade que eles sejam empreendimentos
seguros, pois uma crise bancária sempre é muito grave. Para compensar o
risco inerente à sua atividade e garantir solidez ao sistema, os bancos
ao contrário das empresas comuns podem recorrer a um emprestador de
última instância, que lhes dá cobertura. É o Banco Central, a quem, como
vimos, a sociedade concede a especialíssima prerrogativa de fabricar
dinheiro.
Ora, se o Banco Central (um órgão público) tem a obrigação de garantir
a solvência do sistema bancário privado, usando para isso a faculdade de
emitir a moeda nacional, é claro que ele precisa deter poderosos
mecanismos de acompanhamento e controle de todo o sistema. Por isso,
também desse ponto de vista os bancos não são empresas comuns. Estão
sujeitos a regras muito mais estritas que aquelas vigentes para os
demais setores da economia. No Brasil e em outros países, os bancos
centrais dispõem de instrumentos bastante fortes de regulação do sistema
financeiro, que aqui vêm sendo subutilizados. É por isso, por exemplo,
que os bancos especulam abertamente contra a moeda nacional, com toda
impunidade, e ganham bilhões. Aceitar a autonomia legal do Banco
Central, nas condições atuais, é radicalizar essa situação. É legalizar
a criação, para os bancos, de uma espécie de território liberado, que
o governo brasileiro desistiu de submeter às suas próprias decisões. Em
situação de crise situação mais do que provável , o presidente da
República estará legalmente privado de poderes para intervir, alterando
a política monetária e cambial, se assim achar necessário.
A luta pelo controle do Banco Central é a mais importante arena atual
do debate sobre a mudança do modelo econômico. (...) O novo governo
precisa libertar-se das camisas-de-força, e não criar novas. Em vez de
tornar-se autônomo, o Banco Central precisará trabalhar de forma
intimamente articulada com o Tesouro Nacional, ambos perseguindo metas
combinadas não só para a inflação e o câmbio, mas também para o emprego,
a plena utilização da capacidade produtiva do país e o volume de crédito
ofertado à economia real. Essa ação articulada deve assegurar que a
economia seja irrigada com os fluxos monetários e financeiros
necessários para conduzi-la, com relativa estabilidade de preços, a uma
posição cada vez mais próxima do pleno emprego, ou seja, ao nível em que
a produção efetivamente realizada coincida com o uso do potencial
produtivo existente. (...) Se a operação montada para promover a
autonomia legal do Banco Central se completar, estará eliminada a
possibilidade de mudar o modelo nessa direção, ou em outra qualquer,
igualmente progressista. Neste caso, o governo Lula não se constituirá
plenamente. Todo o esforço para viabilizá-lo política e eleitoralmente
culminará em uma espécie de Batalha de Itararé a grande batalha da
história do Brasil, que não chegou a ocorrer. Esperemos que Lula não
aceite ser o presidente que foi, sem ter sido. Tomara que tudo dê certo.
7. A evolução dos fatos, desde a publicação desse artigo, é preocupante.
Já no poder o PT alterou a redação do artigo 192 da Constituição, de
modo a tornar possível o envio do projeto de lei de autonomia para o
Banco Central. Logo depois, em carta datada de 28 de maio, o ministro
Antônio Palocci prestava contas ao Fundo Monetário Internacional (FMI):
A emenda constitucional que facilita a regulamentação do sistema
financeiro um passo para a formalização da autonomia do Banco Central
já foi aprovada (ver www.fazenda.gov.br). No fim de 2003, como vimos,
concluída a tramitação legislativa das reformas previdenciária e
tributária, o ministro anunciou o segundo passo, com tramitação da nova
lei para o BC sendo prevista para 2004. Em seguida, seria empossada uma
diretoria autônoma no BC, com mandatos fixos de quatro anos, não
coincidentes com os mandatos dos presidentes da República. Como sempre,
essa operação recebeu um rótulo pomposo, cuidadosamente escolhido para
impedir o debate: Lei de Responsabilidade Monetária. A mensagem é clara:
só os irresponsáveis podem se opor a uma lei com este nome.
8. A irresponsabilidade do governo do PT nas suas relações com o Banco
Central vem de longe. Começa na nomeação de Henrique Meirelles para a
presidência da instituição. Anunciada por Lula em Washington ainda em
2002, no fim de uma reunião com representantes do governo
norte-americano, a decisão foi justificada pela necessidade de manter a
credibilidade do Brasil junto ao sistema financeiro internacional.
Meirelles, como se sabe, era presidente mundial do Banco de Boston
(EUA), e ao assumir seu novo cargo em Brasília continuou a receber
recebe até hoje 750 mil dólares anuais de seus empregadores
norte-americanos, que não por acaso mantêm em carteira o segundo maior
estoque de títulos da dívida externa brasileira (o primeiro está sob
controle do Citibank). Quando Meirelles assumiu o seu novo cargo, os
títulos brasileiros valiam menos da metade de seu valor de face. Um ano
depois, graças à sua atuação no BC, o valor desses títulos mais do que
dobrou, propiciando ganhos extraordinários para os seus detentores,
entre os quais, como vimos, destaca-se o Banco de Boston, que paga o
salário do próprio Meirelles. Não há no mundo nenhum caso em que o
presidente do Banco Central de um país é assalariado de um banco privado
estrangeiro e leva adiante, sem grandes contestações, uma política que
resulta na valorização dos ativos desse banco que o remunera. Em países
sérios, isso seria impensável. Derrubaria governos e levaria gente
importante à cadeia. No Brasil, em outras épocas, o PT pediria uma CPI.
Mas, no governo, em busca de credibilidade, o PT preferiu aceitar
reduzir o Brasil à condição de uma república de bananas.
É a este presidente de Banco Central e à sua equipe notoriamente
ligada, pela sua trajetória profissional, aos interesses do sistema
financeiro que agora se quer garantir mandato fixo, tornando o BC um
poder autônomo, desvinculado do poder político na Nação. A justificativa
para isso, dada pelo ministro Guido Mantega em entrevista à revista
Teoria e Debate (número 53, março-maio de 2003), é quase surrealista:
Havendo autonomia há uma perda de comando, uma diminuição do grau de
ingerência do Executivo sobre o Banco Central e, portanto, sobre a
política monetária. A vantagem é que ela dá ao mercado [financeiro] uma
garantia de que a inflação tende a ser mais baixa, pois não poderá
acontecer uma situação de o presidente da República pegar o telefone,
ligar para o Banco Central e dizer eu tenho eleição no ano que vem,
abaixa aí as taxas de juros; não importa que tenha mais inflação; eu
quero crescimento já, quero aumento de emprego.
Se Guido Mantega não existisse seria preciso inventá-lo. Pois, como
sempre, sua fala ingênua explicita a questão-chave que outros preferem
dissimular: o Brasil pode ou não pode autogovernar-se? As potências
coloniais ontem organizadas em impérios formais, hoje em torno do
sistema financeiro internacional sempre negaram esse direito aos povos
do Terceiro Mundo. É o que também nos diz agora o ministro do PT. Ele
aceita alegremente a representação ideológica de um hipotético
presidente do Brasil construído à imagem e semelhança dos piores
estereótipos colonialistas: irresponsável, aventureiro, bufão quem
sabe mulato (ou nordestino), com certeza monoglota , que faz bobagens
por telefone, numa republiqueta situada abaixo do Equador, sem
instituições, procedimentos e regras. Na outra face dessa representação
está implícita a imagem de um banqueiro asséptico, responsável, racional
certamente limpinho, branco e bem falante do inglês , que justamente
por isso precisa isolar-se das irracionalidades dessa gente tropical que
o cerca. Não passa pela cabeça do nosso ministro que o contrário possa
ocorrer: o presidente do Brasil pode ser um patriota, politicamente
responsável perante a Nação, com sua ação sujeita às regras
institucionais da democracia; o banqueiro, politicamente irresponsável,
pode ter outros interesses a defender.
Ao dizer essas bobagens, Guido Mantega se posiciona à direita do
ultra-conservador Milton Friedman. Em Capitalismo e liberdade (Nova
Cultural, 1985, p. 53-54), ele diz o seguinte: O Banco Central
Independente (BCI) é um mau sistema para os que acreditam na liberdade
justamente porque dá a poucos homens um poder tão grande sem que seja
exercido sobre eles nenhum controle efetivo por parte do corpo político.
Este é um argumento-chave, de natureza política, contra um BCI. Mas é
também um mau sistema, mesmo para os que põem a segurança acima da
liberdade. Erros não podem ser evitados em sistemas que dispensam a
responsabilidade mas dão amplos poderes a um pequeno grupo de homens,
tornando as ações políticas altamente dependentes de acidentes de
personalidade. Este é um argumento-chave, de natureza técnica, contra a
existência de um BCI.
9. Qualquer um pode entender o que está em jogo: dada autonomia ao BC,
os governantes brasileiros, eleitos pelo voto direto de milhões de
pessoas, deixam de comandar a mais importante instituição formuladora e
executora da política econômica no país. Os governos ficarão
condicionados a implementar suas políticas econômicas de forma a atingir
os resultados macroeconômicos desejados pelos mercados financeiros, diz
Eduardo Maldonado Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A
questão central diz respeito, portanto, ao equilíbrio de poderes no
interior da sociedade brasileira. Banco Central autônomo representa mais
poder para o sistema financeiro e menos poder para o Estado nacional
visto como um todo. Representa menos, muito menos, democracia. Ao
contrário de Mantega, nós queremos exatamente que os presidentes da
República possam ouvir as demandas do povo por emprego e as demandas da
Nação por desenvolvimento, e tenham instrumentos de política econômica
capazes de responder a elas.
Na defesa da proposta há os argumentos risíveis e os mais sofisticados.
Alguns ressaltam, por exemplo, que falam em autonomia e não em
independência, pois o governo definiria a meta de inflação a ser
perseguida em cada período (um simples número), outorgando ao BC
liberdade para persegui-la. Evitaria assim a subordinação do BC,
apresentada de forma caricatural na entrevista de Guido Mantega. João
Sicsú, da Universidade federal do Rio de Janeiro, responde: Os
argumentos que contrapõem independência e subordinação são meros
bodes. Nenhum economista sensato os defende. A alternativa à autonomia
do BC é uma ação coordenada deste com o governo central, ação que teria
o objetivo de auxiliar o Executivo a manter a estabilidade monetária e
buscar o pleno emprego.
Um segundo argumento risível é o que associa BC independente e atração
de capitais internacionais. A China não preenche esse requisito (e
realiza extensos controles sobre a movimentação de capitais), mas
recebe, de longe, a maior fatia de investimentos externo no mundo. A
Argentina adotou uma versão radicalizada de BC independente (o chamado
currency board) e sofreu uma gigantesca fuga de capitais.
10. Os argumentos mais sofisticados favoráveis à autonomia do BC podem
ser divididos em dois grupos: aqueles que lançam mão das experiências
norte-americana e européia, e dizem pretender nos aproximar delas, e
aqueles que buscam razões na teoria econômica. Comecemos pelos
primeiros, descrevendo resumidamente as arquiteturas institucionais que
prevalecem nos Estados Unidos, no Brasil e na Europa. Ficará clara a
falácia do primeiro grupo de argumentos.
Nos Estados Unidos, o Banco Central (chamado Sistema de Reserva Federal,
ou FED) é formalmente independente, mas essa independência é definida em
lei de uma forma que o força a operar todo o tempo, necessariamente, em
articulação com o Departamento do Tesouro (correspondente ao nosso
Ministério da Fazenda). O arranjo é muito inteligente. O FED é obrigado
por lei a perseguir simultaneamente três objetivos: utilização plena da
capacidade produtiva instalada, pleno emprego da força de trabalho e
estabilidade de preços. O Tesouro, por sua vez, também por lei, é
obrigado a cumprir o Orçamento da União votado pelo Congresso e aprovado
pelo presidente da República; para isso, por meio de contas bancárias,
recolhe tributos da sociedade e paga as despesas previstas no Orçamento.
Se, por qualquer motivo, as despesas orçamentárias superam em algum
momento o recolhimento de tributos, as contas ficam negativas, mas
permanecem sendo movimentadas normalmente. Nesses casos, bastante
comuns, o Tesouro estará operando em déficit, automaticamente coberto
por meio de uma conta de compensação alimentada pelo FED. As ordens de
pagamento do Tesouro serão sacadas pelo público (entrando em circulação
sob a forma de expansão de moeda fiduciária) ou recolhidas às reservas
bancárias (se permanecerem depositadas nas contas dos seus
destinatários). O aumento das reservas pressionará para baixo a taxa
básica de juros. Agindo em estrita observância daqueles três objetivos
acima definidos crescimento, emprego e inflação cabe então ao FED
decidir se prefere enxugar essa liquidez aumentada (para evitar pressões
inflacionárias, por exemplo) ou sancioná-la (para estimular a demanda
agregada, por exemplo). Ele faz isso manejando a compra e venda de
títulos no open market: vende títulos para recolher dinheiro, ou compra
títulos para injetar dinheiro. Assim, através do open, o FED regula a
liquidez da economia norte-americana, e com ela a taxa de juros, de modo
a buscar aqueles três objetivos, sempre dando cobertura à execução, pelo
Tesouro, do Orçamento aprovado pelos poderes democráticos da República
a Presidência e o Congresso.
O FED cujos comitês decisórios são muito abertos à participação da
sociedade só é independente para tomar certas decisões operacionais,
mas, como se vê, o arcabouço legal e institucional em que ele opera
disciplina essa independência e o força a atuar de forma intimamente
articulada com o Tesouro na busca de objetivos que interessam à
sociedade. Esse arranjo permite que ambas as instituições atuem de forma
permanentemente anticíclica. Em períodos de baixa atividade econômica (e
baixo recolhimento de impostos) o Tesouro tende a incorrer em déficit,
as reservas bancárias tendem a aumentar, e as taxas de juros, operadas
pelo FED, tendem a baixar. E vice-versa.
Os dois segredos principais do arranjo norte-americano são esses:
objetivos múltiplos para o BC (crescimento da produção, pleno emprego e
estabilidade de preços) e alta coordenação entre a ação do BC e do
Tesouro para garantir a execução do Orçamento da União e possibilitar a
adoção de políticas flexíveis, potencialmente favoráveis ao crescimento.
11. O caso brasileiro é o exato oposto. Embora o nosso Banco Central não
seja formalmente independente (ao contrário do FED!), ele já é
independente de fato (ao contrário do FED!!) e atua de forma
permanentemente pró-cíclica (ao contrário do FED!!!), de modo a impedir
a execução do Orçamento da União (ao contrário do FED!!!!) e tendo como
objetivo formal apenas a estabilidade de preços (ao contrário do FED!!!!!).
Falamos em objetivo formal, pois a preocupação fundamental do BC
brasileiro é garantir condições para rolar as dívidas financeiras do
Estado. Aqui, tudo começa na definição das taxas de juros que o sistema
financeiro considere adequadas para aceitar essa rolagem. Como a conta
de capital do balanço de pagamentos está aberta (decisão estapafúrdia
que data do governo Collor), os aplicadores financeiros ameaçam fugir a
qualquer momento para o dólar. Assim, podem impor ao Estado brasileiro
um alto prêmio para aceitar permanecer com seus ativos denominados em
reais. Este prêmio são taxas de juros suficientemente atrativas, que
sejam um múltiplo da taxa básica paga no sistema internacional aos
ativos denominados em dólar. Para suportar essas altas taxas, que
realimentam a própria dívida, o Estado brasileiro necessita retirar do
seu Orçamento vultosos recursos. Assim, parte significativa dos tributos
cobrados pelo Estado à sociedade se esteriliza na forma do famoso
superávit primário (R$ 70 bilhões em 2003), que comprime todas as demais
despesas previstas. O Orçamento da União, aprovado pelos poderes
democráticos da República, nunca pode ser cumprido, nem longinquamente.
É esquartejado na boca do caixa para caber nos recursos que sobram
depois que o Estado paga aqueles juros acordados entre o BC e o sistema
financeiro. Para completar a lambança, o BC brasileiro (também ao
contrário do FED!!!!!!) está proibido de financiar o Tesouro, que por
isso não tem a possibilidade de operar em déficit.
Resultado: o Brasil não pode fazer políticas econômicas anticíclicas e
funciona sem Orçamento. Ao longo do ano, estabelece-se uma permanente
briga de foice para definir quais gastos serão de fato efetuados pelo
poder público e quais serão contingenciados. Dono da chave do cofre, o
Ministério da Fazenda apequena e subordina os demais ministérios, e o
Executivo apequena e subordina o Legislativo. Tudo depende de decisões
casuísticas, que não são transparentes, não obedecem a um projeto e
abrem os espaços para a perpetuação do fisiologismo político. Nesse
contexto, a democracia brasileira continua a ser o mesmo tremendo
equívoco apontado por Sérgio Buarque de Hollanda há setenta anos, pois
os poderes democráticos da República não controlam, de fato, os gastos
públicos.
Na prática, o Estado brasileiro já é comandado por um Banco Central
independente, opaco, intimamente ligado ao sistema financeiro,
permanentemente contracionista, inimigo do crescimento e socialmente
irresponsável. Trata-se de um problema, não de uma solução. A
arquitetura institucional da nossa política econômica está virada de
ponta-cabeça, com o rabo (o sistema financeiro, através do Banco
Central) abanando o cachorro (o Estado nacional e a economia real). A
autonomia do BC brasileiro consagrará em lei essa aberração, tornando-a
praticamente irreversível. Não há nada, nessa operação, que nos aproxime
do inteligente modus operandi do Estado norte-americano. Ocorrerá
justamente o contrário.
12. O caso europeu, como dissemos, é diferente dos dois analisados
acima. Lá o Banco Central é de fato independente, tanto do ponto de
vista legal como real. A situação, que não analisaremos em detalhes
aqui, explica-se por estar a Europa em um estágio intermediário de
construção de um Estado continental, tendo como ponto de partida Estados
nacionais. Já há um Banco Central Europeu, mas os Tesouros (ou seja, os
ministérios da Fazenda) ainda permanecem submetidos aos Estados
nacionais constituintes da União Européia. Essa assimetria impede a
adequada coordenação de políticas monetárias e fiscais. Sem essa
coordenação (que, como vimos, o Estado norte-americano realiza com
grande competência), a Europa também perdeu a capacidade de realizar
políticas anticíclicas eficazes e deixou-se prender na armadilha do
baixo crescimento. A própria Alemanha já percebeu a necessidade de
livrar-se desse arranjo, mas todos os movimentos da União Européia, por
sua própria natureza, são especialmente complexos e lentos. A situação é
tão diferente da brasileira que não vale a pena analisá-la detidamente.
Mesmo assim, na comparação com o Brasil, uma coisa chama a atenção. O
Tratado de Maastrich permite que os Estados da União Européia operem com
déficit (ou seja, folga orçamentária) de até 3% do PIB; mesmo assim,
hoje todos o consideram draconiano demais, contracionista demais;
provavelmente ele será revisto para ampliar essa folga. Já o acordo do
Brasil com o FMI, feito pelo governo Lula, estabeleceu como piso um
superávit (ou seja, aperto orçamentário) de 5% do PIB. Assim, o Estado
brasileiro tornou-se o maior inimigo do crescimento brasileiro. As metas
Maastrich, para nós, seriam consideradas nababescas. Nem os chamados
radicais do PT ousariam propô-las.
13. Vamos olhar agora, rapidamente, para os argumentos teóricos
favoráveis à autonomia do BC. Eles pressupõem que o crescimento
econômico não é influenciado por variáveis monetárias e que os agentes
agem segundo as chamadas expectativas racionais, sendo por isso
capazes de antecipar (e neutralizar) as ações das autoridades
econômicas. Deixada livre de interferências, a economia de mercado
tenderia a um ponto de equilíbrio em que oferta e demanda globais se
encontrariam, ponto correspondente à plena utilização dos fatores de
produção disponíveis. Nessa concepção, políticas monetárias
expansionistas não têm efeito a longo prazo sobre as variáveis reais da
economia produto e emprego , mas apenas sobre as variáveis nominais,
como o nível de preços. Daí a idéia de subordinar a ação do BC, apenas,
a metas de inflação, isolando-o das pressões da sociedade por
crescimento e emprego.
Estabelece-se então a seguinte seqüência conceitual: (a) o único
parâmetro relevante para a ação do BC é a estabilidade de preços; (b) o
único instrumento relevante para obter a estabilidade de preços é o
manejo da taxa de juros; (c) as taxas de juros, por sua vez, devem ser
usadas tendo em vista, apenas, o controle dos preços, sem levar em conta
seu impacto sobre as demais variáveis da economia nacional. O melhor
instrumento para operar dessa forma é, de fato, um Banco Central
independente, que realize políticas monetárias sempre com viés
contracionistas, definidas unilateralmente, de modo a retirar graus de
liberdade das demais autoridades econômicas. Um dos defensores desse
caminho, o economista norte-americano ultraliberal C. Goodhart, deixa
claro que o objetivo é institucionalizar orçamentos governamentais
enxutos e políticas monetárias que persigam objetivos apenas nominais.
Problemas de crescimento e emprego desaparecem do horizonte. São
deixados para o mercado.
Note-se que, se a justificativa teórica para um BC autônomo é tão
conservadora, essa medida só tem sentido se servir para perpetuar no
comando da instituição diretorias igualmente conservadoras. Não teria
sentido lógico instituir a autonomia do BC para entregá-lo em seguida a
um grupo de economistas progressistas, que defenda a coordenação entre
as políticas fiscal e monetária, bem como a adoção de metas de emprego e
crescimento, pois esses economistas, por coerência, precisariam fazer
logo o movimento inverso, reintegrando a ação do BC à ação do governo
como um todo. O debate doutrinário, portanto, esconde opções políticas
claras. Um BC autônomo será sempre um bastião da direita. Que bastião!
14. Todas as afirmações teóricas feitas acima sempre foram contestadas
pela maioria dos economistas inclusive muitos conservadores e são
politicamente orientadas para fazer prevalecer, em qualquer
circunstância, os interesses do sistema financeiro sobre os interesses
da sociedade. É fácil ver que as diferentes políticas monetárias não são
neutras. A riqueza está distribuída em diversas formas de ativos, cuja
rentabilidade relativa é alterada por essas políticas. Isso conduz a
economia real a assumir diferentes configurações. Dependendo dos
resultados dessas políticas, lembram Marco Crocco e Frederico Jayme Jr,
da Universidade Federal de Minas Gerais, expresso na rentabilidade
comparada da posse de cada um desses ativos, podem existir situações nas
quais os capitalistas prefiram valorizar sua riqueza em ativos cuja
ampliação não implica a geração de emprego, como é o caso dos ativos
financeiros. Ou seja, a política monetária tem o poder de permitir que a
valorização do capital ocorra no chamado circuito financeiro e não no
circuito produtivo. (...) As políticas monetárias podem,
indefinidamente, possibilitar aos capitalistas a ampliação de sua
riqueza pela demanda de ativos cuja oferta não implica a contratação de
mão-de-obra. Esta é a lógica do equilíbrio com desemprego, descrita por
Keynes. Aceitar que a política monetária possa afetar permanentemente o
nível de atividade econômica implica aceitar que é necessária a
coordenação entre essa política e a política fiscal.
Podemos concluir dizendo que a estabilidade de preços é um dos
parâmetros relevantes para a ação do BC, que o manejo das taxas de juros
é um dos instrumentos para obtê-la (pois há inflações, como a
brasileira, que não são causadas por pressão de demanda) e que,
portanto, o uso desse instrumento deve ser calibrado com outros e levar
em conta as demais variáveis relevantes da economia nacional. Nem o BC
pode, sozinho, controlar inflação de custos e inflação inercial sem
agravar de forma intolerável a recessão e o desemprego, nem a atividade
econômica pode recuperar-se sem uma política ativa de expansão da moeda
e do crédito pelo BC, lembra José Carlos de Assis.
É clara a necessidade de coordenar políticas monetária, cambial e
fiscal, todas elas subordinadas a metas de desempenho econômico e social
definidas pelo poder político da Nação. Por isso o Banco Central não
pode ser autônomo. Dizemos mais: ele nunca é autônomo. Subtraído do
controle do Estado, ele passa a gravitar, automaticamente, na órbita do
sistema financeiro nacional e internacional, especialmente em uma
economia tão vulnerável como a brasileira. Impedir que isso seja fixado
em lei, tornando-se a partir daí um padrão impermeável à decisão
política da sociedade, é o mais importante foco de resistência, hoje, ao
avanço do neoliberalismo no Brasil.
15. Entre os economistas não vinculados ao mercado financeiro há uma
esmagadora opinião talvez uma unanimidade contrária à autonomia
legal do BC. Ela inclui nomes de grande prestígio, a começar por Celso
Furtado, que chamou essa operação de privatização do Banco Central.
Se, à revelia dessa opinião qualificada, o governo enviar o projeto ao
Congresso, estará confirmando um padrão de comportamento já observado
antes. As reivindicações de mudanças em favor dos interesses populares
caem sempre na vala comum dos pedidos de paciência, recheados de
metáforas e conselhos de auto-ajuda, pois o presidente Lula reafirma
nesses casos que as mudanças têm de ser feitas devagar, com muita
cautela e responsabilidade, sem açodamento. A caneta de Lula, nesses
casos, é pesada, lenta imóvel, a bem dizer. Já as mudanças em favor
das elites, mesmo radicais, controversas e profundas como a reforma da
Previdência, a liberação dos transgênicos, a anistia aos devedores do
INSS, a lei de falências , são decididas com inusitadas rapidez e
agilidade. A caneta de Lula, nesses casos, torna-se leve, ágil, nervosa,
infinitamente submissa. O governo do PT sabe que os poderosos não têm a
paciência dos humildes nem se deixam embalar com historinhas de futebol.
No caso, porém, da entrega do Banco Central ao sistema financeiro, de
papel passado, todas as fronteiras da decência terão sido ultrapassadas.
É de alta traição aos interesses da Nação que se trata.
PS. Este texto estava pronto quando a edição de 12 de janeiro do jornal
O Estado de S. Paulo saiu com a seguinte manchete de primeira página:
País recebe pressão pela autonomia do Banco Central. Diz a matéria: O
presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, foi questionado ontem,
na Suíça, por representantes dos maiores bancos do mundo sobre quando a
independência da instituição será, de fato, uma realidade. Nada mais é
preciso dizer. Está claro a quem tal decisão interessa.