povo boliviano foi manobrado e incendiado pelo deputado Evo Morales, líder dos plantadores de coca, e chamado a atentar contra as instituições do país.
22.Out.2003 Pelo noticiário e comentários gerais sobre a renúncia do presidente da Bolívia, tem-se a impressão de que ele caiu de maduro. Parece até que Gonzalo Sánches de Lozada enjoou de administrar aquele abacaxi e se mandou para Miami. O que o presidente boliviano sofreu foi um golpe branco, comandado pelo líder dos plantadores de coca, mas não se ouviu uma só voz legalista – alguém viu a ONU por aí? – defendendo o governo legítimo daquele país.
O que havia de fato contra Lozada? Nenhum escândalo de corrupção devidamente comprovado, nada sequer comparável ao que se descobriu contra Fujimori e Menem, por exemplo. Ah, sim, havia a injustiça social. Mas ela não estava lá um ano atrás, quando Lozada foi democraticamente eleito? Os especialistas dizem que a população indígena não agüenta mais a concentração de renda nas mãos dos brancos. E há um ano, agüentava?
Aí apareceu essa história de Guerra do Gás. Francamente, há muito tempo a imprensa não embarcava tão alegremente num pretexto tão patético. Alguém acredita que milhares de bolivianos saíram às ruas dispostos a tudo, com derramamento de sangue e centenas de mortes, porque Lozada decidiu vender gás natural aos Estados Unidos através do Chile? É porque a perda para os chilenos da saída para o Pacífico jamais foi digerida pelos bolivianos, disseram analistas, entre outras explicações fantásticas. Ou seja, o público foi convidado a compreender o terremoto político na Bolívia como manifestação de grêmio estudantil, onde a causa da revolta das massas pode ser um aumento de 30 centavos no preço do hambúrguer da cantina.
O povo boliviano foi manobrado e incendiado pelo deputado Evo Morales, líder dos plantadores de coca, e chamado a atentar contra as instituições do país. Na Venezuela, como o presidente Hugo Chávez é antiamericano, em manifestações bem menos sangrentas se enxerga logo o dedo do “Wall Street Journal” ou da CNN, e se ouve prontamente o grito dos legalistas. O governo Lula, por exemplo, garantiu suprimento de óleo a Chávez para ajudá-lo a enfrentar a greve geral. E o que terá feito pelo governo legítimo da Bolívia? Nada, nem um sinal de solidariedade econômica, nem um ensaio de apoio político. O que se ouviu do governo do PT foram apenas declarações genéricas em favor da paz (o que aliás já está se tornando sua especialidade).
É realmente curiosa a naturalidade com que a comunidade internacional deu bye bye a Gonzalo Sánches de Lozada, em tom de já vai tarde. “A normalidade retorna à Bolívia”, diziam as manchetes do dia seguinte à deposição do presidente. Que normalidade, cara pálida? Um governo democraticamente eleito é posto para correr por causa de uma estória mal contada de gasoduto, e está tudo bem? É difícil de acreditar, mas tudo indica que a diplomacia internacional, encalhada num maniqueísmo anti-Bush, fez corpo mole diante da afinidade de Lozada com o governo americano.
Não houve revolta popular na Bolívia, o país não deu um passo em direção à justiça social, nem emergiu um movimento libertário que aprendeu a endurecer com ternura. A maravilhosa depuração política que a comunidade latino-americana parece ver na Bolívia é um golpe, que não ousa dizer seu nome. O deputado índio Evo Morales representa os cocaleros, mas diz que só defende a coca para fins medicinais. Ah, bom. Mas pelo volume da colheita de coca que vem hoje dos seus protegidos, será preciso que hospitais do mundo inteiro tratem todos os seus doentes com a droga boliviana para dar vazão à produção.
E de onde vem todo o poder desse deputado, que diz que muitos de seus companheiros estão se preparando para um conflito armado, caso não consigam levar os índios ao poder? De onde vem o dinheiro para tanta arma e arregimentação de gente? Um doce para quem adivinhar.
Evo Morales já disse que quer ser presidente, e que vai ser presidente. Se apresenta como força renovadora – a tal que parece encantar a nova esquerda latina –, é amante dos plebiscitos e diz coisas como “mais importante do que os partidos é o controle social do povo”. O bom entendedor já viu onde é que isso vai parar. Pois é esse narco-populismo que se faz representar há dois anos no Fórum Social de Porto Alegre e que, lá, ganhou a simpatia de Luiz Inácio Lula da Silva.
O governo interino da Bolívia já está fazendo a sua parte, com o ministério apolítico do presidente Carlos Mesa. A receita não poderia estar melhor encaminhada: política sem políticos, partidos em segundo plano, instituições à mercê de barricadas. O continente que se cansou das ditaduras militares engendradas pelos Estados Unidos prepara-se candidamente para legitimar sua primeira democracia do pó.