Qualquer sujeito que se apresente como "historiador marxista" já se denuncia, no ato, como alguém que primeiro adivinhou o futuro e depois tratou de recortar a história segundo a fantasia escolhida. O próprio Karl Marx tinha 26 anos quando, em 1844, anunciou que o capítulo seguinte da novela humana seria o socialismo. Com essa idade, ele não podia conhecer história o bastante para saber do que estava falando, mesmo porque, segundo revelam a correspondência com seu pai e alguns poemas juvenis, havia gastado menos tempo em estudos do que em farras dispendiosas e na freqüentação de ritos satânicos que encheram sua cabecinha de assombrações em vez de erudição histórica.
Para suprir essa deficiência, passou o resto da vida tentando fingir que não estava vendo coisas e sim defendendo uma tese muito científica. Quando os fatos não lhe davam razão, trocava-os. Por exemplo, uma das teses essenciais do "socialismo científico" era que o capitalismo empobreceria a classe trabalhadora, mas na Inglaterra, então o único país com estatísticas confiáveis, havia acontecido exatamente o contrário. Karl Marx sabia disso, pois possuía a coleção completa dos relatórios econômicos anuais do Parlamento, cuja exatidão ele próprio louvava. Então ele friamente suprimiu os dados recentes e colocou em seu lugar os de 30 anos antes, para dar a impressão de que a situação dos trabalhadores ingleses havia piorado. Mas o marxismo não é charlatanismo só nos detalhes. Sua estrutura básica é a de uma fraude completa. Se suprimirmos da história marxista o pressuposto divinatório da futura apropriação proletária dos meios de produção, já não terá sentido desenhar as sociedades anteriores pela sua diferença em relação ao socialismo, isto é, pela propriedade privada dos meios de produção.
Outras características e outras diferenças adquirirão relevo, mostrando um passado histórico bem diverso daquele que Marx descreve. Um estudioso honesto teria a obrigação de conceber essas hipóteses alternativas e confrontá-las com a do seu querido socialismo. Mas Marx foge dessa precaução científica elementar e, dando o futuro como conhecido a priori, trata de recortar o passado para fazê-lo culminar não somente no advento do socialismo, mas também, por uma feliz coincidência, na pessoa e obra de Karl Marx. Entendem por que o psiquiatra Joseph Gabel encontrou uma rigorosa correspondência entre esse modo de raciocinar e a lógica interna de um delírio paranóico? A estrutura do tempo no marxismo é a de um círculo fechado no qual o futuro contingente se torna premissa categórica e o passado uma variável incerta que a profecia se incumbe de determinar.
É verdade que Marx não tem nisso originalidade alguma, pois Hegel já havia construído ficção similar, com a diferença de que nela o esquema culminava em Hegel e não em Marx, assim como o de Comte viria a culminar em Comte e o de Nietzsche em Nietzsche. O cérebro afetado seriamente pela influência de qualquer desses profetas dificilmente readquire a capacidade de enxergar as coisas como são. O professor Boris Fausto, por exemplo, ao denunciar na Folha de S. Paulo do dia 14 a ruindade da ditadura cubana, fala como se fosse o primeiro a descobri-la e não um dos últimos a repetir, sem o mínimo reconhecimento às fontes, as verdades duras que a direita sempre afirmou e a esquerda sempre negou.
Ele critica a intelectualidade esquerdista por continuar a apoiar o regime fidelista hoje em dia, mas não por ter ajudado a construí-lo durante quatro décadas com doses maciças de aplauso, dinheiro, mentiras e omissões - como se a longa cumplicidade com o crime tornasse o último delator da fila um tipo humano superior aos opositores que desde a primeira hora tentaram deter a ação do criminoso. Essa inversão da escala moral não surge ao acaso: reflete a inversão marxista do tempo. Os pioneiros da resistência, afinal, representavam o capitalismo, o passado, ao passo que os desertores oportunistas de um regime moribundo personificam ainda o socialismo, o futuro. Quando esse futuro chegar, uma palavrinha tardia e fútil de José Saramago, de Mercedes Sosa ou do próprio Boris Fausto terá valido mais que o testemunho de um Armando Valladares sedimentado por 20 anos de prisão e torturas. Embaralhar a ordem dos fatos e da moral para que essa esperança se realize é o que um historiador marxista chama de "história".
*Olavo de Carvalho é professor de filosofia e diretor do Seminário de Filosofia do Centro Universitário da Cidade (RJ) e autor de "O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras" www.olavodecarvalho.org"