"Le livre noir du communisme" (Edições Robert Laffont, Paris, 1997), escrito por seis historiadores europeus, com acesso a arquivos soviéticos recém-abertos, é uma espécie de enciclopédia da violência do comunismo. O chamado "socialismo real" foi uma tragédia de dimensões planetárias, superior em abrangência e intensidade ao seu êmulo totalitário do entreguerras - o nazifascismo.
Ao contrário da repressão episódica e acidental das ditaduras latino-americanas, a violência comunista se tornou um instrumento político-ideológico, fazendo parte da rotina de governo. Essa sistematização do terror não é rara na história humana, tendo repontado na Revolução Francesa do século 18 na fase violenta do jacobinismo, na "industrialização do extermínio judaico" pelos nazistas, e - confesso-o com pudor - na inquisição da Igreja Católica, que durante séculos queimava os corpos para purificar as almas.
O "Livre noir" me veio às mãos num momento oportuno em que, reaberto na mídia e no Congresso o debate sobre a violência de nossos "anos de chumbo" nas décadas de 60 e 70, me pusera a reler o "Brasil Nunca Mais", editado em 1985 pela Arquidiocese de São Paulo.
Comparados os dois, verifica-se que o Brasil não ultrapassou o abecedário da violência, palco que foi de um miniconflito da Guerra Fria, enquanto que o "Livre noir" é um tratado ecumênico sobre as depravações ínsitas do comunismo, este sem dúvida o experimento mais sangrento de toda a história humana.
Produziu quase 100 milhões de vítimas, em vários continentes, raças e culturas, indicando que a violência comunista não foi mera aberração da psique eslava, mas, sim, algo diabolicamente inerente à engenharia social marxista, que, querendo reformar o homem pela força, transforma os dissidentes primeiro em inimigos e, depois, em vítimas.
A aritmética macabra do comunismo assim se classifica por ordem de grandeza: China (65 milhões de mortos); União Soviética (20 milhões); Coréia do Norte (2 milhões); Camboja (2 milhões); África (1,7 milhão, distribuído entre Etiópia, Angola e Moçambique); Afeganistão (1,5 milhão); Vietnã (1 milhão); Leste Europeu (1 milhão); América Latina (150 mil entre Cuba, Nicarágua e Peru); movimento comunista internacional e partidos comunistas no poder (10 mil).
O comunismo fabricou três dos maiores carniceiros da espécie humana - Lênin, Stálin e Mao Tse-tung. Lênin foi o iniciador do terror soviético. Enquanto os czares russos em quase um século (1825 a 1917) executaram 3.747 pessoas, Lênin superou esse recorde em apenas quatro meses após a revolução de outubro de 1917.
Alguns líderes do Terceiro Mundo figuram com distinção nessa galeria de assassinos. Em termos de percentagem da população, o campeão absoluto foi Pol Pot, que exterminou em 3,5 anos um quarto da população do Camboja.
Fidel Castro, por sua vez, é o campeão absoluto da "exclusão social", pois 2,2 milhões de pessoas, equivalentes a 20% da população da ilha, tiveram de fugir. Juntamente com o Vietnã, Fidel criou uma nova espécie de refugiado, o "boat people" - ou seja, os "balseros", milhares dos quais naufragaram, engordando os tubarões do Caribe.
A vasta maioria dos países comunistas é culpada dos três crimes definidos no artigo 6º do Estatuto de Nuremberg: crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
A discussão brasileira sobre os nossos "anos de chumbo" raramente situa as coisas no contexto internacional da Guerra Fria, a qual alcançou seu apogeu nos anos 60 e 70, provocando um "refluxo autoritário" no Terceiro Mundo. Houve intervenções militares no Brasil e na Bolívia em 1964, na Argentina em 1966, no Peru em 1968, no Equador em 1972, e no Uruguai em 1973.
Fenômeno idêntico ocorreu em outros continentes. Os militares coreanos subiram ao governo em 1961 e adquiriram poderes ditatoriais em 1973. Houve golpes militares na Indonésia em 1965, na Grécia em 1967 e, nesse mesmo ano, o presidente Marcos impunha a lei marcial nas Filipinas, e Indira Gandhi declarava um "regime de emergência". Em Taiwan e Cingapura houve autoritarismo civil sob um partido dominante.
O grande mérito dos regimes democráticos é preservar os direitos humanos, estigmatizando qualquer iniciativa de violá-los. Mas por lamentáveis que sejam as violências e torturas denunciadas no "Brasil, Nunca Mais", elas empalidecem perto das brutalidades do comunismo cubano, minudenciadas no "Livre noir".
Comparados ao carniceiro profissional do Caribe, os militares brasileiros parecem escoteiros destreinados apartando um conflito de subúrbio... Enquanto Fidel fuzilou entre 15 mil e 17 mil pessoas (sendo 10 mil só na década de 60), o número de mortos e desaparecidos no Brasil, entre 1964 e 1979, a julgar pelos pedidos de indenização, seria em torno de 288, segundo a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, e de 224 casos comprovados, segundo a Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça. O Brasil perde de longe nessa aritmética macabra.
Em 1978, quando em nosso Congresso já se discutia a "Lei da Anistia", havia em Cuba entre 15 mil e 20 mil prisioneiros políticos, número que declinou para cerca de 12 mil em 1986. No ano passado, 38 anos depois da Revolução de Sierra Maestra, ainda havia, segundo a Anistia Internacional, entre 980 e 2.500 prisioneiros políticos na ilha. Em matéria de prisões e torturas, a tecnologia cubana era altamente sofisticada, havendo "ratoneras", "gavetas" e "tostadoras". Registre-se um traço de inventividade tecnológica - a tortura "merdácea", pela imersão de prisioneiros na merda.
Não houve prisões brasileiras comparáveis a La Cabaña (onde ainda em 1982 houve 100 fuzilamentos), Boniato, Kilo 5,5 ou Pinar Del Rio. Com estranha incongruência, artistas e intelectuais e políticos que denunciam a tortura brasileira visitam Cuba e chegam mesmo a tecer homenagens líricas a Fidel e a seu algoz-adjunto Che Guevara.
Este, como procurador-geral, foi comandante da prisão La Cabaña, onde, nos primeiros meses da revolução, ocorreram 120 fuzilamentos (dos 550 confessados por Fidel Castro), inclusive as execuções de Jesus Carreras, guerrilheiro contra a ditadura batista, e de Sori Marin, ex-ministro da agricultura de Fidel. Note-se que Che foi o inventor dos "campos de trabalho coletivos", na península de Guanaha, versão cubana dos "gulags soviéticos" e dos "campos de reeducação" do Vietnã.
A repressão comunista tem características particularmente selvagens. A responsabilidade é "coletiva", atingindo não apenas as pessoas, mas as famílias. É habitual o recurso a trabalhos forçados, em campos de concentração. Não há separação carcerária, ou mesmo judicial, entre criminosos comuns e políticos. Em Cuba, criou-se um instituto original, o da "periculosidade pré-delitual", podendo a pessoa ser presa por mera suspeita das autoridades, independentemente de fatos ou ações.
Causa-me infinda perplexidade, na mídia internacional e em nosso discurso político local, a "angelização" de Fidel e Guevara e a "satanização" de Pinochet. Isso só pode resultar de ignorância factual ou de safadeza ideológica.
Pinochet foi ditador por 17 anos; Fidel está no poder há 39 anos. Pinochet promoveu a abertura econômica e iniciou a redemocratização do país, retirando-se após derrotado em plebiscito e em eleições democráticas como senador vitalício (solução que, se imitada em Cuba, facilitaria o fim do embargo).
Fidel considera uma obscenidade a alternância no poder, preferindo submeter a nação cubana à miséria e à fome, para se manter ditador. Pinochet deixou a economia chilena numa trajetória de crescimento sustentado de 6,5% ao ano. Antes de Fidel, a economia cubana era a terceira em renda por habitante entre os latino-americanos e hoje caiu ao nível do Haiti e da Bolívia.
O Chile exporta capitais, enquanto Fidel foi um pensionista da União Soviética e, agora, para arranjar divisas, conta com remessas de exilados e receitas de turismo e prostituição. Em termos de violência, o número de mortos e desaparecidos no Chile foi estimado em 3.000, enquanto Fidel fuzilou 17 mil!
Apesar de fronteiras terrestres porosas, o Chile, com população comparável à de Cuba e sem os tubarões do Caribe, sofreu um êxodo de apenas 30 mil chilenos, hoje em grande parte retornados. Sob Fidel, 20% da população da ilha, ou seja, algo que nas dimensões brasileiras seria comparável à Grande São Paulo, teve de fugir.
Em suma, Pinochet submeteu-se à democracia e tem bom senso em economia. Fidel é um PhD em tirania e um analfabeto em economia. O "Livre noir" nos dá uma idéia da bestialidade de que escapamos se triunfassem os radicais de esquerda. Lembremo-nos que, em 1963, Luiz Carlos Prestes declarava desinibidamente que "nós os comunistas já estamos no governo, mas não ainda no poder".
Parece-me ingenuidade histórica imaginar que, na ausência da revolução de 1964, o Brasil manteria apenas com alguns tropeços sua normalidade democrática. A verdade é que Jango Goulart não planejara minimamente sua sucessão, gerando suspeitas de continuísmo. E estava exposto a ventos de radicalização de duas origens: a radicalização sindical, que levaria à hiperinflação, e a radicalização ideológica, pregada por Brizola e Arraes, que podia resultar em guerra civil.
É sumamente melancólico - porém não irrealista - admitir-se que, no albor dos anos 60, este grande país não tinha senão duas miseráveis opções: "anos de chumbo" ou "rios de sangue"...
(*) Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994). Este e outros artigos podem ser encontrados no novo livro de Roberto Campos, Na Virada do Milênio, ed. Topbooks, 1998.
(Extraído de http://www.oliberal.blogger.com.br/)
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O liberalismo e a pobreza
Roberto Campos
1/12/96
"Esperemos que os socialistas, que no passado adoraram o Deus da História, aprenderão suas lições. Dar-se-ão conta, afinal, que não apenas a economia de comando fracassou, mas também que o Estado social democrático assistencialista é um Deus que falhou" Deepak Lal
As esquerdas brasileiras (ou será que só restam canhotos?), mesmo após a derrota mundial do socialismo, que elas consideram apenas um sucesso mal explicado, se atribuem duas superioridades: maior decência ética e maior ternura pelos pobres. Na realidade, sucumbem a interesses do corporativismo burocrático, em detrimento das massas, e reduzem a velocidade do crescimento econômico. E este é o único remédio efetivo para a pobreza.
Um esplêndido livro recente "The political economy of poverty, equity and growth" (Clarendon Oxford Press, 1996), de autoria de dois economistas asiáticos -um indiano, Deepak Lal, e outro birmanês, H. Myint-, ambos testemunhas da ineficácia do socialismo dirigista em seus respectivos países, desmistifica ilusões sobre o socialismo e sobre seu filho dileto, o "welfare state". É uma análise filosófica, política e econômica dos sucessos e insucessos da luta contra a pobreza em 21 países (inclusive o Brasil), entre 1950 e 1985.
As conclusões são interessantes:
. O crescimento rápido sempre alivia a pobreza, independentemente dos esforços da burocracia assistencialista;
. Não há um efeito claro e certo do crescimento sobre a disparidade nos níveis de renda, podendo esta aumentar ou diminuir durante o processo de rápido crescimento. Mas a experiência dos tigres asiáticos desmente o fatalismo da chamada "Lei de Kuznets", segundo a qual a distribuição de renda pioraria inicialmente no desenvolvimento capitalista, para só melhorar depois;
. O instrumento mais eficaz para a correção da pobreza absoluta não é o Estado Interventor, fantasiado de engenheiro social benevolente, e sim o Estado Liberal (ou seja, o Estado Jardineiro).
Este libera as energias produtivas do mercado, tributa pouco e procura assistir os pobres e desvalidos por benefícios específicos para eles direcionados, preferencialmente através de entidades privadas, e não por esquemas globais de seguridade social, administrados por políticos e burocratas.
A pobreza pode assumir vários aspectos: a pobreza "estrutural", ou de massa, que até a revolução industrial parecia uma fatalidade humana; a pobreza "conjuntural", que tradicionalmente advinha de desastres climáticos ou de guerras e conflitos políticos, mas que, na civilização moderna, provém também de ciclos econômicos que provocam desemprego e recessão; e o "desvalimento", ou seja, a situação dos que não têm capacidade de trabalho por deficiências físicas ou mentais.
No tocante à questão global da pobreza, há um conflito histórico entre duas visões do mundo que se apresentam em várias formas e graus: o liberalismo e o dirigismo.
Os liberais insistem em separar duas questões que são habitualmente confundidas no debate corrente: a cura da pobreza e o igualitarismo. A extinção da pobreza absoluta é realizável e deve ser um objetivo social. O igualitarismo é utópico, e todas as tentativas de alcançá-lo geraram ineficiência ou despotismo.
Os liberais certamente lutarão pelo alívio da pobreza; mas rejeitam o igualitarismo socialista. Em outras palavras, consideram a "equidade" desejável e a "igualdade" impossível.
São várias as razões por que é fútil pretender-se, através do intervencionismo governamental, alcançar uma distribuição igualitária das rendas:
1) Deus não é socialista e distribuiu com profunda injustiça os dotes de inteligência, criatividade e diligência;
2) inexistindo normas objetivas de justiça, ou justiciadores sábios e benevolentes, torna-se perigoso tentar corrigir as injustiças divinas pela "justiça social" ditada pelo ideólogo, burocrata ou político de plantão;
3) fazer justiça social pela abolição da propriedade (solução comunista) ou pela tributação distributivista (solução socialista) redunda em tirania política e expurgos em massa, ou então, em perda de eficiência econômica (a supertributação desincentiva a criatividade e o esforço).
Donde ser melhor, como propõem os liberais, que o Estado seja mais modesto: deve buscar a extinção da pobreza absoluta sem tentar implantar o igualitarismo. Por isso os liberais não falam em "seguridade social universal" e não simpatizam com a "previdência pública compulsória". Preferem falar em "redes de segurança para os desvalidos" ou em "garantia de renda mínima" para os realmente pobres. No Brasil, a coisa é ainda mais rudimentar: a cura da inflação é prefácio e precondição da cura da pobreza.
Uma das deformações dos sistemas assistenciais desenvolvidos nas sociais democracias é aquilo que George Stigler chama de "privilégios dos diretores", isto é, a captura de benefícios pela classe média. Esta, nas sociedades industrializadas, é politicamente muito mais numerosa que os ricos e muito mais articulada que os pobres.
Cria-se assim o "Transfer State", isto é, o Estado Transferidor, de que o nosso INSS é modelo exemplar. O "Transfer State" morde os ricos pela tributação e pune os pobres com aposentadorias ridículas, desviando recursos para o bem-estar da classe média -professores, jornalistas, magistrados, militares, congressistas e burocratas, que gozam de aposentadorias precoces, desproporcionais às contribuições. São os chamados "intitulamentos políticos".
A única maneira de se evitar que o poder político da classe média puna a produtividade dos mais eficientes e explore a passividade dos pobres é substituir o sistema de previdência pública compulsória pela capitalização individual.
É o sistema de cadernetas de poupança previdenciária, onde cada cidadão depositaria sua contribuição, sabendo que os benefícios futuros disso dependem. É o sistema chileno, no qual a contribuição compulsória, anteriormente paga ao governo, é aplicada em fundos de pensão privada, não havendo assim transferências imerecidas de renda.
O governo não intervém para redistribuir rendas, limitando-se a fiscalizar o sistema e a complementar a renda daqueles que, ao fim de sua vida laboral, não recebam um mínimo vital para sua sobrevivência. O curioso é que o tão vilipendiado general Pinochet, sem alardear superioridade ética ou sensibilidade social, intuiu duas coisas fundamentais para a diminuição da pobreza -o crescimento sustentado e a correção dos abusos do "Transfer State".
Lal e Myint demonstram a precariedade das tentativas de distributivismo social em países de baixa taxa de crescimento. Durante algum tempo, Costa Rica, Sri Lanka e Uruguai foram exibidos como exemplos de países bem-sucedidos nessa conciliação. Isso durou pouco porque esses países entraram em crises fiscais, ou estagnação econômica, tendo o Uruguai tido que rever seu pesado Estado Providência a fim de absorver idéias do modelo chileno.
A cura da pobreza não depende da decadência do político, da boa vontade do burocrata ou da piedade do clérigo. Depende do crescimento econômico. E as molas clássicas do crescimento continuam sendo a poupança, a produtividade e o espírito empresarial. Priorizar a realidade humilde, em vez de entronizar a utopia fugaz, é a grande virtude do liberalismo.
Roberto Campos, 79, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
*Artigo retirado do site http://orbita.starmidia.com/pensadores_brasileiros/
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INSTITUTO LIBERAL 20 Anos Comentário do dia
Comentário do dia
Comentário do dia (7/10/2003)
Cada macaco no seu galho
Arthur Chagas Diniz (*)
Tem toda razão Dom Mauro Morelli quando fala sobre o Governo e o Fome Zero. O aguerrido bispo, notabilizado por suas campanhas em favor da nutrição infantil na Baixada Fluminense, diz que, no caso do Fome Zero, o Governo não está fazendo nada a não ser se comportar apenas como um mero promotor de mutirões sociais. Critica ainda o Governo Lula quando ele quer que os empresários sejam os responsáveis pelos movimentos sociais. ‘Empresário, diz o bispo, deve criar emprego e pagar impostos’.
Não custa lembrar que o Governo já retira da sociedade mais do que um-terço do que ela produz, a título de prestar serviços previdenciários, de saúde, de educação, segurança e justiça.
Cada macaco no seu galho . Se o empresário pagar salários e impostos e o Governo se dedicar a cumprir as tarefas sociais e parar de viajar para cafés da manhã na Argentina, as coisas vão melhorar. E - quem sabe? - vamos poder participar do espetáculo do crescimento.
(*) Presidente do Instituto Liberal
www.institutoliberal.org.br
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GUERRAS SANTAS
Olavo de Carvalho
Grande parte das culturas antigas concedia aos chefes, aos guerreiros e poderosos o direito de livrar-se, quando bem entendessem, dos fracos indesejáveis. Crianças, velhos e doentes podiam ser mortos por simples capricho de homens jovens e saudáveis que não queriam trabalhar para sustentá-los. Isso foi assim durante milênios. Foi assim no Egito, na Babilônia, no Império Romano, na China, na Arábia pré-islâmica. Foi assim entre os celtas, germanos, vikings, africanos, maias, aztecas e índios brasileiros. Foi assim quase por toda parte. O número de inocentes enterrados vivos, queimados, entregues às feras ou despedaçados em rituais sangrentos em nome dessa lei bárbara é incalculável.
É toda uma humanidade que foi eliminada do caminho dos fortes, ambiciosos e triunfantes senhores de antigamente.
O morticínio permanente só foi interrompido graças à ação de duas forças que emergiram bem tarde no cenário da História: o cristianismo, no Ocidente, o islamismo no Oriente. Antes delas, o judaísmo já conhecia a incondicionalidade do "Não matarás". Mas o judaísmo não é uma religião proselitista: os judeus, nação minoritária, limitaram-se a praticar entre si um modo de vida mais elevado e mais humano, sem poder ou pretender ensiná-lo aos povos em torno. (O budismo e o hinduismo também tiveram acesso a verdades similares, mas seu caso é especial e deixarei para analisá-lo noutra oportunidade.) Essencialmente, foi graças à moral cristã e à lei muçulmana que o universal direito à vida, revelado inicialmente aos judeus, se tornou patrimônio de todos os homens.
Não houve, ao longo da história, fato mais decisivo. Pois ele não importou somente numa extensão quantitativa. Ao transferir-se para classes de pessoas que antes não o desfrutavam, ou que o desfrutavam somente como concessão de outras pessoas, o direito à vida sofreu radical mutação qualitativa: passou de relativo a absoluto, de condicionado a incondicionado e condicionante. Tornou-se o primeiro de todos os direitos, do qual todos os demais decorrem.
Conceder ao ser humano um direito qualquer, de propriedade ou herança, por exemplo, negando-lhe ao mesmo tempo o direito de existir, é, de fato, apenas uma piada demoníaca. Mas essa piada foi o "script" verdadeiro das vidas de milhões de seres humanos.
Hoje em dia qualquer criança compreende que a prioridade do direito à vida é algo simplesmente lógico, que flui da natureza das coisas. Apóstolos dos "direitos humanos" tomam-no como uma obviedade elementar, como o pressuposto indiscutido e indiscutível dos seus discursos.
Mas poucos se lembram de que o reconhecimento dessa obviedade natural não foi natural nem óbvio. Para disseminá-lo, foi necessário vencer as resistências prodigiosamente obstinadas das culturas antigas. Monges, pregadores, santos foram trucidados por toda parte aonde levassem essa mensagem, tão evidente em si mesma quanto hostil a toda organização social fundada na precedência de outros direitos: direitos de sangue, direitos territoriais, direitos de casta. Para muitas culturas, ceder nesse ponto era abdicar de instituições, leis, privilégios milenares. Era autodestruir-se, era dissolver-se na unidade maior da cultura recém-chegada, portadora da nova lei. Muitos povos souberam adaptar-se à transição sem grandes perdas, tornando-se eles próprios porta-vozes da melhor notícia que a humanidade já havia recebido. Outros obstinaram-se na defesa de direitos imaginários. Por isso foi necessário destruir suas culturas.
A cada guerra empreendida pelos exércitos cristãos e islâmicos contra as nações que rejeitavam sua lei, foram garantidas, à custa da morte de uns milhares de soldados, as vidas de milhões de seus descendentes. A extensão dessa obra salvadora é imensurável. Jamais um bem tão fundamental foi legado a tantas gerações de seres humanos.
Por isso essas guerras foram santas. Por isso foi santa a vontade de domínio que fortaleceu mais os portadores do novo direito universal do que os defensores de costumes locais. Dos descendentes dos povos derrotados, que hoje, movidos por um saudosismo artificial e fingido, se prevalecem dos direitos recebidos dos vencedores para fazer a apologia das culturas derrotadas e condenar sua destruição como um crime inominável, a maioria, se os vencidos tivessem triunfado, simplesmente não existiria. Em algum ponto da história de suas famílias a continuidade da sua linha ancestral teria sido interrompida: sua bisavó teria sido sepultada viva, seu tetravô entregue às feras, o tetravô de seu tetravô estrangulado no berço ou largado no chão até morrer de fome -- tudo sob as bênçãos de reis, hierofantes e tradições veneráveis.
Em cada grupo de índios que aparecem gritando contra a destruição de sua cultura ancestral, uma coisa é certa: se ela não tivesse sido destruída, muitos deles não teriam vivido para ver a luz do dia.
Eu próprio, descendente de celtas e germanos, com muita probabilidade não estaria aqui escrevendo, se algum monge cristão não tivesse detido no ar o braço do sacerdote bárbaro, erguido para o sacrifício de um meu antepassado.
Por isso, alegar os "direitos humanos" como argumento para condenar a destruição de culturas que viveram de ignorá-los e desprezá-los é não apenas um contra-senso lógico, mas uma mentira existencial. Se os direitos do ser humano são primeiros e incondicionais, os direitos das culturas têm de ser, necessariamente, secundários e relativos. Para que os homens sejam iguais em direitos, é preciso que entre as culturas prevaleça não a igualdade, e sim a hierarquia que coloca no lugar mais alto aquelas que reconhecem a igualdade dos homens, a começar pela incondicionalidade do direito à vida. Entre a igualdade dos homens e a igualdade das culturas há uma incompatibilidade radical, que somente pode ser ignorada por uma ideologia autocontraditória, esquizofrênica e perversa.
Não obstante, é essa ideologia que prevalece hoje no ensino e nos meios de comunicação, induzindo crianças e jovens a revoltar-se, em nome do direito e da liberdade, contra as condições sem as quais esse direito e essa liberdade jamais teriam podido vir a existir.
Transmitir semelhante ideologia às novas gerações é cindir as inteligências em formação, cavando um abismo intransponível entre sua visão estereotipada do passado histórico e sua percepção da realidade presente. É destruir na base a possibilidade de toda consciência histórica, e, com ela, as condições de acesso à maturidade intelectual responsável.
É verdade que o discurso incriminatório contra as grandes culturas que humanizaram o planeta está na moda, que repeti-lo faz um professor brilhar ante a classe -- ou ante as câmeras -- como modelo de sujeito moderninho e de mente aberta. Mas até quando nós, pais, havemos de tolerar que a inteligência de nossas crianças seja sacrificada no altar das vaidades de professores que não sabem o que dizem?
Artigo publicado na Revista Bravo!, em novembro de 2000.
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Adam Smith e o equacionamento da doutrina liberal
Thiago Magalhães
É de vital relevância que se delineie o campo no qual se inserem as mais variadas vertentes em que se engendram a Política e a Economia - ainda que se trate de problemática de não fácil solução. Tendências ideológicas, não raro, imiscuem-se umas com as outras quando articuladas amiúde, sem o devido grau de conhecimento sobre os pensadores e suas respectivas teorias, causando inapropriada desconexão entre termos e idéias que deveriam ser correlatas.
Importou ao séc. XX debate que pode ser, destemidamente, classificado como dos mais substanciais que se travaram no campo das ciências econômicas. Os ecos do confronto de idéias que se deu entre F. A. Hayek e Lord Keynes ainda se fazem audíveis neste terceiro milênio que se inicia. Qual o papel do Estado? Quais suas funções essenciais, das quais, para o bem da sociedade, não pode a máquina estatal ausentar-se? Para as mesmas indagações, respostas diferentes tinham neoliberais, como Hayek, e social-democratas, como Keynes. Determinar, com sinceridade, qual o papel do Estado diante da coletividade acarreta, de bom grado, no delineamento do que se convencionou chamar de "Social-Democracia" - balsa flutuante na qual se prendem alguns dos esquerdistas sobreviventes do naufrágio soviético - e de "Neoliberalismo". Não é a intenção deste artigo adentrar-se no complexo cenário econômico-social no qual protagonizaram Hayek e Keynes, assunto a ser penetrado com cuidado numa outra ocasião. Pretende-se, por ora, trazer à tona idéias de outro intelectual, que, já no séc.XVIII, formulou todo o arcabouço do Liberalismo Econômico: Adam Smith. O intuito do presente texto é, destarte - expondo algumas das idéias do grande pensador supra-citado - tentar delimitar o que cabe ao Estado e ao Indivíduo dentro de uma sociedade que se auto-intitule "liberal".
Em sua obra seminal, "A Riqueza das Nações", Smith debruçou-se, no Livro V, sobre a delicada questão das obrigações do Estado - ou do Soberano - para com a sociedade e os indivíduos. Nesta seção, o autor propôs-se a suscitar quais instituições deveriam manter-se, com a devida justiça, a partir de arrecadações provindas de toda a sociedade. A conclusão sumária é simples e evidente: justo seria o Estado cobrar a coletividade - através de taxas e impostos - por aquilo que a beneficia como um todo.
É quase consenso entre os liberais que a existência da máquina estatal é necessária (as exceções encontram-se nos seguidores do anarco-capitalismo); também o é que o Estado responsabilize-se pela manutenção da segurança e da lei, haja vista ser o cumprimento das normas, devidamente institucionalizadas, supedâneo primordial do liberalismo. Lei e ordem, por isso, materializam-se apenas quando há orgão capaz de criá-las e de impô-las; essas, e não outras, seriam as mais relevantes funções do aparelho estatal, sob a ótica de qualquer pensador liberal. Quaisquer outras tarefas que este ou aquele intelectual, da linhagem liberalista ou não, delegue à máquina estatal, têm o condão de cumprir com o balizamento desejável à qualquer doutrina - e é bom que se diga: faz com que dela se espere, de antemão, aquilo o que sobre ela se deve saber - engajada em pensar a tríade Indivíduo-Sociedade-Estado. Vale ainda lembrar que o alcance dos tentáculos estatais pode servir de excelente parâmentro analítico - utilizado sobretudo por sociólogos e "Teóricos do Estado" -, sendo guia confiável para que se tenha claro quais as fronteiras existentes entre a vasta gama de propostas que idealizam concepções de sociedade.
Cabe aqui exemplo esclarecedor: não é assente, entre os liberais, que o setor educacional deva ou não estar sob tutela estatal. Roberto Campos dizia que o Ensino Básico e Fundamental deveriam ser estatizados, enquanto que ao Ensino Superior unicamente haveria de restar a iniciativa privada. Campos raciocinava sobre a situação do Brasil, na qual os alunos das universidades públicas têm, ao menos no que se refere aos cursos mais procurados, origem na classe média e classe média alta; teriam estes, dessarte, condições de arcar com os custos do aprendizado, sendo injusto que o ônus advindo desse dispêndio transbordasse sobre a sociedade, para a qual o retorno é expressa e negativamente desproporcional ao investimento. Campos ainda ressaltava que o ensino gratuito deveria ser concedido àqueles que realmente dele necessitassem - ou seja, aos que não têm meios de pagá-lo -, para os quais o Estado forneceria bolsas de estudo.
Outros liberais - mais precisamente os da secção anarco-capitalista - propugnam que todo o ensino deve partir da iniciativa privada, donde a concorrência estimularia o surgimento de boas escolas a preços acessíveis a todos os cidadãos. A existência de entidades educacionais estatais burla, segundo estes, a justa competição, como aquela que se viu, a exemplo do caso brasileiro, no ramo das Tele-Comunicações: privatizou-se todo o setor, e o resultado primeiro foi a acessibilidade de aparelhos celulares às classes de menor poder aquisitivo da sociedade.
Resta claro que, sobre o tema explanado nas linhas acima, longe se está de mostrarem-se acordes os debatedores.
E como Adam Smith concebia as funções do aparelho estatal? Quais deveriam ser, segundo ele, os "Gastos do Soberano ou do Estado"? Não se conteve o grande liberal em argüir que ao Estado apenas coubessem despesas com a Defesa da nação - interna e externa - e com a Lei e a Ordem, indo além ao enumerar diversos adendos funcionais pelos quais a máquina administrativa deveria responsabilizar-se.
Além dos já esperados gastos com a Defesa e com a Justiça, Smith sugeriu uma diversidade de responsabilidades outras que deveriam estar sob os encargos do Estado. Dentro da Parte Terceira, Capítulo Primeiro, Livro V, o pensador listou, no grupo dos "Gastos com as Obras e com as Instituições Públicas", dois outros órgãos estatais que seriam legítimos e necessários à sociedade, quais sejam, os que cuidassem da facilitação do comércio e da instrução do povo.
No que diz respeito ao primeiro tópico, dividiu as obras públicas que favorecem ao comércio em dois tipos: as destinadas a facilitar o comércio em geral e as que fomentam atividades comercias em setores específicos. Como exemplo das primeiras, citou "estradas, pontes, canais navegáveis, portos e etc". Diz ele que cabe ao Estado a construção de pontes, estradas, e todas as obras públicas que exigem gastanças extraordinárias e inalcançáveis a qualquer indivíduo ou grupo; faria-se necessária, por tal motivo, a intervenção estatal para construção de obras deste porte: "uma estrada, uma ponte, um canal navegável, por exemplo, na maioria dos casos, podem ser construídos e mantidos mediante o pagamento de um pequeno pedágio pelos veículos que os atravessam"[...]"Os gastos despendidos com a manutenção de boas estradas e comunicações beneficiam, sem dúvida, a toda sociedade e, portanto, sem injustiça, podem ser cobertos pela contribuição geral de toda a sociedade. Entretanto, esse gasto beneficia mais imediata e diretamente aqueles que viajam ou transportam mercadorias de um lugar a outro e que consomem estas mercadorias. As taxas de pedágio da Inglaterra, e as taxas denominadas peagens em outros países, impõem essa despesa exclusivamente a essas duas categorias de pessoas e, com isso, desafogam a sociedade em geral de um ônus bem considerável". O que parece é que Smith propôs sistema análogo ao das concessões: o Estado impulsiona ou mesmo autoriza a construção de obras, que, posteriormente, podem passar às mãos da iniciativa privada, momento em que apenas os usuários arcam com os gastos por ela gerados. É o que se vê, por exemplo, no atual sistema rodoviário paulista, um dos melhores do mundo. E não pensem os mais precipitados que Smith olvidou-se da real possibilidade de haver abusos de preços na cobrança das tarifas: já àquela época eram freqüentes reclamações desse tipo. Amenizaria-se o problema, consoante o raciocínio smithiano, com a criação de Tribunais que evitassem tais desrespeitos ao erário; a "sabedoria do parlamento" poderia, outrossim, apresentar propostas para corrigir os defeitos de um programa que, na mente de Smith, era dos mais justos: que paguem pelos serviços apenas aqueles que dele usufruem. O Estado atuaria com uma espécie de alavanca, retirando-se de cena após a concretização do feito, quando, menos abarrotado de tarefas, concentrar-se-ia com maior possibilidade de sucesso em suas funções precípuas.
No segundo tópico, conferente às instituições públicas capazes de fomentar o comércio em setores específicos, Smith reputou justo que os incentivos devessem partir, em especial, dos primeiros interessados, quais sejam, aqueles diretamente beneficiados pelas atividades ali realizadas. As taxas seriam recolhidas incisivamente do próprio setor e devidamente a ele revertidas, conquanto uma pequena parte do montante das arrecadações pudessem vir da receita geral.
Quanto ao setor educacional, Smith ponderou razoável que toda a sociedade partilhasse dos encargos advindos dos diversos setores que constituem o magistério, visto que toda a coletividade poderia beneficiar-se com bons professores, escolas e universidades. Porém, igualmente justo seriam que arcassem com tais gastos objetivamente aqueles à quem diretamente se direcionassem as benesses do ensino.
Como é de se aperceber, o considerado grande criador do liberalismo econômico não polpou o Estado de sobrecargas, enumerando detalhadamente uma infinidade de taxas e tarifas que deveriam advir dos esforços da sociedade como um todo. Há ainda de se notar que é deveras complicada a tarefa de delinear os alcances da tutela estatal, podendo ser esta mais ou menos abrangente, mesmo dentro da doutrina liberalista. Saliente-se, por derradeiro, que a diversidade de modelos sociológicos pode ter como berço o histórico socio-econômico de determinado agrupamento humano, dependendo do grau de desenvolvimento em que este se encontre. Toda essa coletânea de fatores acaba por tornar dificultoso o equacionamento de propostas doutrinárias; o pensamento liberal, dotado hoje de diversas variantes, não escapa ao problema, não obstante encontre na segurança e na lei seus núcleos estatais.
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O fracasso cabal do SOCIALISMO
Thiago Magalhães
"O Socialismo nunca existiu". Trata-se das mais alardeadas frases que saltam gargantas dos que se dizem de "esquerda", socialistas, comunistas, ou mesmo simpatizantes. Através dela, tentam militantes e ideólogos esquerdistas redimirem líderes socialistas da responsabilidade por aproximadamente 100 milhões de mortes que se deram por todo o planeta, dentro dos limites de regimes comunistas. Stalin e Lênin na URSS, Mao Tsé Tung na China, Pol Pot no Camboja e Fidel Castro em Cuba, só pra citar alguns ditadores. Fato é que, malgrado desgosto de maoístas, leninistas, stalinistas e fidelistas, o Socialismo existiu sim, e seu modelo autêntico é aquele que foi implantado por Lênin na URSS logo após a revolução de 1917.
Lênin foi um profundo estudioso dos escritos de Marx. Conhecedor que era da doutrina marxista, bem sabia que Marx nada de concreto havia proposto sobre modelos de concepção do aparelho estatal. O que fazer após a vitória revolucionária? Como administrar o poder advindo do controle da máquina burocrática do Estado? São estes alguns dos dilemas que Lênin teve de resolver, pois Marx não os havia solucionado.
Por óbvio, o modelo econômico-socialista-leninista nasceu arraigado com muitos dos ideais marxistas, sobretudo aqueles que denegriam o anarquismo da economia capitalista de produção. Marx acreditava piamente que uma das principais razões que faria com que o capitalismo desabasse seria a total falta de controle do sistema sobre os meios de produção, haja vista que, no modelo capitalista, os atores econômicos poderiam produzir e vender o quanto quisessem, no momento em que bem entendessem. Fazia-se necessário, na mente de Lênin, conceber sistemática econômico-política diferente desta; fundamental seria que o controle dos meios de produção se desse através de um órgão central e planejador, evitando descompassos entre demanda e oferta. Por fim: O Estado deveria substituir o mercado e a livre iniciativa. Dispensam-se profundos conhecimentos dos fatos históricos para saber que foi este o sistema que reinou na URSS pós-revolucionária. A economia foi planificada por inteiro e o controle dos meios de produção esteve, àquele época, controlado pelas mentes integrantes da gigantesca burocracia soviética. Eis, prezados senhores, o Socialismo como ele realmente o é. Socialismo e mercado, assim, anulam-se mutuamente, na medida em que a livre iniciativa para relações econômicas é elemento inerente ao mercado; se existe um órgão central e planejador que determina o quanto há de ser produzido, quais as necessidades de cada indivíduo e, conseqüentemente, o quanto devem estes consumir, não há liberdade de escolha. Não havendo liberdade de escolha, não há mercado.
Gradualmente, Lênin foi implementando o sistema planificador na URSS. As liberdades individuais e o direito à propriedade privada foram aos poucos desaparecendo, até que se alcançasse o que ficou conhecido como "Planificação Global". No auge do sistema, a burocracia soviética passou a controlar todas as relações econômicas. Tratou-se da completa substituição do indivíduo pelo Estado burocrático.
Em sua obra "O Socialismo", Ludwig Von Mises demonstrou, matematicamente, porque a economia socialista é completamente inviável. Sobre esse autor e seus comentários ao socialismo, esclarecedor é fragmento retirado de um artigo do jornal "O Indivíduo", escrito pelo economista Marcello Tostes: "Mises descobriu que a atividade econômica depende de cálculo prévio que leve em conta os preços monetários dos fatores de produção. Impossível esse cálculo, impossível a atividade econômica. Ocorre que, numa sociedade socialista, todos os fatores de produção pertencem a um único dono: o Estado. Sem propriedade privada, os fatores não são trocados e, logo, não têm preço. A escassez relativa dos fatores de produção e seus usos alternativos ficam ocultos e o planejador central, inexoravelmente, é levado a agir às cegas. O autor admitiu, única e simplesmente para argumentar, que a questão dos incentivos à produção não enfrentassem, frente à inexistência da concorrência, nenhum obstáculo, e que todos se empenhassem diligentemente em suas tarefas. Ou seja, postulou-se que a natureza humana fosse como os teóricos socialistas gostariam, e não como de fato é. Mesmo assim, na ausência de preços para os fatores de produção, o cálculo econômico é impossível e a atividade econômica torna-se caótica, vez que não se pode discernir, dentre os vários tipos de combinação de fatores, qual o mais econômico. Dado um determinado estado de conhecimento tecnológico, existem inúmeras maneiras de se empreender um projeto econômico qualquer, digamos, uma siderúrgica; mas, somente se a escassez relativa dos fatores de produção é expressa em preços monetários, faz-se possível escolher, dentre as soluções técnicas viáveis, aquela que é mais econômica, ou seja, a que representa os menores custos em relação ao preço futuro do produto final. Como nada disso é, a priori, possível numa sociedade socialista, todos os empreendimentos tocados pelo estado não passam de um gigantesco desperdício de recursos, que, mais cedo ou mais tarde, leva ao colapso econômico. A URSS usou-se do sistema de preços do mundo capitalista como referência para copiar seus métodos de produção, fazendo com que um florescente e gigantesco mercado negro suprisse, até certo ponto, as monumentais falhas do planejamento estatal. Ainda assim, a economia soviética sempre foi um caos. Funcionou, por algum tempo, graças ao uso sistemático do terror como incentivo . Mas o terror não pôde durar para sempre. Quando arrefeceu, foi-se o incentivo e a economia socialista anquilosou e pereceu rapidamente".
Não bastasse o fracasso no plano econômico, o Socialismo revelou sua ineficiência política. Por constituir modelo que tende irrefreavelmente à acentuada concentração de poderes, não há como este coadunar-se com qualquer objetivo de cunho democrático. Um governo socialista pode ser eleito pelo voto popular, mas as chances do governante perpetuar-se na situação, ultrapassando os limites pertencentes à esfera individual dos cidadãos, fazendo insurgir o temeroso "Big-Brother", são imensas, na medida em que a concepção mesma desse ideário político delega ao Estado o direito de tomar decisões que caberiam aos membros individuais da sociedade. Stalin foi conseqüência direta do modelo socialista, que sub-roga o indivíduo, preferindo à este o monstro estatal. O stalinismo foi, incontestavelmente, filho dileto do socialismo.
A história, despida do véu que lhe sobrepõe os intelectuais da "intelligentzia" esquerdista, mostrou-nos que, de fato, o socialismo existiu e fracassou, e que os resultados da implementação dessa engenharia social coletivista revelaram-se, em absoluto, diversos do que propunham os conteúdos panfletários pré-revolucionários, carregados de promessas igualitaristas e humanitárias. Impossível prever qual sistema sucederá o capitalismo. Ao menos, a experiência histórica logrou ensinar-nos qual caminho NÃO devemos seguir.
Thiago Magalhães é estudante da Faculdade de Direito da USP
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Companheiros ou Irmãos de Fé?
David Magalhães
"A religião é o suspiro de uma criatura esmagada pela infelicidade, a alma de um mundo sem coração, do mesmo modo que é o espírito de uma época sem espírito. É o ópio do povo." (Karl Marx)
"O marxismo pereceu como ciência que pretendia ser, mas triunfou como ideologia e fé secular." (Roberto Campos)
Marx, quando escreveu o excerto acima, não sabia que suas palavras iriam servir como um evangelho para muitos dos intelectuais do século XX. A "intelligentsia" incorporou a doutrina marxista, aceitando-a como a religião oficial dos ateus materialistas, assim como rebanhos humanos incorporaram o cristianismo outrora. Sabemos, porém, que ambas as doutrinas divergem quanto a essência das suas idéias: enquanto o marxismo busca a justiça através de uma revolução, ou seja, a ruptura com o modo de organização e o sistema de valores implicando o exercício do poder pela violência, as lições de Cristo ensinava-nos a aceitar o sofrimento, pois a justiça só se completa na Cidade de Deus.
Embora diferentes em essência, alguns aspectos formais aproximam o cristianismo do marxismo. Vejamos:
- A classe operária seria dotada de uma missão única e de virtudes singulares.
- Ambas as doutrinas iniciam-se como ideologia dos oprimidos, acenando à uma visão paradisíaca do futuro.
- Tanto o cristianismo quanto o marxismo procuram o poder coercitivo do Estado como instrumento de domesticação, em favor da Igreja num caso, ou do Partido comunista, no outro, não hesitando em perseguir os dissidentes ou heréticos.
- Os cristão primevos acreditam numa imediata "Parousia", isto é, o Segundo Advento de Cristo, trazendo, a curto prazo, uma Nova Era. Os marxistas primevos acreditam numa revolução proletária iminente e na desintegração rápida do Capitalismo pelas suas contradições internas.
- As duas correntes somente tiveram êxito após verem fracassar suas previsões - tanto a da "Pourasia" como a da Revolução Universal - e ambas tornaram corpos híbridos político-religiosos, como instrumento de propagação do credo.
- Tal como os cristãos, os marxistas desenvolveram um dogma - o materialismo dialético - pelo qual os fatos históricos são lidos, e distorcidos, à luz do determinismo histórico.
- O marxismo transformou um esquema de evolução numa história sacra, cujo milênio seria uma sociedade sem classes.
- Da mesma forma que o cristianismo, o marxismo aspirou ser uma Igreja Universal, e conheceu paralelamente o frustrante desafio das seitas.
Mesmo que os marxistas se desdobrem em dizer que repudiam a ferro e fogo as moralidades religiosas, estão eles professando uma doutrina sacra. Por mais que pensem que estão livres dos grilhões do reacionarismo cristão, fazem eles uma embriagada leitura histórica regada a muito ópio e pouca lucidez.
David Magalhães é aluno de Relaçãoes Internacionais da UNESP
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Os valores fundamentais da América
JOÃO MELLÃO NETO
Nunca, nem mesmo nos meus tempos de militante do movimento estudantil, eu me deixei levar pelo antiamericanismo. Visitei os Estados Unidos pela primeira vez no início dos anos 70, no auge da nossa ditadura militar, e me senti como um novo Alexis de Tocqueville. Este, francês, conheceu e se maravilhou com a América quando ali esteve ainda moço, nos inícios do século 19, e pôde comparar suas instituições e seu modo de vida com os de seu país e os da Europa em geral.
Tocqueville, mais tarde, escreveu uma das mais importantes obras políticas da História, A Democracia na América, em que antevia que aquela jovem nação, pelas suas peculiaridades, estava fadada a ocupar a liderança do mundo.
Quando estive nos EUA, já havia lido o livro, que me fora dado pelo meu tio Sérgio, um americanista experimentado e convicto. Pude constatar, na prática, a inédita combinação que existe na América entre o individualismo e o comunitarismo. Os americanos, dizia Tocqueville, são talvez as pessoas mais egoístas e individualistas do mundo. E não escondem isso de ninguém.
Mas, quando é do interesse da comunidade, eles se unem. Cada um sabe quanto tem que dar de si. E, sem o menor sinal de hipocrisia, todos cedem a sua cota de sacrifício para resolver os problema que ameaçam a comunidade. Na Europa não era assim, constatava o autor. Todos se dizem imbuídos dos mais nobres ideais: solidariedade, caridade, fraternidade. Mas, como ninguém, na prática, pretende ceder nada, nada de fato pode ser realizado.
Uma qualidade que aprendi a admirar nos americanos é o valor que se dá à palavra de cada um. É a presunção da boa-fé, algo difícil de entender porque praticamente inexiste por estas plagas. Aqui se exige certidão autenticada, testemunha e avalista para tudo. Na América basta a palavra do indivíduo.
Muitos brasileiros, aprendizes de malandro, já tentaram aproveitar-se dessa brecha na sociedade americana. Invariavelmente, deram-se mal. Os americanos são crédulos, mas não são ingênuos. A maior transgressão moral, para os americanos, é a mentira. Quem é flagrado mentindo sofre todos os rigores da lei e dos costumes. No caso de um delito, quando o réu se confessa culpado, ele ainda pode contar com a benevolência do juiz. Mas, se ele se declara inocente e for comprovado que não é, sofrerá as piores penalidades.
Quando visitei a América pela primeira vez, o presidente Nixon, para escapar do impeachment, acabara de renunciar ao cargo. Li um artigo no New York Times em que o autor, muito propriamente, afirmava que a queda do presidente não se devera às escutas telefônicas clandestinas de Watergate. Se ele tivesse admitido o erro e pedido desculpas à opinião pública, provavelmente teria mantido o cargo. Mas não, ele foi à TV e jurou inocência. O que o derrubou foi simplesmente o fato de ter mentido ao povo americano...
O mesmo, recentemente, quase aconteceu com Bill Clinton. O processo de impeachment que ele sofreu não foi por causa de suas aventuras extraconjugais, foi pelo fato de que ele teria mentido em juízo. Livrou-se por pouco.
Como afirmava no início deste artigo, ao contrário da rancorosa mentalidade que impera por aqui, não me envergonho de admitir que admiro a América e os americanos. Eles não construíram a maior nação da História universal por acaso. Não nasceram ricos. No século 18, o Brasil, o México e a maioria das colônias ibero-americanas eram mais opulentos do que a Nova Inglaterra.
Tornaram-se independentes em 1776 e apenas cem anos depois já eram uma das cinco nações mais ricas do mundo. E isso após enfrentar uma guerra civil, sem dúvida a mais destrutiva já travada no continente americano. Na virada do século 20, os EUA já eram a nação mais rica da Terra. No transcorrer do século, transformaram-se também na maior potência do mundo em termos bélicos e tecnológicos. Hoje representam um terço da economia do planeta.
Gostemos ou não, o modelo individualista-comunitarista dos americanos deu certo. Ao contrário do que se insiste em dizer por aqui, os EUA não se tornaram ricos à custa de ninguém. O próprio presidente Lula jogou uma pá de cal nesta rancorosa mentalidade terceiro-mundista, ao declarar: "Chega de botar a culpa nos países ricos pelos nossos problemas. Os culpados somos nós mesmos."
Os EUA, até aqui, mantiveram a sua supremacia sobre o resto do mundo e isso não se deveu unicamente à força de suas armas e ao poderio de sua economia.
Há também, e principalmente, o fator moral. Goste-se ou não da América e dos americanos, eles são respeitados porque têm valores. Valores sólidos pelos quais dão a vida para defender.
Tudo isso que disse foi somente para, ao final, manifestar o meu mais sincero desapontamento com a América pelo desfecho da guerra do Iraque. Não apoiei a guerra, mas a compreendi. E, se o fiz, foi em função das razões apresentadas pelos americanos. Se Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, a América, em sua própria defesa, deveria agir para se prevenir.
Pois bem, três meses se passaram e nenhuma arma foi encontrada. Será possível que os americanos tenham mentido?
Se o fizeram, romperam com um princípio basilar de sua sociedade, que é o culto incondicional à verdade. A própria América deveria levantar-se para exigir satisfações dos seus governantes. Se o fizer, será a velha América de sempre, aquela que eu aprendi a respeitar. Se ficar em silêncio, sinto muito, mas a minha admiração por ela nunca mais será a mesma.
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Véu islâmico: a ponta do iceberg
MARIO VARGAS LLOSA
Especial
Em outubro de 1987, algumas alunas do colégio francês Gabriel-Havez, na localidade de Creil, se apresentaram nas classes usando o véu islâmico e a direção do estabelecimento proibiu a entrada delas, fazendo lembrar às meninas muçulmanas o caráter laico do ensino público na França. Desde então, abriu-se nesse país um intenso debate sobre o tema, que acaba de atualizar-se com o anúncio de que o primeiro-ministro, Jean-Pierre Raffarin, se propõe a apresentar ao Parlamento um projeto que dê força de lei à proibição de que os alunos levem às escolas do Estado acessórios de signos religiosos e políticos de caráter "ostensivo e proselitista".
No debate de idéias sobre assuntos cívicos, a França continua sendo uma sociedade modelo: na semana que acabo de passar em Paris acompanhei fascinado esta estimulante controvérsia. O tema em questão dividiu de forma transversal o meio intelectual e político, de modo que, entre os partidários e os adversários da proibição do uso do véu islâmico nos colégios, encontram-se misturados intelectuais e políticos de esquerda e de direita, uma prova a mais de crescente inutilidade daquelas categorias rígidas para se entender as opções ideológicas no século 21.
Nesta polêmica, o presidente Jacques Chirac diverge de seu primeiro-ministro e, por sua vez, concordam com Chirac socialistas da oposição ao governo como os ex-ministros Jacques Lang e Laurent Fabius. Não é preciso ser muito perspicaz para entender que o véu islâmico é apenas a ponta do iceberg e o que está em jogo neste debate são as maneiras distintas de compreender os direitos humanos e o funcionamento de uma democracia.
Em princípio, pareceria que, a partir de uma perspectiva liberal - que é a de quem escreve isto - não pode caber a menor dúvida. O respeito aos direitos individuais exige que uma pessoa, seja ela criança ou adulto, possa vestir-se da forma que quiser sem que o Estado se imiscua na sua decisão e esta é a política que se aplica, por exemplo, ao Reino Unido, onde, nos bairros periféricos de Londres, uma grande quantidade de meninas muçulmanas freqüentam as aulas cobertas dos pés à cabeça, como se estivessem em Riad ou Amã. Se toda a educação escolar estivesse privatizada, o problema nem sequer existiria, pois cada grupo ou comunidade organizaria suas escolas segundo os próprios critérios e regras, limitando-se a seguir determinadas disposições gerais do Estado sobre o programa acadêmico. Mas isso não ocorre nem vai ocorrer em sociedade alguma num futuro previsível.
Por isso, o assunto do véu islâmico não é tão simples se for examinado mais de perto e em vista das instituições que garantem o Estado de Direito, o pluralismo e a liberdade.
O requisito primeiro e irrevogável de uma sociedade democrática é o caráter laico do Estado, sua total independência perante as instituições eclesiásticas, única forma existente de se garantir o predomínio do interesse comum sobre os interesses particulares e a liberdade absoluta de crenças e práticas religiosas aos cidadãos, sem privilégios nem discriminações de espécie alguma. Umas das grandes conquistas da modernidade, na qual a França esteve na vanguarda da civilização e serviu de modelo às demais sociedades democráticas do mundo inteiro, foi o laicismo.
Quando, no século 19, foi estabelecida lá a escola pública laica, foi dado um grande passo para a criação de uma sociedade aberta, estimulante para a investigação científica e a criatividade artística, para a coexistência plural de idéias, sistemas filosóficos, correntes estéticas, desenvolvimento do espírito crítico e também - por que não? - de um espiritualismo profundo.
Porque é um grande erro acreditar que um Estado neutro em matéria religiosa e uma escola pública laica atentem contra a sobrevivência da religião na sociedade civil. A verdade é bem o contrário, e isso demonstra com precisão a França, um país onde está claro que a porcentagem de crentes e praticantes religiosos - cristãos na sua maioria - é uma das mais elevadas do mundo. Um Estado laico não é inimigo da religião, mas sim um Estado que, para resguardar a liberdade dos cidadãos, retirou a prática religiosa da esfera pública e levou-a ao âmbito que lhe corresponde, que é a da vida privada.
Porque, quando religião e Estado se confundem, inexoravelmente desaparece a liberdade. Já no caso contrário - quando mantidos separados - a religião tende de maneira gradual e inevitável a "democratizar-se", isto é, cada igreja aprende a coexistir com outras igrejas e com outras formas de crença e a tolerar os agnósticos e os ateus. Esse processo de secularização foi que tornou possível a democracia. Diferentemente do cristianismo, o islamismo não experimentou isso de maneira integral, somente de modo incipiente e transitório, e essa é uma das razões pelas quais a cultura da liberdade encontra tantas dificuldades para deitar raízes nos países islâmicos, onde o Estado é concebido não como um contrapeso da fé, mas sim como seu servidor e sua espada flamejante. E, numa sociedade onde a lei seja a lei islâmica, a liberdade e os direitos individuais são eclipsados de forma igual como desapareciam na Inquisição.
As meninas que famílias e comunidades enviam com o véu islâmico às escolas públicas da França são algo mais do que parecem à primeira vista; quer dizer, são um pequeno avanço de uma campanha empreendida pelos setores mais militantes do integrismo muçulmano na França que buscam conquistar uma cabeça de praia não somente no sistema educacional como também em todas as instituições da sociedade civil francesa. Seu objetivo é que lhes seja reconhecido o direito à diferença, noutras palavras, o direito de desfrutar, naqueles espaços públicos, de uma extraterritorialidade cívica compatível com o que aqueles setores proclamam ser sua identidade cultural, apoiada em suas crenças e práticas religiosas.
Esse processo cultural e político que se esconde por trás das amáveis invocações ao "comunitarismo" ou "multiculturalismo" é um dos desafios mais poderosos que a cultura da liberdade enfrenta em nossos dias e, na minha opinião, essa é a batalha que, no fundo, começou a impedir na França, por trás das escaramuças e embates de aparência superficial e anedótica entre partidários e adversários, que se autorize que as meninas muçulmanas usem o véu islâmico em colégios públicos da França.
Existem no mínimo 3 milhões de muçulmanos radicados em território francês (segundo alguns, esse número é muito maior, considerando-se os imigrantes ilegais). E, entre eles, setores modernos e de nítida filiação democrática, como o que representa o superior da mesquita de Paris, Dalil Boubakeus, com quem encontrei há poucos meses em Lisboa em uma conferência organizada pela Fundação Gulbekian, e cuja civilidade, ampla cultura e espírito de tolerância me impressionaram. Mas, infelizmente, essa corrente moderna e aberta acaba de ser derrotada nas eleições recentes para o Conselho para o Culto Muçulmano e os Conselhos Regionais por setores radicais e próximos do integrismo mais militante, agrupados na União de Organizações Islâmicas da França (UOIF), uma das instituições que mais têm batalhado para que se reconheça o direito das meninas muçulmanas assistirem às aulas usando véu, por "respeito a sua identidade e cultura".
Este argumento, levado a seus extremos, não tem fim. Ou melhor, se aceito, gera fortes precedentes para que se aceite também outras características e práticas tão ficticiamente "essenciais" à cultura própria, como a negociação do casamento das jovens pelos pais, a poligamia e, exagerando, até a mutilação feminina. Esse obscurantismo é disfarçado com um discurso de alardes progressistas: com que direito quer o etnocentrismo colonialista dos franceses de velho cunho impor aos franceses recentíssimos de religião muçulmana costumes e procedimentos que são contrários a sua tradição, sua moral e religião? Adornada com falácias pluralistas, a Idade Média poderia, assim, ressuscitar e instalar um enclave anacrônico, desumano e fanático na sociedade que proclamou pela primeira vez no mundo os direitos humanos. Esse raciocínio absurdo e demagógico deve ser denunciado com vigor, como o que é:
um gravíssimo perigo para o futuro da liberdade.
Na época em que vivemos, a imigração gera um alarme exagerado em muitos países europeus, entre eles a França, onde este medo explica em boa parte a elevadíssima votação que obteve, no primeiro turno das eleições presidenciais passadas, a Frente Nacional, o movimento xenófobo e neofascista liderado por Jean-Marie Le Pen. Mas esses temores são absurdos e injustificados, já que a imigração é absolutamente indispensável para que as economias dos países europeus, cuja demografia está estancada ou decrescente, continuem crescendo e para que o alto nível de vida da população se mantenha ou se eleve. Por isso, a imigração, em vez do demônio que habita os pesadelos de tantos europeus, deve ser compreendida como uma injeção de energia e de força trabalhadora e criativa a qual os países europeus devem abrir suas portas de par em par e trabalhar para integrar o imigrante. Mas sem que, por causa disso, a mais admirável conquista dos países europeus, que é a cultura democrática, se veja diminuída e sim, pelo contrário, renove-se e enriqueça com a adoção desses novos cidadãos. É óbvio que são eles que têm de se adaptar às instituições da liberdade e não as instituições que devem renunciar a si mesmas para acomodar-se a práticas ou tradições incompatíveis com elas. Nisso não deve haver nenhuma concessão em nome de falácias de um "comunitarismo" ou "multiculturalismo" pessimamente entendidos. Todas as culturas, crenças e costumes devem ter lugar numa sociedade aberta, sempre e quando não colidirem frontalmente com o respeito aos direitos humanos e os princípios de tolerância e liberdade que constituem a essência da democracia. Os direitos humanos e as liberdades públicas e privadas que garantem uma sociedade democrática estabelecem um amplíssimo leque de possibilidades de vida que permitem a coexistência em seu seio de todas as religiões e crenças, mas essas, em muitos casos, como ocorreu com o cristianismo, deverão renunciar aos extremismos de sua doutrina - o monopólio, a exclusão do outro e práticas discriminatórias e lesivas aos direitos humanos - para conquistar o direito de cidadania numa sociedade aberta. Têm razão Alain Finkielkraut, Elizabeth Badinter, Régis Debray, Jean-François Revel e aqueles que estão com eles nesta polêmica: o véu islâmico deve ser proibido nas escolas públicas francesas em nome da liberdade.
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Tortura no Brasil
David Magalhães
Dentre as verdades tidas enquanto irrefutáveis pelos esquerdistas e que acabaram por recriar a História do Brasil, destaca-se a de que, durante o período militar, houve a presença da CIA em solos tupiniquins para ensinar aos brasileiros técnicas de torturas contra presos políticos. Balela. E quem diz isso é Élio Gaspari, jornalista filiado ideologicamente à esquerda cor-de-rosa brasileira. Segundo o jornalista, não há um só documento ou relato que comprove o envolvimento dos americanos com os torturadores brasileiros da ditadura militar. O mais irônico foi a constatação de que o envolvimento estrangeiro de maior relevância deu-se quando o governo francês enviou ao Brasil um general especializado em técnicas de tortura:
"Apesar da existência de uma prolífica produção de denuncias de envolvimento direto da administração americana com as torturas brasileiras, não há prova de que um só militar ou policial tenha aprendido a bater em presos nos cursos de intercâmbio patrocinados pelo governo dos EUA. Da mesma forma, não há prova de que americanos tenham participado das seções de tortura. A polícia brasileira sempre excedeu, de muito, a americana na prática e na desenvoltura da criminalidade contra presos. Se uma delas tivesse algo a aprender com a utilização de pau-de-arara ou dos choques elétricos, seria a americana, não a brasileira. O caso mais notável de ligação biográfica entre torturadores estrangeiros e a ditadura brasileira deu-se em 1973, quando o governo francês mandou para o Brasil, como seu adido militar, o general Paul Aussaresses, chefe das operações de repressão, suplício e extermínio praticadas na Argélia nos anos 50." (pág. 304 da obra A Ditadura Escancarada de Élio Gaspari - Ed. CIA das Letras. Ano 2001, São Paulo)
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Abujamra não provoca ninguém
Thiago Magalhães
Conhecido de boa parte dos telespectadores da TV Cultura é o programa de Antonio Abujamra, intitulado "Provocações", no qual o ator, famoso por suas atuações nos palcos teatrais de todo o Brasil, realiza entrevistas, que teriam o intuito maior de "provocar", dado o alto teor de subversão que contamina a todos os convidados.
Uma simplória análise que incida sobre tais entrevistas já é o bastante para levar as pessoas de bom senso a uma reflexão sobre a seguinte questão: porque "raios" esse programa se chama "Provocações"? A quem Abujamra pensa que está provocando? Todos os entrevistados dizem aquilo que Abujamra e as classes letradas querem ouvir, a saber, qualquer espécie possível e imaginável de entulho esquerdista, do tipo "somos explorados pelos países desenvolvidos" e "as propostas dos partidos de esquerda são a solução para alavancar o desenvolvimento do país", blá, blá, blá.
Dentre os convidados, em geral, encontram-se padres adéptos da Teologia da Libertação, professores universitários e de segundo grau que se divertem em distorcer a História, filósofos e sociólogos da intelligentzia de esquerda, atores e músicos engajados em seu panfletarismo comunista e uma série de outros tipos "intelectuais" que alardeam para si superioridade moral, a qual, segundo eles, advém exatamente de sua opção política. Adorados que são pelos movimentos estudantis e até mesmo por aqueles que, embora simpatizantes do capitalismo, sentem-se envergonhados por assumirem tal postura, de que maneira poderia ser o programinha de Abujamra objeto de provocação a quem quer seja?
Abujamra não provoca ninguém. Causa, no máximo, risos àqueles que não se deixam levar pelas distorções impostas pela tirania da coletividade.