Alfredo foi pra São Paulo. Viajou pela Gol e chegou em Congonhas com muita fome. Apanhou um táxi e desceu na primeira pizzaria que encontrou, a dois quarteirões de distância.
Tinha saído de Fortaleza, onde o preço da pizza variava entre 15 e 20 reais, em média. Dependendo da firula e da elegância de algumas pizzarias da Aldeota, bairro nobre de sua cidade, o preço podia chegar a 35 reais. Coisa boa pra otário se sentir bacana.
Não prestou atenção ao nome do lugar, o que, aliás, não fazia a menor diferença, já que em São Paulo pizzaria boa tem que ter nome italiano, mesmo que seja comandada por um Juvenal ou um Severino qualquer, que cria um nome artístico como Genaro ou Giovani pra ganhar clientela. No fim, em meio a tantos Pasta Nostra, la Traviatta ou Di Fratellos, Alfredo tava mesmo era com fome e até disposto a comer uma pizza de 30 reais, só pra tufar o peritônio.
Cardápio dentro do figurino, todo em italiano, garçons de avental impecável, aparentavam disputar uma prova de marcha olímpica, ziguezagueando entre as mesas com taças de vinho, chopes e guaraná Antarctica; mau educados muitas vezes, o que por ali Alfredo ia aprendendo que não era visto como rudeza, e sim como trabalho eficiente. Coisa de lá.
Pensou em anunciar-se crítico gastronômico, mas não estava suficientemente paramentado para tal. Seu sotaque, mesmo sendo escondido, já fora percebido. Não tinha a altura, o tom de pele, o sotaque, os óculos estilizados; falava baixo. Não ia dar certo, melhor era pagar pela pizza mesmo.
Depois de pedir sua pizza siciliana, acomodou-se melhor e prestou mais atenção ao lugar. Intimidou-se quando viu o maître, que ele havia ignorado ao chegar, talvez pela urgência da fome, talvez pela falta de hábito com a figura de um garçom que superintende os outros garçons. Notou que as pessoas eram diferentes, pareciam incorporar o estereótipo do italiano, com seu gestual exagerado, sua gritaria e seu purismo culinário. Mas Alfredo sabia que aquele era apenas um estereótipo, e que aquelas pessoas estavam apenas sentindo-se melhores, mais altivas, mais cosmopolitas, menos classe-média, um pouco mais elegantes, com sua massa de pão achatada e coberta de queijo e tomates. O lugar cheirava bem, a azeite e orégano, tinha um enorme balcão, poucas e espaçosas mesas. Alfredo começou a ambientar-se e pediu uma taça de vinho, o que costumava fazer apenas na noite do Natal no Ceará. Pensou na porra da pizza que não chegava e chamou um garção qualquer, já sentindo o sangue italiano correndo por suas veias; o maître o avisou que o forno ainda estava sendo aquecido. Tudo bem, o vinho estava espantando muito bem o frio. Não estava sendo impaciente ou mau educado, estava apenas cobrando um serviço eficiente, oras. Estava ambientado.
A fome aumentava e sua “pizza mafiosa” já estava atrasada há mais de três taças. Quando já começava a sentir o efeito do álcool batendo no estômago vazio, sua iguaria chegou, e realmente era linda. Pensou, já assimilando certas bobagens nativas: “forno a lenha realmente é outra coisa”.
Só pecou por uma coisa, provavelmente já antevista por qualquer um que leia uma história de um nordestino numa pizzaria paulistana, digo, italiana. Chamou o “métre” e pediu ketchup. Foi informado que aquele produto não era servido, por questões de controle de qualidade e para preservar o sabor original das massas da casa. Risos de desdém e olhares condolentes. Sentiu-se novamente apenas um “baiano” e estava tão à vontade quanto um judeu no centro de Berlim em 38.
Lembrou dos sachês da Arisco que trouxera no avião pro caso de uma queda em algum lugar isolado e sem pizzarias por perto. Aprendera esse truque num filme e sabia que naquela viagem alguma catástrofe iria acontecer. O avião não caíra, mas ele parecia um piloto de Apache americano, a pé, cercado de iraquianos.
Mais três taças de vinho – o que àquela altura significavam 8 minutos - foram necessárias para que a situação melhorasse. Esperou que todos esquecessem sua baianada e, num golpe rápido, rasgou três envelopinhos e sapecou o molho de tomate em cima do molho de tomate da pizza.
Longa pausa para checar se a pizza rejeitaria aquele órgão estranho, mas nenhuma reação química pareceu acontecer. Ela continuava ali, cheirosa, suculenta, belíssima e agora mais coradinha. Ninguém percebera. Ninguém sentira o cheiro do pecado. Armou-se de garfo e faca, tirou um naco generoso e pôs na boca.
O maître se aproximou e elegantemente o informou que ele estava convidado a não voltar mais ali. Alfredo pensou: “perfeito, mas essa pizza já era!”. Comeu as oito fatias e, mesmo querendo mais ketchup, aquela era a melhor pizza de sua vida, pela saga que fora a sua conquista. Pagou a conta, pegou outro táxi e foi dormir. Só conseguiria pensar numa coisa a partir dali: então era pra isso que servia o tal do “métre” nos restaurantes.
Pensava em andar de Montanha-Russa no dia seguinte, mas pegou gosto por outra coisa. No dia seguinte foi ao bairro da Liberdade, entrou no restaurante mais autenticamente japonês que sua baianidade encontrou e, depois de umas talagadas de saquê, pediu uma porção de sushi. Bem passado.