Não tenho visto, na imprensa brasileira, reportagens sobre como os povos do Oriente Médio têm reagido a esta Segunda Guerra do Golfo. Não os governos, obviamente, os funcionários públicos, a imprensa controlada pelo estado ou as manifestações "populares" convocadas por ditadores. Mas a opinião dos médio-orientais de verdade, ouvida entre quatro paredes, com garantias de anonimato concedidas pelo repórter. A voz do cidadão comum de Teerã, Istambul, Jerusalém, Riad ou mesmo Bagdá não tem chegado até o Brasil. E eu acho que sei o motivo. Pensem comigo.
Os iranianos preferem não dizê-lo em voz alta, mas eles odeiam Saddam Hussein ainda mais do que odeiam os EUA. Em 1980, o recém-empossado Saddam resolveu expandir sua nação às custas de parcelas do território iraniano (especialmente a região do Chat-el-Arab, na fronteira sul entre os dois países, próximo ao Golfo). Invadiu seu vizinho, bastante enfraquecido pela recente Revolução Islâmica, e começou uma guerra que durou até 1988. O conflito matou 250.000 a 500.000 iranianos, aleijou outros 500.000 a 1.000.000 e desalojou outros 1.250.000. Temos aí uns dois milhões e meio de iranianos que tiveram suas vidas arruinadas pelo imperialismo maluco de Saddam Hussein. Sem contar os danos materiais: cidades inteiras no Irã foram devastadas pelas tropas iraquianas, aldeias foram riscadas do mapa, indústrias viraram escombros, lavouras se perderam. Grande o quanto seja o ressentimento anti-ianque em Teerã, esse histórico não foi esquecido por nenhum iraniano.
Os curdos odeiam Saddam Hussein, e dizem-no aos berros, com todas as suas forças. Seus movimentos separatistas foram reprimidos com maior brutalidade por ele do que por qualquer outro dirigente do Iraque. Depois da Primeira Guerra do Golfo, Saddam sufocou um levante curdo ordenando que aviões da Força Aérea iraquiana atacassem cidades do Curdistão com armas químicas. Li um relato de um sobrevivente afirmando que nem era possível perceber o estouro das bombas; as pessoas simplesmente tinham convulsões, nas ruas, nas lojas e dentro de suas casas, e iam morrendo à medida que os gases se espalhavam pela cidade. Numa única cidade 5.000 foram mortos dessa forma.
Os turcos odeiam Saddam Hussein, e também não tentam esconder isso. Pelo motivo oposto. Desde que a ONU impôs uma zona de exclusão aérea ao norte do Iraque, Saddam tem tido dificuldades para reprimir os levantes curdos - e praticamente não pôde mais patrulhar as fronteiras com a Turquia. O resultado é que essa área virou uma terra-de-ninguém: os curdos que promovem operações de guerrilha em território turco gozam de ampla liberdade para buscar refúgio no Iraque. As tropas turcas já realizaram mais de uma incursão pelo Curdistão iraquiano, à caça de terroristas refugiados - expondo-se à mira tanto de guerrilheiros do PKK quanto dos remanescentes do Exército iraquiano aquartelados na região.
Os kuwaitianos odeiam Saddam Hussein, como todo mundo sabe. Ele ressuscitou a antiga ambição iraquiana de reduzir o Kuwait a uma província de Bagdá. Não sei quantos kuwaitianos foram mortos na Primeira Guerra do Golfo, mas não devem ter sido poucos.
Os israelenses odeiam Saddam Hussein. Além de manter durante todo seu longo governo a retórica beligerante anti-sionista, Saddam bombardeou Israel durante a Primeira Guerra do Golfo. Houve mortos. Israel não atacava o Iraque havia anos, tampouco revidou. Mas se lembra, claro.
Por fim, os iraquianos odeiam Saddam Hussein - mais do que todos os outros. E com os mais justificáveis motivos do mundo. Mas eles não podem falar isso a ninguém.
Os demais vizinhos do Iraque - jordanianos, sírios, árabes sauditas - andam meio silenciosos, decerto para não inflar a moral ianque. Mas não tenho dúvidas que intimamente desprezam e temem a vizinhança do neocalifa de Bagdá. E sonham com sua deposição.
Ou seja, o homem conquistou uma virtual unanimidade no mundo árabe, tanto quanto os próprios EUA. Portanto imagine só o quanto é fácil e gostosa, nesse momento, a vida de um tiranete típico do Oriente Médio. Vejo o sujeito saindo à sacada do palácio presidencial. Uniforme coberto de medalhas, óculos escuros, bigode já branco, turbante sobre a cabeça calva. Lá embaixo há uma multidão de radicais carregando faixas e cartazes de protesto contra Bush, cantando refrões anti-americanos. Todos calam-se, porém, assim que ele começa a falar.
Compatriotas: hoje é um dia de ira para todos nós. O Grande Satã do Ocidente ousou derramar o sangue de nossos irmãos sobre o sagrado solo árabe. Despejam-se bombas sobre inocentes, destróem-se mesquitas, conspurca-se a terra do povo de Deus com as botas dos soldados infiéis. O sangue dos mártires clama por vingança!
A multidão grita, aos urros: Vingança! Vingança!
Violando resoluções da ONU - continua o déspota - e em conluio com o Pequeno Satã Israel, os infiéis baixam os punhos da mais odiosa opressão sobre nossos irmãos iraquianos. Mas não permita Allah que a injustiça triunfe sobre a eqüidade; não nos prive Deus da força, na hora decisiva da reação!
A massa vai à loucura. Allah-u akbar! Allah-u akbar! A muito custo conseguem-se manter abertos os espaços onde se queimam bandeiras dos Estados Unidos e de Israel.
Estejamos de prontidão. Os infiéis estão por perto. Mas Deus está mais perto de nós do que nossa veia jugular.
A turba aplaude, unânime. O tirano volta-lhe as costas e entra de novo em seu palácio. Passando por um luxuoso corredor acarpetado, adentra numa confortável sala de estar. A televisão já está ligada, na Al-Jazeera.
O homem se senta. Quando a TV mostra imagens dos palácios de Bagdá em chamas, um largo sorriso se abre no seu rosto de orelha a orelha, arqueando os brancos bigodes. Reflexos de incêndios iluminam seus óculos escuros. Em incontida satisfação Sua Excelência grita, num árabe nada corânico: Issaaaa!! Chupa, Saddam!!!"