Sem água não haveria vida na Terra. O corpo humano é composto de 75% de água. Além de necessária à vida e componente dos corpos vivos, a água também ocupa o imaginário humano. De Netuno a Iemanjá, são inúmeros os mitos, lendas, crenças envolvendo esse mineral. Alguns fazem parte da trajetória do conhecimento, incorporam-se à longa caminhada da percepção e apreensão do real feita pela espécie humana. Outras crenças, contudo, estão deslocadas do processo do aprendizado – contrapõem-se a ele, na verdade. É o caso da “memória da água”, uma das muitas crendeirices que pululam neste início de milênio.
Seu principal divulgador é Masaru Emoto, que estudou bioquímica na Universidade da Califórnia, onde conheceu Lee Lorenzen, que afirma que a água é capaz de armazenar informação. Tentando provar a afirmação de Lorenzen, Emoto congelou a água a –5ºC e fotografou os cristais de gelo que se formaram, ampliados em 200 a 500 vezes. Segundo ele, os cristais teriam uma tendência a se ordenar de forma metódica em uma certa estrutura padrão. Porém, quando constatou que a água da chuva coletada em várias cidades não apresentava padrão algum, preferiu apelar para a tautologia e dizer que elas apresentavam “padrões caóticos”, revelando “informações não metódicas”. Assim, a inexistência de padrão virou “padrão caótico” e a ausência de forma metódica transmutou-se em “informações não metódicas”...
Diz ele que o cristal de água “assimila” informações. Não informações quaisquer, mas informações metafísicas e também sociológicas: na fonte de Lourdes, o cristal se parece com um rosário e o cristal das águas de uma região do Japão onde são feitos bordados finos reflete a estrutura de um bordado fino. Mais. A água também “escuta”, reagindo diferentemente para a Sinfonia Pastoral de Beethoven, a Sinfonia em Sol Menor de Mozart, a Ária da Quarta Corda (Sol) e as Variações Goldberg de Bach, o Estudo em Dó Maior de Chopin, para uma sutra tibetana, uma canção folclórica celta, uma coreana, um hard rock e para o Heartbreak Hotel interpretado por Elvis Presley.
A sabedoria e a preferência estética aquática não terminam aí. Emoto engarrafou água destilada e a deixou descansando por 24 horas em recipientes com palavras escritas em inglês, japonês e alemão (cada recepiente com o rótulo em uma dessas línguas). Ele escreveu palavras como “alma”, “demônio” e “obrigado”. Mais que alfabetizados, os H2Os são poliglotas e o pesquisador estabeleceu que as palavras não devem ser encaradas “como invenções de pessoas, mas como um fenômeno vivo. Eu acho que os sons revelam vibrações da natureza. Foi assim que surgiram as palavras: elas evoluíram dessas vibrações” (parece que aqui Emoto faz uma pequena confusão entre palavra escrita, grafada, que não tem som, e palavra pronunciada – essa, sim, com vibração sonora).
As águas também foram submetidas a sessões de rezas. Os resultados foram, digamos, controversos: os cristais ficaram mais “belos”, na opinião do fotógrafo, mas em um lago, onde um sacerdote japonês rezou por mais de uma hora, a poluição sumiu e, com ela, sumiram o mau cheio e as algas e diminuiu o número de camarões. Meses depois da oração tudo estava como antes: poluição, mau cheiro, algas e ... camarões, para a felicidade da comunidade de Omiya, que vive da comercialização do crustáceo.
Mas o que não foi bom para o camarão foi considerado benéfico para Emoto e seus seguidores: eles concluiram que a água é receptiva ao poder do pensamento através da meditação e da oração, podendo ser utilizada para transmitir “cura de uma grande distância”.
Além de presidir o International Hado Fellowship, Masaru Emoto é também autor de livros sobre seus experimentos, como “Messages from Water” e ministra palestras em todo o mundo sobre suas fotos e suas conclusões. Sua obra foi traduzida para várias línguas. Cientistas e pensadores têm desmistificado suas “conclusões alternativas” e o aproveitamento que faz da ignorância do público em relação à ciência. Porém os meios de comunicação dão-lhe guarida e divulgam, sem senões, os “milagres da água”.
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