Durante quase 15 anos eu freqüentei a Primeira Igreja Batista de Manaus. Apesar de sofrer por ter que acordar todos os domingos às seis da manhã, eu tinha certo orgulho. Mesmo criança, eu gostava da cerimônia, do ritual aos moldes americanos, que aliás, eu, como bom garoto brasileiro apegado a Flipper e Rin-Tin-Tin, adorava, afinal, é assim que a América alastra seus valores, seu way of life. Minha avó era uma devota católica que tinha se convertido e decidiu nos castigar, eu e meus irmãos, nos acordando com água no rosto todos os domingos.
A Igreja tinha um coral grande e afinado, um piano de calda, um espetacular manto cor-de-vinho atrás do púlpito, indo de uma extremidade à outra do santuário, como era chamado o que hoje chamam de auditório. Enfim, era daquele ar sério, sóbrio, que eu gostava. Eu achava horrível aquela gritaria dos pentecostais e aqueles shows de vozes aos moldes do Harlem. Eu gostava da reverência das orações, da profundidade e da didática dos sermões do pastor Norton, este sim, Pastor, com anos de dedicação à teologia e ao estudo da bíblia. Nada de musiquinhas bê-a-bá pra criança aprender. Eu gostava era dos hinos centenários, chatos, desprovidos de emoções bobas. Eu me arrepiava com aquelas 500 pessoas, todas sãs, todas calmas e concentradas, ouvindo a mensagem, que era pregada aos saudosos 65 decibéis do volume da fala. Naquela época sermão não era para emocionar, arrepiar, fazer chorar. Era pra esclarecer, explicar, aconselhar, ensinar.
Certa vez, em meio a uma súbita fragilidade emocional, caí no choro diante do chamado do pastor, para que fossem à frente aqueles que tinham decidido se tornar membros da igreja. Esse “se tornar membro” significa aceitar Jesus, se converter. Mas hoje tenho vergonha de usar essas expressões. O pastor, mais tarde e em particular, me disse que eu deveria ter cuidado com minhas emoções, pois elas enganam, não são boas conselheiras. Ou seja, me converter somente por emoção não significava nada, pois as emoções mudam, somem. E foi o que aconteceu. Eu não tinha me convertido, eu tinha me emocionado, como quem chora assistindo um filme romântico e depois não entende o porquê daquela súbita leseira. Mais tarde eu entenderia a diferença entre um pastor e um Pastor.
Hoje sinto vergonha e raiva de pertencer ao balaio dos crentes. Ainda há certos oásis de racionalidade e sobriedade, mas, no bojo, nada mais é como era na minha igreja. Hoje a lei da recompensa impera. Ninguém mais ama Deus por amar. Há até pastores dizendo que não querer nada em troca do “amor a Deus” é errado. Dizem, inclusive, que Deus é quem diz isso. Hoje, por conta da modernidade dos tempos e da praticidade da vida, deixou-se de lado o louvor, o ritual, a inspiração e a devoção. Hoje tudo é muito bem dividido. Empresários em dificuldades vão às quartas, mães de drogados às quintas, endemoninhados às segundas, alcoólatras aos sábados, etc. Tudo muito bem definido, como o atendimento ao público de uma empresa. A ordem é gritar, espernear, chorar, cantar desafinado em voz alta em público, evangelizar os pecadores nos ônibus, nas praças, no trabalho, em casa. Qualquer ex-traficante, ex-homossexual, ex-corrupto, ex-católico, de repente ganhou o dom de decifrar ensinamentos bíblicos, parábolas e provérbios, com a mesma racionalidade e imparcialidade de um talibã. Ensinamentos como o dízimo são aviltados, transformados em detalhados orçamentos financeiros, em que o pretendente a salvo precisa pagar uma taxa no banco e só entra no céu com a autenticação mecânica. O chamamento à evangelização dos povos que nunca ouviram falar de Deus transformou-se na obrigação do crente de encher o saco alheio. Pra mim, nada diferente de um coitado fanático que se mata e mata outras pessoas, pra poder ir pro paraíso. Parece uma comparação grotesca, mas é certo que alguém disse aos dois para fazer o que “Deus” mandou, senão iriam pro enxofre do inferno abraçar o capiroto.
Agora “Deus” ordenou que eles tomassem as assembléias legislativas, o congresso nacional, a presidência da república. Transformaram a bíblia sagrada num programa de governo, prometendo o Deus bondoso do novo testamento aos salvos e o Deus cruel do velho testamento ao resto. Transformaram Deus num slogan de camiseta, num partido político. Só que Jesus c-o-n-v-e-n-c-e-u as pessoas a seguí-lo, em troca da salvação, e não em troca de prosperidade, sucesso nos negócios. As multidões o seguiam e o ouviam, mesmo que ele não tivesse microfones, megafones e redes de tevê. O amaram, o louvaram, o seguiram, no verdadeiro sentido da palavra SEGUIR. E esse Jesus que aprendi a amar não gritava, não se exaltava, até porque disse – na bíblia católica e na protestante – que os exaltados seriam humilhados, e os humilhados seriam exaltados. Chutou o balde apenas uma vez, quando chegou ao templo e encontrou mercadores, feirantes e comerciantes vendendo suas bugigangas. Exatamente como é feito hoje.
A comunhão com Deus foi esquecida, completamente esquecida. Padres e pastores são mais importantes, mais adorados, mais venerados do que Deus. Vale o que eles dizem, vale a interpretação deles para os ensinamentos de Deus, e valem as leis que eles criaram em nome dEle. Valem os pulinhos, as lágrimas, as músicas empolgantes, a ginástica aeróbica em que louvar a Deus se transformou. O acessório tomou o lugar do principal. Hoje ir a uma missa do Padre Marcelo é o sonho de consumo de qualquer católico; a água do mar morto engarrafada e o novo CD da Aline Barros são a prioridade de qualquer evangélico. Deus? pra quê Deus, essa “coisa” que ninguém pode ver, tocar, comprar nem colocar em cima da tevê? Pra que um Deus que não se candidata a um cargo público pra aumentar a bancada evangélica no congresso?
A verdade é que já vivemos uma guerra santa. Ainda fria, mas uma guerra. Nos impressionamos com as guerras campais entre católicos e protestantes irlandeses, mas não percebemos que caminhamos pro mesmo buraco. Catastrofismo? Paranóia? Não. Os arrogantes católicos foram cutucados pelos arrogantes evangélicos e não gostaram. Repudiam e discriminam uns aos outros como gangues rivais. Grudam adesivos nos carros com exclamações como “Já aceitei a Jesus. Sou católico!”. Ganhar uma alma virou coisa de empresário medíocre. O negócio agora é juntar fiéis aos milhares. Se o evangélico Marcelo (Crivella) leva 200 mil pessoas para um culto no meio da rua, no domingo seguinte o católico Marcelo (Rossi) leva 300 mil. A vida pára, o trânsito pára, a cidade pára. Um aparece no Fantástico, o outro na Record. Alguém incomodado? Que heresia!
Por isso acredito que caminhamos para a guerra, pro confronto. Ainda assistiremos nos noticiários, não mais aquelas notícias sobre neonazistas paulistas matando homossexuais e nordestinos, mas católicos e evangélicos saindo no braço - isso no melhor dos cenários. Além de palmeirenses e corinthianos, pagodeiros e metaleiros, haverá as brigas entre católicos e protestantes. Anotem.
No fim disso tudo fico eu e tantos outros, no meio do fogo cruzado, ouvindo, de um lado, os católicos, e do outro, os crentes, sem querer ouvir nenhum dos dois. Assistindo infindas e constantes discussões, no ambiente de trabalho, sobre quem está salvo e quem não está, sobre que religião Jesus fundou, sobre as diferenças entre a bíblia católica e a protestante. Não pertenço a essa guerra, mas sou bombardeado, como um civil que caminha pela rua, pelas músicas do Padre Zezinho e pelas do CD “Diante do Trono 59”. Quero apenas trabalhar em paz, estudar em paz, caminhar em paz, viver em paz, sem ter que procurar outro itinerário pra chegar em casa por causa de uma novena ou de um culto aberto que fechou a rua.
Quero ser livre, não precisar escolher uma trincheira, um lado. Essa guerra não é minha, essa raiva não me pertence. Até porque Jesus, sendo quem foi quando veio aqui, pregou nada mais senão o contrário do que se faz hoje. Pregou o amor, a devoção, a tolerância, a humildade, a justiça, o perdão. Nunca lançou CD, nunca disputou eleições, nunca impediu a entrada de ninguém no templo, nunca vendeu chaveiro, água benta, nunca fechou rua, nunca fez comício, nunca gritou, nunca usou fogos de artifício, nunca condicionou a salvação ao dízimo, nunca fez quermesse, bingo, rifa. Nunca rotulou ninguém. Amou o ladrão, o corrupto, a prostituta, o aleijado, o fariseu. Nunca debochou da ignorância de quem não o conhecia; pelo contrário, o ensinou a orar. Nunca fez estátuas, pilares de ouro, domos gigantescos para templos gigantescos. Nunca queimou ninguém vivo, nunca vendeu indulgências, nunca vendeu o céu nem foi latifundiário.
Esse Jesus, esse Deus, foi esquecido. O Deus que muda as pessoas, que as faz melhores, menos arrogantes, menos donas da verdade, mais humildes, mais iluminadas, mais abençoadas, mais agradáveis. Esse Deus ainda está aqui, mas está envolto em nuvens, embaçado pela religião. E eu aqui, ainda sentindo saudades do tempo em que Ele era a atração principal da festa.