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Artigos-->Um dia -- 04/12/1999 - 17:52 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Luzmaria, Luzmaria, quem desligará o despertador depois do grande dia?" Sem resposta. Responder é contar quantas vezes se pisca. Migalhas perfunctórias compõem essa vida. Luzmaria, de tudo esquecida: será você quem desligará o miserável desse despertador? Ou ele se desligará sozinho, cansado da costumeira música de dez anos?

Sem tempo e luxo para preguiça, Luzmaria levanta-se e dirige-se, olhos fechados, à cadeira encostada no canto esquerdo da parede. No espaldar, ressona a saia plissada preta, de mãos dadas com a camiseta estampada. Embaixo da cadeira, o sapatinho vermelho, número 35, ingênuo lacinho em cima, a sonhar com paralelepípedos.

Lá vai Luzmaria passando seu creme diário de perfume adocicado. Esse o cheiro de Luzmaria a mascarar o cheiro de Luzmaria. O esmalte negro a esconder as unhas. Garras e armas. O batom: lábios mais grossos que o risco de boca. E os brincos: para desviar olhares importunos pousados sobre o nariz imperfeito. Máscaras. Sombras. Fantasias. Sem carnaval. A pia pinga. O galo canta. O pinto pia. O marido ronca. O vizinho toma banho. O despertador acordado tiquetaqueia. Luzmaria, toc-toc-toc, pesponta o caminho do ônibus.

Limpadora de vidraças de andares inteiros, gaba-se de não sentir nenhuma vertigem. O truque: quando olha para baixo e vê os carros em miniatura, apalpa o bolso e se lembra da feira da Ceilândia. Orgulhosa de dar brilhos a esses espelhos, brinca de pêndulo ao som do vento. Quando morrer, meu Deus, quero entrar no céu de bolsos bem cheios!

O dia passa modorrento mais um dia. De novidade, um e outro escorregão ao pé da janela. Sem perigo. Por uns centímetros poucos, renasce Luzmaria, pronta para a lida.

A mesma dor de anos brinca de atormentar-lhe o cotovelo. Movimentos repetitivos. Limpa, limpa, limpa. A dor avisa: filhos, casa, marido. Mero espasmo, a fisgada desaparece ao primeiro grito de criança no corredor mal iluminado do 5.º andar. As janelas brilham. A tarde se despede. Serviço terminado, nova demão na máscara: uma camada generosa de "blush" e o batom vermelho. Luzmaria chegará estrela em casa, sem a cara de quem passou o dia limpando vidros. Marido, filhos, cachorro, a fotografia descorada de uma paisagem, pendurada sobre o sofá... Coisas nessa mala de sonhos enganosos! Tanta sublimação em troca da cesta básica!

Breve caminho de volta até o ponto de ônibus. Circular Rodoviária 115. Luzmaria apeia, pé direito calçado com o sapatinho vermelho de laço. Num pulinho, o outro pé. Atrás, vêm pernas e saia e babados e bolsa e brincos e cabelos e braços e passadas curtas. E a lembrança do caderno de desenho que prometeu ao filho! Eta, que caminhar até o Conjunto a essas alturas é o supremo esforço de uma mãe devotada! Sobe as escadas da rodoviária, que, de volantes, estão paralisadas. O formigueiro na plataforma superior transita indistintos lugares. Luzmaria atravessa a rua no sinal, entra na primeira loja. Na volta, caderno na mão, passa ao largo da rodoviária. Quando vê, está plantada diante do canteiro de flores de plástico que fazem de conta que são verdadeiras. Encanta-se com a paleta de cores das florezinhas miúdas. Assim embasbacada, principia a travessia do Eixo Rodoviário. Um carro distraído debalde freia. Luzmaria, Luzmaria, sua vida cirandeia, cirandá! Quem mandou, menina, abandonar seu porto-seguro e investir contra o inesperado? No lusco-fusco, um liquidificador rodopia Luzmaria no maior desfazimento. Buzinas. Depois a pausa. E a irremissível eternidade. Isso: a pausa eterna, a pausa ininterrupta. O sono tão esperado de dias a contar minutos. E não é que a vida era só a tentativa de controlar a vida? Adeus, que agora se esvai a última certeza numa poça de sangue vermelho-escura! Luzmaria, inerte, compõe seu último primeiro único quadro. A arte viva. Rostos apavorados. Espectadores. Amanhã não restará senão o asfalto com marcas de pneus e óleo, de Luzmaria nem sombra. O amanhã morre nesse restinho de agora. Em casa, ninguém a espera, que ninguém há de ansiar o certo, tão certo quanto qualquer crença. O saber é sem pensar, assim como engolir saliva. Mas quem vai polir os olhos baços de Luzmaria?



abilia@uol.com.br
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