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Artigos-->A reviravolta hermenêutica dos parag. 31 e 32 de Ser e Tempo -- 31/08/2002 - 10:02 (Jose Resende) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
REVIRAVOLTA HERMENÊUTICA DOS PARÁGRAFOS 31 E 32 DE SER E TEMPO



José Resende

março/2002







RESUMO:

Não há dúvida de que os parágrafos 31 e 32 de Ser e Tempo, obra capital de Heidegger, estremeceram as centenárias bases das teorias da interpretação. Diante deste fato, buscar-se-á, no presente artigo, evidenciar a revolução que sofreram os conceitos de compreensão e interpretação frente as ciências humanas e as ciências naturais. Para tanto, partir-se-á da análise do Dasein enquanto projeto lançado constituído de possibilidade, apontando-se, ainda, os principais elementos, hauridos pelo filósofo na analítica existencial, diretamente implicados nessa restauração da hermenêutica.



palavras-chave: hermenêutica, compreensão, interpretação, conhecimento, Dasein, projeto, possibilidades.







INTRODUÇÃO



Diante da pergunta pelo significado do nome do deus Hermes, Sócrates responde que “Hermes” refere-se ao discurso; que as características de “intérprete” (hermeneus), de mensageiro, de ladrão astuto, de falseador de palavras e de hábil comerciante supõem uma atividade pertencente às palavras e ao discurso1. Hermes é, portanto, o “hermeneuta” por excelência; que por sua facilidade de cruzar de um mundo para o outro, tornou-se o mensageiro entre Zeus e os mortais2. Deus da velocidade, das estradas, dos ladrões, dos profetas, dos comerciante, dos guias, dos pastores e dos arautos, Hermes é o soberano do reino da transição, dos interstícios entre o que era e que será, entre o dia e a noite, o mortal e o divino, uma coisa e outra, a morte e a vida. Ainda segundo o mito, além das asas nos pés, Hermes sempre carrega consigo uma capa e um bastão. Com a capa pode tornar-se invisível, já o bastão lhe permite controlar o sono das pessoas, fazendo-as acordar e dormir com um simples toque, por isso também é conhecido como o Mestre dos Sonhos, o mediador entre a realidade onírica e a realidade ordinária3.

A hermenêutica tem por essência, nestes termos, o limítrofe, o fronteiriço e a transição. Interpretar implica aceitar que tudo é devir, pois somente se tudo está a fluir é que podemos nos apropriar de cada instante por sua diferença. Está implícito em todo interpretar a mudança4.

É justamente a partir da recuperação deste sentido original da hermenêutica, que observa-se nesta virada de milênio a intensificação de pesquisas teóricas iniciadas nas últimas décadas do século XX sobre a teoria da interpretação e suas implicações práticas. Não de uma reedição das correntes hermenêuticas tradicionais, mas de um horizonte de pesquisa absolutamente outro e radical. Uma ampla e multidiciplinar tendência que abarca estudos culturais pós-estruturalistas, estudos literários desconstrutivistas, antropologia interpretativa, ciência social, e estudos de crítica jurídica. Movimento que se pode identificar como uma “reviravolta hermenêutica”, pois tem possibilitado reações contra as tradicionais formas de interpretação nas áreas particulares das disciplinas, especificamente em oposição à conceituação objetivista de seus métodos.

Tal “reviravolta”, que agora toma corpo, não surgiu aleatoriamente ou dentro de uma nebulosa conjuntura de fatores, mas decorre clara e necessariamente do “revolvimento” promovido na filosofia no começo do século pelo filósofo alemão Martin Heidegger em sua obra Ser e Tempo (1927) que, imediatamente depois de publicada, provocou uma revolução na tradição filosófica de problematização do conhecimento e da dicotomia entre subjetividade e objetividade. Alguns anos depois da publicação de Ser e Tempo, com uma maior apropriação conceitual, iniciaram-se, então, as pesquisas no campo da teoria da interpretação baseadas especificamente nos parágrafos 31 e 32 da obra.

Assim, buscar-se-á, no presente artigo, esboçar um panorama desta nova estratégia de exploração da teoria da interpretação5 a partir do ensaio de David Hoy sob o título Heidegger and the Hermeneutic Turn.







A RELAÇÃO ENTRE COMPREENSÃO E CONHECIMENTO NAS CIÊNCIAS HUMANAS E NAS CIÊNCIAS NATURAIS



Até Heidegger, ou mesmo depois dele, entre aqueles que o desconhecem, a questão da hermenêutica limitou-se à análises do fenômeno da compreensão contrastada com outras atividades do espírito, tais como o conhecimento e a linguagem. O que sempre resulta na clássica distinção entre disciplinas que nos proporcionam conhecimentos objetivos, como as ciências naturais, daquelas que não nos permitem extrair explicações precisas, mas apenas interpretações, como seria o caso das ciência humanas. Desse modo, a compreensão é colocada metodologicamente como uma subespécie deficiente de conhecimento.

Assim classificadas, as disciplinas humanas tais como história, direito, literatura, a etnografia, os estudos culturais e, talvez mesmo a filosofia, seriam incapazes de produzir explicações segundo as relações causais das leis das ciências naturais, revelando-se, por conseguinte, espécies inferiores da família do conhecimento, capazes apenas de uma operação cognitiva menor denominada “compreensão”. Observa-se, deste modo, a dominação do relativismo na hermenêutica tradicional, propalado pelos próprios hermeneutas pré-heideggerianos, os quais consideram a hermenêutica incapaz de produzir explicações definitivas nos moldes das ciências naturais, podendo, no máximo, fornecer possíveis interpretações e jamais explicações conclusivas para as questões humanas e existenciais.

As análises de Heidegger do Dasein como ser-no-mundo deslocam a “compreensão” como fenômeno derivado para constituí-la em característica fundamental da existência humana. Ou seja, a analítica temporal do Dasein demonstra que a compreensão não é apenas um dos vários comportamentos possíveis do sujeito, mas o modo originário de ser do Dasein, que assim abarca a totalidade das experiências de mundo. A hermenêutica toma, assim, uma posição central na filosofia, revelando-se muito mais central no pensamento filosófico quando comparada com a tradição do subjetivismo, que tradicionalmente concebe o ser humano como um “sujeito” desconectado do mundo e das atividade práticas no mundo. Como se o sujeito, intocável em sua neutralidade asséptica de “cognoscente”, estivesse contraposto à objetividade mundana e passível de conhecimento.

Segundo Heidegger, o modelo epistemológico que estabelece a relação sujeito-objeto não é o ponto de partida originário e radical para a filosofia, trata-se, aliás, de uma relação derivada de um fundamento ainda mais fundamental, em que Dasein e mundo são co-determinados na compreensão.

Tradicionalmente, o paradigma do círculo hermenêutico é aquele da transitividade imanente à leitura do texto, que diz que as partes não podem ser interpretadas independentemente do todo e que o todo não pode ser compreendido sem a compreensão das partes. Heidegger, diferentemente, não só concebe Dasein e mundo circularmente, mas desloca o tradicional círculo hermenêutico entre o texto e sua leitura para um nível mais primordial da existência humana. Desse modo, a relação entre conhecimento e compreensão não é nem de assimetria nem de exclusão recíproca, mas mantém entre si um vínculo de tal modo essencial que torna-se tarefa do conhecimento rever o fenômeno fundamental da compreensão.

Heidegger não compreende este fenômeno como uma forma de cognição entre outras, mas como nossa “habilidade” mais básica e, enquanto tal, o nosso contender com mundo. Tal habilidade leva em conta, inclusive, as mudanças historiais do ser em um mundo. Ou seja, uma vez que as características pelas quais ser em um mundo se nos revela histórica e historialmente, elaboramos sucessivas interpretações particulares. Como nossos projetos e necessidades não cessam de se transmudar, imediatamente também mudamos nossa interpretação. Por exemplo, algumas vezes nos interpretamos como estudantes, outras vezes como membros de uma família, outras vezes como consumidores, e algumas vezes talvez até como filósofos. Diante deste quadro cambiante, Heidegger sugere que todas essas interpretações pressupõem uma compreensão primária que o atravessa. As mudanças incessantes de nossa interpretação não são uma prova de nossa falta de compreensão, pelo contrário, apenas demonstram que fazemos a compreensão do mundo e que respondemos ao fluxo de demandas que se nos apresentam, as quais só se revelam graças a este fundamento da compreensão.

Heidegger nos descreve uma “compreensão primária” como condição hermenêutica a priori de cada uma de nossas várias formas de existir no mundo e de nos relacionarmos com o mundo. E essa atividade filosófica de descrição é também uma interpretação, mas uma interpretação num plano diferente da interpretação que naturalmente flui diariamente dos modos de contender com o mundo. Por isso Heidegger faz uma distinção entre Auslegung e Interpretierung: Auslegung, traduzida por “interpretação” (grafada com “i” minúsculo) refere-se aos fenômenos diários de habilidade ordinárias tais como martelar, digitar ou dirigir. E Interpretierung, traduzida por “Interpretação” (grafada com “I” maiúsculo), refere-se à tematização, articulação discursiva, e teorização. Nesse sentido Interpretierung é uma forma derivada de Auslegung, não no sentido de uma mera inferioridade hierárquica possível no interior das distinções epistemológicas, pois justamente o projeto que a obra Ser e Tempo substantiva é o de consistir-se em um trabalho hermenêutico e fenomenológico de exposição e de-monstração dos fenômenos. Por isso Heidegger reivindica o status de Interpretierung filosófica e não “conhecimento” ou “explicação” para descrever metodologicamente o que está fazendo.

Enquanto as interpretações ordinárias são relativamente automáticas, a Interpretação filosófica dessas interpretações ordinárias é reflexiva, e isto em dois sentidos: primeiro, é reflexiva ao que é mais explicitamente articulado ou tematizado na imediatidade da produção de sentido, e menos explicitamente, ou suposto, na lida cotidiana. Segundo, ela é logicamente auto-reflexiva uma vez que ela mesma é uma possível manifestação entre outras da compreensão primária; ela não é a representação de algo de diferente ordem, uma ligação exterior de um decomposto, mas possui a mesma essência do que é capturado. A Interpretação filosófica pode ser “verdadeira para” a atividade fenomenal de interpretação ordinária do mundo porque ela mesma é uma forma possível do mesmo fenômeno, uma forma da compreensão mais articulada e explícita. Portanto, a Interpretação filosófica não é arbitrária nem relativista à medida que é em si mesma um caso, ou no dizer de Heidegger, “uma radicalização” da compreensão primária em sua “função” de captura e apropriação.

Heidegger então demonstrará a necessidade de se reinterpretar e reordenar os termos “compreensão”, “explicação” e “conhecimento”; o que acontece quando ele mostra que o conhecimento explicativo é um caso de derivação da compreensão. Assim, pleiteando o status de Interpretação, e portanto de derivação para Ser e Tempo, Heidegger procura ir a um nível mais profundo do que a “dedução transcendental” desenvolvida por Kant na Crítica da Razão Pura, na qual Kant procura demonstrar e justificar que nossa experiência não é simplesmente subjetiva, mas objetiva. Pois que Kant, ao explicar as condições a priori de possibilidade do conhecimento científico com base nos “juízos sintéticos a priori”, não teria refletido suficientemente sobre o status do conhecimento filosófico elaborado na primeira Crítica e que dá conta de tais juízos.

A Interpretação articulada por Heidegger não elimina operações de raciocínio tais como explicar, deliberar, refletir e decidir, apenas procura situá-las num nível mais fundamental em que encontram-se reunidas numa compreensão primária que inclui necessariamente nossas interações diárias no e com o mundo. Heidegger constrói seu discurso não sob a égide de um “argumento transcendental decisivo”, mas como Interpretação, isto é, uma reconstrução razoavelmente completa e plausível das condições originárias desde as quais as coisas do mundo fazem sentido e desde as quais somos e nos relacionamos com o mundo. A “compreensão” está, por conseguinte, entre essas condições e é a projeção de um contexto inclusivo, ou modelo de inteligibilidade, que forma o pano de fundo sob o qual instâncias particulares do sentido se dão.

A filosofia, de Descartes até Hegel, procurou oferecer uma definição de “conhecimento” (por exemplo, como correta representação do mundo real) pela determinação de como se dá a conexão entre sujeito ou ato cognoscente e objeto cognoscido. Assim, a estratégia cartesiana, por exemplo, para fundar o conhecimento em bases seguras, pressupõe uma desconexão ontológica básica entre a substância mental e a substância corpórea, e assim, desde esta dicotomia, irá pelo caminho da dúvida reencontrá-la no cogito, o qual, segundo Descartes, nem “todas as extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de abalar”6. Já a estratégia heideggerina consiste em, desde a determinação fundamental do ser-no-mundo, mostrar o Dasein já e desde sempre em um mundo, o que implica uma reversão epistemológica e metodológica, a saber, que o que precisa ser explicado não é a conexão, mas a desconexão. Ou seja, explicar como é possível o solipsismo autista do sujeito cartesiano ou, no que diz respeito à práxis, explicar como é possível que aparentes desconexões se imponham, como por exemplo, quando a utilidade e instrumentalidade práticas de uma ferramenta à mão rompe-se na inutilidade inusitada de um objeto que, então, mostra-se meramente presente à mão.

Nestes termos, diferentemente de Kant e da hermenêutica tradicional, “conhecimento” não é mais originário do que “compreensão” e “interpretação”, mas o contrário, pois estes é que tem a primazia na hierarquia ontológica. Isso, entretanto, não significa apenas uma mera inversão da derivação. Pois se assim fosse, estar-se-ia apenas rearranjando as insolúveis antinomias e inconciliáveis dicotomias enfrentadas pela hermenêutica kantiana e pela hermenêutica tradicional. Contornando tais dificuldades, Heidegger, na sua estratégia de reconsideração hermenêutica da derivação, funda-a num nível mais primário do fenômeno da compreensão, onde a unidade de Dasein e mundo se dá pela compreensão projetada em possibilidades.









COMPREENSÃO, PROJETO E POSSIBILIDADE



Conquistada esta Interpretação, poder-se-ia questionar pelo que a faz “melhor” do que outras interpretações. Estaria ela “mais próxima” da verdade? Para esclarecer tal questão Heidegger distingue dois sentidos de verdade. O primeiro é o comumente empregado pelo senso filosófico ordinário, quando uma assertiva descobre e revela algum fato sobre o mundo. Para este sentido Heidegger utiliza o termo “descoberta”7 (Entdecktheit) para se referir ao ser das coisas que não tem o caráter de Dasein. O segundo sentido de verdade é expresso pelo termo “abertura” (Erschlossenheit)8 para determinar que o contexto total é um aberto da compreensão, modo que se distingue da descoberta na medida em que é o revelar-se para si mesmo do Dasein9. A “compreensão” assim, não consiste apenas em fazer assertivas sobre o mundo, mas também em apreender por inteiro o modo de ser-no-mundo. A compreensão apreende o mundo como tal, sem o que não seria possível a descoberta de características particulares no mundo. Entretanto, a “compreensão” não apreende apenas o mundo, mas também o modo de ser de Dasein no mundo. Logo, uma compreensão do mundo é sempre também auto-compreensão.

Ressalte-se que essa auto-compreensão não pertence a um ego do tipo cartesiano ou kantiano que se mantém separado de um mundo a conhecer, ou seja, o eu transcendental. A compreensão do Dasein sobre o mundo não se distingue da auto-compreensão do Dasein, pois ambos dão-se, ao mesmo tempo, numa interpretação de si mesmo. Essa auto-interpretação não descobre propriedades de uma substância mental, nem o noumenon, mas pela abertura revela como Dasein lida e elabora a questão de sua existência.

A compreensão não se limita a descobrir características particulares do mundo, mas é a mais primordial abertura das possibilidades. Heidegger mostra com isso que a abertura fática, encerrada na compreensão, para as possibilidades é mais originária que o descobrimento de características factuais. A Interpretação filosófica nos mostra que se compreendermos a dimensão da abertura, tanto o “descobrir” quanto a “abertura” podem ser determinados, pois a abertura torna inteligível o fenômeno do descobrimento. Não é possível que a compreensão seja gerada de forma atomística através da acumulação de fatos isolados descobertos um após o outro, como pretende a crítica empirista. Interpretar não é colecionar fatos descobertos.

Possibilidade para Heidegger não significa possibilidade lógica, um ainda-não ser, pois Dasein existe como e somente como possibilidade fática, concreta, a qual não é escolhida arbitrariamente10, mas decidida, implicando com isto que traz consigo tanto Dasein como mundo. Dasein é possibilidade, isto é, abertura compreensiva que se realiza como projeto, um lançar-se fora de si originário que se perfaz como existência.

A compreensão envolve possibilidades que estão sempre ligadas a situações mundanas, não sendo, portanto, simplesmente uma operação subjetiva ou a manifestação ou fenômeno interno, o que implica num distanciamento de Heidegger do pensamento tradicional que pensa tais possibilidades como produto de uma livre e espontânea escolha. Heidegger rejeita essa liberdade da indiferença. Ao invés de “escolha”, o filósofo, na análise da compreensão primária, fala em “projeto”.

O projetar da compreensão não se resume à racionalização de uma lista com todas as escolhas possíveis, na qual, por meio de uma economia de prós e contras, chegar-se-ia a alguma decisão. Listar todas as possibilidades e implicações relacionadas a determinada situação, principalmente tratando-se de “fatos” humanos, é uma tarefa infinita e que beira as raias do absurdo. Isso, aliás, é o que nos diz Fernando Pessoa pela prosa aguda de Bernardo Soares, reverberando nas ruas estreitas de paredes azulejadas de Lisboa:



“Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.”11



“Fatos” humanos são desde sempre interpretativos e carregados de significado. Heidegger, então, ciente desse problema, faz uma distinção entre “fatualidade” e “facticidade”. Fatualidade refere-se a coisas não-humanas, as quais podem ser listadas e são concretamente limitadas por possibilidades lógicas. Já Facticidade procura significar a imanência do Dasein ao mundo, ou melhor, que o Dasein acha-se desde sempre e antes de tudo lançado em um mundo, projetado numa situação constituída de possibilidades concretas.

Projetar não significa calcular tematicamente as possibilidades de modo a espelhar, determinar ou antecipar uma situação real. Para Heidegger, o conceito de compreensão que se realiza no projeto não se reduz nem eqüivale ao escolher, optar, planejar ou ponderar da consciência.

Operações que exigem maior reflexibilidade tais como deliberar, explicar ou decidir só são efetivamente possíveis se tiverem como pano de fundo uma ampla gama de características, as quais, entretanto, jamais poderiam ser explicitamente tematizadas simultaneamente. Apesar disso, todas essas características que permanecem implícitas fazem parte da compreensão e, por conseguinte, de possibilidades fáticas da existência.







INTERPRETAÇÃO



Diante do exposto percebe-se que não há sentido em se buscar o que faria uma interpretação mais verdadeira do que outra. Fundamentalmente a interpretação envolve possibilidades e não simplesmente fatos, logo, pautar-se na distinção verdade/falsidade talvez não seja a melhor maneira de se julgar as interpretações. Contrastando com o modelo de verdade/falsidade, Heidegger pauta-se em critérios outros, tais como autenticidade/inautenticidade, genuíno/não-genuíno, e transparente/opaco. No parágrafo 32 de Ser e Tempo, Heidegger não está a operar no nível proposicional da verdade/falsidade lógico-semântica, mas com o fenômeno da Auslegung que envolve uma interpretação no nível da facticidade, onde não se articulam julgamentos e tematizações, mas que as antecedem como condição de possibilidade. Deste modo, o modelo heideggeriano de interpretação contrasta com o modelo tradicional que tem como paradigma a leitura de textos. Para dar conta deste nível originário da interpretação, Heidegger irá referir-se a atividades cotidianas elementares tais como martelar ou abrir portas. A Interpretação filosófica da qual nos fala Heidegger é uma interpretação do Dasein. Na famosa passagem em que Heidegger faz a análise do martelo no parágrafo 15 de Ser e Tempo, o filósofo nos coloca que, um martelo ordinariamente considerado, não traz inscrito em si suas características. Estas, sejam elas, pesado, bom, áspero, anatômico, só se descobrem quando da interpretação concreta que se elabora a partir da instrumentalidade do instrumento que se revela fáticamente na atividade de uso do martelo. Contrariamente às epistemologias empiristas que consideram que primeiro “percebemos” os objetos através de suas propriedades particulares e só posteriormente o apreendemos, Heidegger mostra que a “percepção” não é primária nem na ordem do ser, nem na ordem do conhecer. Ou seja, percebermos um objeto tendo-o já compreendido, isto é, dele já nos apropriado numa circunvisão, e só posteriormente numa modificação ontológica derivativa, isolamos, recortamos e classificamos o que seriam as suas propriedades.

Assim também se dá com a interpretação de um texto. Pois, ao lermos algo, não tematizamos cada um dos traços gráficos que compõem cada uma das unidades da escrita para então associá-las a uma letra do alfabeto da língua, e esta por sua vez a um fonema, e do conjunto de fonemas a um significado, e do conjunto de significados da frase a um outro significado, e do conjunto de todo o texto, finalmente, ao sentido. Ao lermos, o significado interno do texto ele mesmo aparece imediatamente e exclusivamente no ato da leitura.

O significado para Heidegger não é algo acrescido e que é imposto ao objeto, nem um objeto mental distinto da percepção, nem ainda um resultado da mediação entre o sujeito e o objeto. Para Heidegger o que se entende não é o significado, mas o ente. Nós apreendemos os entes como entes por meio das suas redes de relações com outros entes, e não como um agregado de qualidades percebidas. Assim, por exemplo, quando escutamos um escapamento estridente, encontramos uma motocicleta, e não apenas um barulho irritante que depois somado a uma cor e a uma estrutura metálico-mecânica, formaria uma motocicleta. Logo, o que entendemos por propriedades da motocicleta (preta, rápida, metálica, barulhenta, etc.), são abstrações possíveis apenas depois de encontrada a motocicleta.

O significado envolve uma visão holística na qual a coisa torna-se inteligível como coisa numa rede de relações. Mas independente da rede de significados, o ente, por si só, não é “significante”. Essa rede de significados não só depende do Dasein, como faz parte da constituição do Dasein. O contexto de significância é o que torna possível interpretar alguma-coisa como alguma-coisa. Na maior parte das vezes esse contexto de significância não é explícito, mas forma o pano de fundo que possibilitará o entendimeto, a que Heidegger chamará “estrutura-prévia” da compreensão. Analisando essa “estrutura prévia”, o filósofo identificará três níveis que são percorridos para que se dê uma compreensão: Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff, respectivamente traduzidas para o português por Márcia de Sá Cavalcante e pelo Prof. Emmanuel Carneiro Leão como “posição prévia”, “visão prévia” e “concepção prévia”. A “posição prévia” refere-se à apreensão da situação como um todo antes da explicitação do objeto, onde tem-se como fundo a totalidade das possibilidades práticas envolvidas (por exemplo, uma oficina como um todo). Por meio da “visão prévia” determina-se antecipadamente o meio apropriado pelo qual o objeto aparecerá, antes, porém, de sua explicitação. Já pela “concepção prévia”, determina-se antecipadamente o meio apropriado pelo qual se dará a interpretação do objeto, ou seja, estabelecem-se alguns conceitos sob os quais tornar-se-á apropriada ou não uma interpretação.

Há de se considerar, entretanto, que esses três níveis implícitos da “estrutura prévia” da compreensão não funcionam independentemente da interpretação explícita. Conforme adverte Heidegger “...esse fenômeno não pode ser dissolvido “em partes””12. A “estrutura prévia” da compreensão em seus três níveis, Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff, dá-se juntamente e no mesmo dar-se da “estrutura como” da interpretação.

Apesar da interpretação ter lugar em atividades outras além daquelas que normalmente a linguagem está envolvida, Heidegger não pretende dizer que a compreensão é mais essencialmente pré-lingüística do que lingüística, mas que o fazer sentenças e asserções dão-se como modo prático da interpretação. Apesar de nem toda compreensão envolver uma tematização lingüística explícita, o ser que é Dasein precisa antes, para ser Dasein, ser capaz de tematizar e fazer assertivas. A interpretação textual é apenas, portanto, um caso de interpretação. Isto implica, que as disciplinas humanas, eminentemente textuais, como por exemplo a literatura, o direito e a história, por procederem metodologicamente pela compreensão e interpretação, não são “menos rigorosas” que as ciências naturais. Não há que se fazer distinções nos domínios do conhecimento tendo-se por critério supostos graus de certeza da compreensão oferecidos pelas ciências, sejam elas humanas ou naturais. As ciências nada mais são do que subespécies da compreensão.

Uma vez demostrado que as ciências não são domínios separados do conhecimento, mas sim regionalizações mais ou menos delimitadas da compreensão, conquistada está a primazia pré-ontológica da compreensão.

Este caráter antepredicativo da compreensão será, então, concebido por Heidegger circularmente: “Toda interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o que se quer interpretar.”13 É o que se chama de “círculo hermenêutico”, que caracteriza toda relação com o mundo, temática ou suposta, exigindo um contexto de sentido originário para que uma descoberta seja possível ou uma conclusão seja haurida.

Este fenômeno da circularidade da compreensão, imediatamente parece sugerir a impossibilidade de qualquer descoberta primordial, de modo que estaríamos condenados a apenas confirmar o que de alguma forma já sabíamos, a não ser que se pudesse, através de algum estratagema, “saltar fora” desse círculo.

Obviamente, Heidegger acredita que interpretações podem fazer descobertas e que podem corrigir suas inadequações. Todavia, o círculo hermenêutico não deve ser encarado como se fosse uma armadilha que nos enclausura dentro dos limites de nossas suposições e nos impede de alcançar um conhecimento genuíno supostamente escondido aquém ou além das interpretações. Não se trata de um círculo vicioso, mas da expressão da estrutura-prévia existencial, própria do Dasein. Onde “se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa é de não se deixar guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia, por conceitos ingênuos e “chutes”. Ela deve, na elaboração da posição prévia, visão prévia e concepção prévia, assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas.”14

A expressão, nesta última frase, “das coisas elas mesmas” não sugere que exista um domínio fora do círculo frente ao qual nossas crenças devessem ser testadas, mas que todas as crenças só podem ser checadas unicamente quando contrapostas a outras crenças na rede das significações abertas no projeto. Logo, a idéia de se “saltar fora” do círculo padece de inteligibilidade.

Além disso, a compreensão não deve ser concebida como um a priori puro, isto é, não fático, da interpretação, o que poderia sugerir que havendo compreensão de alguma coisa, ela se transformaria numa interpretação, por exemplo, aplicando-se a compreensão a um caso particular; tal qual quando um juiz, diante de um caso concreto não previsto no sistema legal, acredita extrair, por meio da interpretação, um ditame legal até então implícito na abstração do texto legal. Ainda aqui prevalece uma intuição epistemológica, a idéia de que há algo “separado e escondido” que deve ser alcançado pela interpretação, de modo que a interpretação não é vista como um “círculo”, mas como um “arco”, que pela adequação liga de um lado o sujeito e de outro o objeto.

Qualquer investigação que parta do problema de uma dada interpretação, já sempre desconecta a interpretação do que lhe é imanente, ou seja, do interpretado, a tal ponto que somente de maneira artificial e extrínseca é possível reconecta-los. Conforme Heidegger, uma tal preocupação epistemológica só pode ser suscitada na desconsideração ou indavertência quanto à circularidade originária do fenômeno da compreensão.

Mal entendidos ou enganos dão-se na interpretação da compreensão, não na compreensão. Não que compreensão e interpretação sejam fenômenos distintos ou sucedâneos, mas que no processo de interpretação da compreensão, o intérprete é tomado pela convicção de que existe alguma coisa “fora”, “transcendente” para ser compreendida. Para esta crença Heidegger dá a seguinte explicação:



“A interpretação nunca é apreensão de uma dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta com sendo aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia.15



Portanto, não há um lado de fora do círculo. A interpretação não é uma operação secundária resultante de um processamento da compreensão, não é sequer mesmo uma operação mental dela distinta, pois a compreensão realiza-se ela mesma sempre na interpretação. No dizer de Heidegger, “na interpretação, a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa.”16 Pode-se dizer que a interpretação consubstancia-se através das possibilidades projetadas pela compreensão. Isto é, o contexto de inteligibilidade que é tacitamente compreendido, promove o pano de fundo contra o qual ações interpretativas específicas façam sentido. Esse pano de fundo tácito e as ações interpretativas específicas são funções integrais de qualquer instância da interpretação da compreensão.







*****************

1 PLATÃO. Cratilo em diálogos. Madrid: Aguilar, 1991, p. 257.

2 PALMER, Richard E. The liminality of Hermes and the Meaning of Hermeneutics. MacMurray Collge.

3 idem.

4 AZOÑOS, María Eugenia Herrera. Hegel, su verdad y nuestra nostalgia, entre dos verdades platônicas. INTERNET, 08/10/01. http://www.angelfire.com/nv/filofagia1/H

EGel.html.

5 HOY, David Couzens. The Cambridge Companion to Heidegger: Heidegger and the hermeneutic turn. Cambridge, 1993.

6 DESCARTES, Rene. Discurso do método. Rio de Janeiro: Edições de Ouro.

7 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo parte I. Petrópolis: Vozes, 2000, p 130

8 idem p. 118.

9 idem p. 315 (nota 23).

10 idem p. 183.

11 PESSOA, Fernando. Livro do desassossego: por Bernardo Soares. São Paulo: Brasiliense, 1995.

12 idem nº 7. p. 207.

13 idem nº 7. p. 209.

14 idem nº 7. p. 210.

15 idem nº 7. p. 207.

16 idem nº 7. p. 204.







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